Capítulo 3 - Minha Família

Os fracos raios de luz adentravam lentamente pela janela do quarto de Hanna. A pintura lilás das paredes pareciam mais claras quando expostas à luz do sol, deixando o ambiente aconchegante e calmo — o completo oposto da garota que ali dormia. Naquele dia, Fiore acordou não muito disposta com o toque frenético de seu despertador que ficava ao lado de sua cama. Como sempre, apesar do sol da manhã, fazia um frio de congelar as pontas dos dedos.

Ela se espreguiçou lentamente e sorriu ao sentir o cheiro de pães fresquinhos vindo do andar de baixo. Em um salto, saiu da cama e correu para o banheiro do outro lado do corredor. Naquele pequeno toalete, ela efetuou todas suas higienes necessárias e tomou um bom banho. Infelizmente, ou não, sua aula começava cedo. 

Hanna cursava literatura e gastronomia na faculdade de Marjorie — a tão aclamada Lokelani. Amava cozinhar variados tipos de iguarias, inclusive aquelas à venda na padaria de sua mãe. Em seus tempos vagos, dedicava sua atenção à leitura. Amava escutar histórias, principalmente aquelas feitas para se emocionar.

Inevitavelmente, enquanto olhava no espelho e via seu semblante meio abatido, foi impossível para Hanna não se lembrar da noite anterior. Lembrar das palavras de Eros, da teórica traição de Brendo e das palavras provocantes de Sarah. Ah, e não menos importante, o encontro com aquele impertinente do Noah e suas falas que sempre abalavam o coração da jovem Fiore.

Não!

Não havia essa história. Nada estava abalado, apenas surpreso com aquelas piadas de mal gosto que aquele ruivo insistia em contar. Era só isso. Hanna murmurava mentalmente sua negação diária enquanto escovava seus dentes com sua escova rosa bebê.

Para não cair novamente naquela armadilha, tinha que usar das armas que dispunha. E uma dessas era a negação. Sua fiel companheira.

Depois de terminar suas higienes e sair do banheiro, Fiore desceu correndo as escadas de sua casa, dando de cara com seu irmão mais novo no corredor. Anthony ainda estava vestido com seu pijama, com sua escova verde posta desajeitadamente em sua boca. Ela o cumprimentou com um fraco aceno de cabeça, voltando a correr até a sala de estar em seguida. 

A casa da família Fiore não era muito luxuosa. Era apenas uma construção de dois andares, sendo o primeiro possuidor da cozinha, sala de estar e o quarto do pais de Hanna com o banheiro principal. O oposto do segundo, que possuía três quartos e um banheiro. A pintura interna era azul gelo e a externa era verde oliva. Possuíam uma garagem e apenas um quarto com sacada — para sorte da jovem, esse era o seu. 

Ao chegar na cozinha, ela viu seu pai, sua mãe e Alba — sua irmã do meio — sentados à mesa. Naquela altura, eles já experimentavam os pães recém preparados por Emma e outras guloseimas feitas por ela.

Ao ver a cena, Hanna bateu o pé um pouco irritada com a falta de consideração de seus familiares. Mas, mesmo estando irritada, ela caminhou com suas bochechas levemente estufadas em direção a mesa. Cumprimentando todos com um bom dia, ela se sentou de frente para seu pai, e começou a comer. Inevitavelmente sorriu ao provar de um pão recheado que sua mãe sempre fazia todos os dias para o café da manhã. Tinha que admitir, aquele era o seu favorito.

— Bom dia, princesa! — seu pai, Dominic, lhe cumprimentou com um lindo sorriso e seu bom humor matinal. Hanna sorriu levemente sem deixar o ar — recém colocado — sair de suas bochechas. Ela ainda estava irritada. — Algum problema, docinho? 

— Não, nenhum — negou, calmamente. Balançando sua cabeça de um lado para o outro, pegou um copo de suco e o saboreou com delicadeza. Sua mãe suspirou reconhecendo aquele padrão.

— Está irritada, Hanna? — Sua voz soou séria. A garota engoliu em seco e a olhou com sua melhor cara de inocência.

— Claro que não, mãe — discordou, olhando de soslaio para Alba. Ela ria baixinho.

— Ela deve está irritada por vocês não terem esperado ela — Anthony comentou, aparecendo subitamente na cozinha. Hanna lançou um olhar mortal para ele, mas isso não surtiu efeito algum. 

Maldito pirralho!

— Oh? Então é isso. — Emma sorriu, mas não era um sorriso normal. Em seus olhos via o futuro de uma boa bronca se iniciando.

— Não, não é  — Hanna tratou de discordar o mais rápido que pode. Seu pai, vendo seu desespero, começou a rir alto. Suas gargalhadas, por mais incrível que pareça, acalmou o ambiente no mesmo instante.

— Nada melhor do que um café da manhã em família, certo? — Ele voltou a gargalhar e isso a fez sentir um pouco mal por ter ficado irritada por tão pouco. Talvez fosse mimada demais?

— Tem razão, querido — Emma concordou, com um sorriso leve esboçado em seu rosto. Suspirando fundo, Hanna voltou a comer em silêncio. Essa era uma manhã normal com a família Fiore.

Enquanto Emma era padeira, Dominic era pesquisador marinho, biólogo e pescador em seu tempo livre. Amava pescar e estudar os animais presentes na baía de Marjorie. Ele era tão bom quanto Emma no que fazia, principalmente porque colocava o coração em tudo que executava e era super gentil. Aliás, esse era o pai de Hanna: um homem bruto fisicamente com um coração enorme e super compreensível. O completo oposto de sua amada mãe.

Emma era uma mulher fisicamente delicada, mas por dentro era uma mulher forte, de garra e com um temperamento frio e sombrio ao mesmo tempo. Muitos tinham medo dela e, ao mesmo tempo, a admiravam. Como padeira ela era perfeita, tanto preparando os alimentos, quanto atendendo seus clientes. Hanna a idolatrava por isso e tinha que admitir que talvez ela fosse a que mais temia sua mãe dentre todos que a conheciam. Fatos não tão óbvios assim.

— Ah! Eu já estava quase esquecendo — Emma disse, batendo suas mãos uma na outra. Rapidamente levantou-se e se aproximou do balcão da cozinha. — Chegou isso para você, Hanna — continuou, pegando um pacote envolto por um papel marrom claro em cima do balcão e mostrando para garota.

Ao ver aquele embrulho, o coração da jovem Fiore disparou, sentindo uma euforia inexplicável percorrer cada parte de seu corpo. Ela se levantou abruptamente e correu até sua mãe. Sem pressa, a mais velha lhe entregou o pacote, sorrindo.

— Quando chegou? — perguntou, sem tirar os olhos do embrulho.

— Hoje de manhã — respondeu, voltando a sorrir. — Vai lá e aproveita.

Hanna não pode deixar de obedecê-la. Sem esperar que sua mãe dissesse algo a mais, ela  correu para a sala e se jogou no sofá. Rapidamente abriu o embrulho e tirou o conteúdo com o maior cuidado. Um sorriso bobo apoderou de seus lábios ao ver seu nome escrito na capa escura e sombria do livro que acabara de receber. Sim, era seu livro. Tinha mandado uma gráfica imprimir para ela logo depois de pagar a revisão, capa, diagramação e demais coisas necessárias para a finalização de um livro. Aquele era seu xodó, algo que ninguém além de sua família e Mia sabiam que ela fazia. Seu próprio livro, seu livro de terror.

Hanna sabia que a maioria das garotas preferiam, tecnicamente, livros de romances. Entretanto, por causa de sua falta de sorte com amor, havia deixado de investir em algo romântico, escolhendo um caminho oposto: o terror.

Seu primeiro livro, uma coletânea de contos repletos de terror, tivera uma boa reputação na plataforma onde publicava. Com isso, teve um desejo: ter pelo menos um exemplar de seu pequeno em suas mãos. E dito, feito. Trabalhando secretamente para suas tias, conseguiu uma quantia suficiente para pagar a parte técnica do livro e, com auxílio dessa gráfica, publicou de forma independente. 

Talvez não fosse grande coisa, mas naquele dia Hanna estava tão feliz que mais nada parecia importar. Um pensamento que não tardaria a mudar.

Hanna ficou mais algum tempo admirando seu livro, Contos De Um Mundo Em Caos, que não viu o tempo passar. Só se deu conta que estava atrasada quando o relógio marcou quase sete da manhã. Desesperada, colocou seu livro dentro de sua bolsa, correu até seu quarto e vestiu o uniforme de sua faculdade. Esse era uma saia cinza rodada e uma blusa de manga longa azul com um desenho de uma flor envolta por correntes estampada no peito. Era uma peça que Hanna gostava muito, e que parecia cair muito bem nela.

Pelo menos era o que seu pai dizia toda vez que a via nele.

Depois de trocar de roupa, ela se despediu de todos, pegou seu carro, um Uno Vivace vermelho, e saiu a altas velocidades até a faculdade. Sabia que estava sendo imprudente ao dirigir tão veloz pelas ruas da pacata Marjorie, mas precisava e parecia ser para uma causa maior. 

Entretanto, tinha que admitir que não era a primeira — e não seria a última vez — que havia feito uma coisa não tão legal assim. Por sorte, e para sua felicidade, ela chegou faltando dez minutos para o sinal, sem ser interrompida por qualquer autoridade.

— Olha só quem está quase atrasada! — Borges gritou assim que Hanna pôs os pés no jardim do campus. Olhando torto para ela, que não se incomodou nem um pouco, a jovem Fiore correu em sua direção. A amizade das duas era baseada em muita provocação.

— E olha a pontual! — debochou, sabendo que Borges tinha acabado de chegar também. — Caiu da cama, Mia? 

— Não, só meu gato que, literalmente, decidiu cantar de galo — lamentou, falando sério dessa vez. Hanna riu dela, fazendo um sinal para começarem a andar em direção ao refeitório. — Acho que ele não gostou do Patrick e seus roncos — comentou, arrancando uma gargalhada alta de sua amiga. 

Patrick era o porco — sim, você não ouviu errado — de estimação de Borges. Ele roncava que nem… Bem, muito alto. 

— Nem eu gosto dos roncos dele, Mia — brincou, arrancando um biquinho indignada da outra. 

— Você não conta — ela negou, sem dar abertura para nenhum comentário. — Mudando para um assunto mais interessante, como foi sua investida ontem? 

Fiore parou bruscamente ao ouvir aquelas poucas palavras. Seu bom humor se tornou azedo no mesmo instante e ela se sentiu como uma idiota. Por que Mia tinha que lembrá-la disso?

— O que foi? Não me diga que… — Ela sussurrou, já entendendo aquela reação.

— É, eu fui trocada — disse, desanimada. Mia suspirou fundo, aproximando-se dela.

— Não ligue para isso, amiga! Você vai encontrar um boy que realmente valha a pena! Basta esperar — motivou-a, como sempre. Hanna sorriu tristemente para ela.

— Eu já tenho vinte anos, Mia. Essas palavras já não fazem efeito sobre mim — comentou, seca. Borges revirou os olhos e suspirou fundo.

— E daí? Vai fazer o que então? Chorar? — indagou, nada feliz.

— Não! Claro que não — discordou de imediato.

— Então? — Sua voz saiu desconfiada e desafiadora.

— Você sabe o que eu vou fazer. — Hanna olhou maldosamente para sua amiga. Entendendo seu olhar, a jovem balançou sua cabeça negativamente.

— Nem por cima do meu cadáver.

— Você não vai me impedir. — Sorriu, pegando seu celular de sua bolsa. Rapidamente colocou no aplicativo de escrita que usava e clicou no arquivo do volume dois de Contos De Um Mundo Em Caos. Nesse momento, o olhar apavorado de Mia aumentou. — Eu vou matá-lo!

— Não! — Mia gritou e roubou o celular das mãos de Hanna. A jovem ficou sem ação ao ver o quão ágil era ela. M*****a estudante de Ed. Física!, praguejou, em pensamento.

— Me dê meu celular para eu matá-lo! — esbravejou, correndo atrás de Borges que nem uma louca pelos corredores vazios do campus. Só parou quando o ar faltou em seus pulmões.

— Não! Não vai! — sua amiga voltou a gritar, decidida. Ofegante, Hanna tentou correr mais um pouco, mas voltou a parar sem aguentar mais.

— Por que? Por que não me deixa matar meu próprio personagem? — indagou, chorosa. Borges deu de ombros, parou de andar, sorriu e ergueu dois dedos de uma de suas mãos em direção a Hanna.

— Primeiro, ele é meu personagem favorito. Segundo, não pode matar um personagem por causa da raiva que sente do babaca que o inspirou. E terceiro, e não menos importante — fez uma pausa, erguendo mais um dedo para Hanna —, você pode ser a escritora, mas sou eu que mando nessa bagaça toda! — exclamou, como se houvesse lógica em suas palavras.

— Isso não faz sentido, droga! — Hanna gritou, enfurecida.

— Eu sei! — ela também gritou, inevitavelmente caíram na gargalhada depois disso. 

— Ei! O que pensam que estão fazendo? — O vigia, que passava por ali naquele momento, gritou enraivecido. Sem demora, as duas garotas correram até o refeitório. Por sorte não foram pegas.

— Isso foi demais! — Hanna afirmou, para sua amiga. Mia sorriu, concordando com as palavras ditas. Sem pressa, escolheram uma mesa qualquer e se sentaram nela sem ligar muito para os olhares ao redor. — Pode me dar meu celular agora? — pediu, em um sorriso tranquilo. Mas bateu o pé assim que Borges negou isso.

— Eu não irei te dar. — Balançou a cabeça negativamente. — Vai que resolve matar meu marido? — indagou, com um sorriso zombeteiro no rosto.

— Mia — Hanna a olhou incrédula —, você sabe que ele não existe, certo?

— Claro que sim! — ela confirmou, mas isso não deixou Hanna muito convencida. — Mas, isso não muda o fato que ele é o amor da minha vida!

— Você está louca — disse, rindo dela. Borges a olhou mortalmente, mas Hanna não ligou para isso.

Mia Borges era uma mulher negra, de cabelos cacheados volumosos e olhos castanhos avermelhados. Com um corpo perfeito — cheio de curvas por sinal — ela encantava todos os garotos desde sua época do colegial. E na faculdade não era diferente.

Suas expressões marcantes e detalhadas, lábios grossos, sorriso claro e estonteante sempre a deixava no topo do ranking de "as mais populares dentre os estudantes da Lokelani". Sempre era assim e, mesmo sendo assim, nunca tinha engatado em um namoro verdadeiro.

Infelizmente as duas estávamos juntas nesse barco de amores frustrados.

— Tá querendo me pegar, Fiore? — Mia perguntou, muito séria. Hanna piscou sem entender, mas logo o riso zombeteiro que saia dos lábios de Borges a fez cair na real. Ela a encarava a tempo demais.

— Até que não seria uma má ideia, Borges — retrucou, ironicamente. Mia riu e olhou para uma mesa cheia de nerds que, naquele momento, as olhavam com repúdio. Os olhos de Mia chamuscaram de ódio, entretanto ela não fez menção em se levantar e ir até eles.

Infelizmente, o relacionamento de Mia e os nerds não era o melhor — e isso incluía o de Hanna também. Elas sempre foram muito espontâneas, populares e tinham corpos de dar inveja — cá entre nós, Mia era bonita, mas Hanna ultrapassava sua beleza. Ou era isso que a garota vivia dizendo para si mesma para não ficar com sua autoestima baixa.

Eu sei, Hanna sempre foi muito dramática.

Hanna Fiore… Se fosse para ela descrever a si mesma, diria da seguinte forma: possuidora de lindos olhos castanhos cor de mel, cabelos castanhos escuros e curtos, na altura dos ombros, e uma pele pálida de dar inveja — sim, sua autoestima sempre fora lá nas alturas —, baixinha, com um corpo mediano e com pernas bem desenhadas. Esse era o seu "eu" físico e criticado, coisa que não ligava muito. Amava a si mesma e não estava nem aí para os comentários maldosos de quem não tinha o que fazer.

— Eu não suporto esse julgamento sem fundamento — Borges desabafou, visivelmente chateada. Suas palavras removeram Fiore de seus devaneios.

Apesar de se sentir uma rainha, Hanna também se sentia injustiçada por aqueles que a julgavam sem antes conhecê-la. Era uma sensação péssima.

— Eu também não, Mia. — Soltou o ar com força. Era difícil acreditar no quanto alguns olhares podiam ser tão maçantes. — Mas não podemos fazer nada. 

— Você tem razão, não podemos — Borges suspirou, voltando sua atenção para outra mesa também cheia de nerds. Nesse momento, quando seus olhos acompanharam os dela, foi quando o viu pela primeira vez.

O carinha de óculos que iria lhe auxiliar de diversas formas possíveis.

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