Camilla
Meu corpo está paralisado nesse momento, não consigo mover nem os meus dedos, não
consigo ouvir o que "eles" dizem e não consigo falar uma palavra se quer, mas sei exatamente onde estou.Mais uma vez estou presa naquela mata, aqueles malditos estão ao meu redor me olhando feito lobos famintos e tenho certeza que me atacarão a qualquer momento.
Eu tentei correr, gritar e pedir ajuda de qualquer forma, mas ninguém ouviu meu pedido de socorro, ninguém, e mais uma vez eles me atacaram fazendo o meu corpo doer e minha alma sangrar.
Aquele desespero tomou conta de mim mais uma vez e ter todos eles tomando meu corpo mais uma vez me fez entrar em pânico e surtar.
- Socorro, por favor socorro!- gritei enquanto debatia o meu corpo com a intenção de afasta-los de mim.
Me debatia quando senti braços magros, mãos familiares e um cheiro doce bem perto de mim e mesmo estando em meio a uma "guerra" pude sentir meu corpo se acalmando.
- Minha filha? Se acalma, é sua mãe... Sou eu!- a voz de minha mãe soou e imediatamente despertei encontrando seu olhar preso ao meu.
Mesmo vendo a imagem da pessoa que mais amo e confio no mundo olhei em volta para ter certeza que eles não estão aqui e me levantei da cama passando as mãos freneticamente pelos cabelos.
Todas as vezes que tenho esses sonhos é a mesma coisa, acordo com minha mãe sobre mim e com o meu coração indo a mil.
- Está tudo bem filha?- ela me questionou vindo atrás de mim e tentando me segurar pelo meu braço.
Ao constatar que tudo estava bem, que eu estava em casa e estava segura, virei-me em sua direção e lhe abracei forte procurando abrigo em seus braços... O meu porto seguro!
- Está tudo bem agora, sua mãe já está aqui...- ela falou enquanto afagava os meus cabelos e me dava o seu colo.
Repousei em seu colo por um tempo e assim que me senti bem o bastante me afastei dela sentando-me em minha cama.
- Já fazia um bom tempo que você não tinha esses pesadelos filha. Eu realmente gostaria de saber o que tanto te assombra. Você deveria ir ao psicólogo Camilla, acho que isso é grave.- minha mãe insistiu mais uma vez nesse assunto.
A minha mãe não sabe qual foi a real história do dia que fui violada, o que contei para ela ao chegar em casa foi que fui assaltada, é tudo o que ela sabe... Não quero que ela saiba disso, nunca. Já me sinto suja demais, ainda sinto o cheiro daqueles homens em meu corpo e tenho todas as memórias vivas em minha mente, é só fechar os olhos que tudo volta mais uma vez a tona.
Sabe o que mais me dói? É saber que aquilo tudo foi minha culpa, eu não deveria ter voltado tão tarde pra casa. Sinto tanta vergonha de mim e de tudo que deixei que eles fizessem comigo... Sinto vergonha toda vez que me lembro de tudo, me sinto um verdadeiro lixo!
Já fazem anos e anos que isso me aconteceu, mas essas memórias parecem atuais em minha mente. Elas nunca se vão e não se tornam leves, é um martírio!
- Assisti um filme de terror ontem antes de dormir e acabei tendo um pesadelo.- a respondi lhe dando uma desculpa qualquer.
Ela veio até mim, sentou- se ao meu lado e olhou em meus olhos de uma forma muito desconfiada.
- Você nunca me contou direito como são esses seus pesadelos, queria tanto poder
tentar te ajudar de alguma jeito.- ela se propôs.Sorri de lado, balancei a cabeça e deixei um beijo rápido em seu rosto já me levantando da cama.
- Obrigada mãe, mas está tudo bem comigo... É melhor eu me levantar agora e ir logo me arrumar para a faculdade.- me esquivei do assunto.
Agora faltam mais ou menos quarenta minutos para minhas aulas começaram, então é muito bom que eu corra bastante. Eu faço psicologia, sinto que só assim poderei me entender. Até hoje sinto vergonha e medo de falar sobre o que me aconteceu, tem dias que me sinto como se fosse explodir de tanta vontade que sinto de contar isso com alguém, mas sei que todos irão me julgar e sentir nojo de mim, e não quero isso.
A sensação de ser abusada é como se você morresse e só o seu corpo permanece de pé.
Já me peguei tentando tirar essa sensação de mim de alguma forma. Já passei horas no banho tentando tirar o cheiro deles de mim e até já passei água sanitária em meu corpo, mas nada dá certo.Me arrumei rapidamente ali mesmo dentro do banheiro e ao sair do mesmo senti um cheiro tão gostoso que fez com que o meu estômago vibrar.
- Mas que cheiro mais gostoso mãe...- disse entrando na cozinha e a encontrando ao lado da pia.
Ela mexia em uma travessa e ao ouvir minha voz se virou em minha direção e sorriu.
- Fiz um pãozinho de queijo pra você.- ela disse ainda sorrindo.
Pão de queijo é a oitava maravilha do mundo pra mim, é a minha comida favorita e me faz lembrar minha infância quando ia passar as férias em Minas Gerais e minha avó sempre fazia para mim.
- Ahh mãe, mas não precisava.- disse a ela mesmo me sentindo muito feliz com essa surpresa.
Ela deixou a travessa de lado, me encarou e cerrou os olhos fazendo uma feição de desconfiada que me fez rir.
- eu sei que no fundo você está feliz por isso!- ela diz me fazendo rir.
Acabo concordando com a cabeça, porque ela realmente tem toda a razão do mundo.
- eu realmente estou muito feliz por isso, mas eu não gosto que a senhora fique se desgastando por causa de mim!- a respondi sendo mais que honesta com ela.
Minha mãe vive reclamando que está cansada, que não aguenta mais e blá blá blá, mas todo santo dia ela acorda as cinco da manhã e faz questão de fazer um cafezinho pra mim e aí de mim se eu reclamar.
- para de besteira, você sabe que eu não consigo ficar muito tempo na cama!- Dona encrenca imediatamente me deu sua resposta.
- O que é muito errado, a senhora devia dormir até um pouquinho mais tarde e aproveitar pra descansar.
Ela não me deu muito assunto e logo me deu as costas indo mexer em outras
coisas... Essa é a minha mãe!- só de pensar em ficar na cama meu corpo começa a coçar. Credo!
Resolvi deixá-la de lado e tomei meu café em paz comigo mesmo e com ela. Nos conversamos e tivemos o nosso momentinho de todos os dias pela manhã.
- Já vou indo mãe, estou atrasada para a faculdade e se não sair agora perco o meu
ônibus...- disse já me levantando damesa com um pão de queijo ainda enfiado em minha boca.Fui até ela, lhe dei um abraço bem apertado e deixei um beijo em seu rosto.
- Então vai rápido menina... Que Deus te acompanhe!- ela se despediu de mim sorrindo de lado.
- Amém mãe, amém! Peguei minha bolsa que estava sobre a mesa e sai correndo pra não perder o ônibus mais uma vez.
A comunidade onde moro é bem longe da faculdade, então tenho que sair de casa todos os dias as seis da manhã e ainda assim tem dias que chego lá atrasada.
Desci o morro o mais rápido que pude e ao me aproximar do pé do morro me deparei com um posto policial e foi impossível não sentir ódio.
Policiais foram feitos para proteger a população, mas alguns se esquecem disso... Eu não odeio todos os policiais, mas já não confio mais em nenhum, nem policias e nem homens. Desde o que me aconteceu ninguém entrou em minha vida e nem vai entrar... Já estou ferida o bastante, não preciso de mais uma cicatriz em meu corpo!
- bom dia!- um dos polícias me cumprimentou quando passei pelo posto, mas não consegui nem olhar em seu rosto e só segui rapidamente para o meu caminho.
O meu caminho para a faculdade foi totalmente perturbado e minha cabeça não parou por um segundo se quer... Até hoje sinto medo quando cruzo com policiais na rua, é como se tudo fosse acontecer novamente.
Acabei chegando na faculdade uns dez minutos atrasada, corri para sala e ao me deparar com o professor virado para a lousa tentei entrar em ser percebida por ela.
- bom dia, Camilla!- a professora falou mesmo estando de costas para mim.
Parei onde estava, sorri sem graça e a olhei acenando com a cabeça.
- bom dia senhora ramiro!- a respondi.
Ela se vira pra mim, me olhou de cima a baixo da forma que sempre faz e cruzou
os braços seriamente.- você deveria levar suas aulas mais a sério, todos os seus colegas pagam para estar aqui, todos chegam no horário e você tem uma bolsa e não a valoriza!- ela me cutucou do jeito que sempre faz.
A encaro calada por alguns segundos e pensei em não falar nada, mas sempre ouço desaforos dos meus professores e dos colegas de classe e já estou tão farta disso.
- eu tive alguns contratempos no caminho, diferente dos meus colegas que tem carros ou motoristas particulares, eu tenho que cruzar a favela e pegar duas conduções!- digo a olhando no fundo dos olhos.
Toda oportunidade que a senhora ramiro tem ela me alfineta, eu não sei o que eu fiz pra ela. Essa senhora já chegou a dizer na frente de toda a classe que eu deveria dar um jeito no meu cabelo, porque assim eu fico igual a uma moradora de rua... Tem dias que eu suporto calada, mas já estou cansada, muito cansada e não vou deixar mais ninguém me tratar assim.