02. Um Castelo Abandonado e Memórias Esquecidas

De fato nós estávamos horríveis naquele desenho, mas ainda era possível reconhecer que éramos nós. Além de mim e do Nicardo, havia mais três pessoas no cartaz. Era uma jovem moça de cabelos encaracolados e com guelras de tubarão, um rapaz que aparentava ser o mais velho e de longos cabelos e, por fim, uma figura que me pareceu extremamente família.

Era muito estranho, mas sentia que já havia passado muitas horas da minha vida com aquela pessoa. Aqueles cabelos castanhos que cobriam as orelhas e os aparentes olhos verdes pareciam muito mais significativos do que os demais, até mesmo do que o Nicardo. 

– Por que estão nos caçando? – perguntei. 

– Agora não é hora para responder essas perguntas! – ele vigiava as pessoas. – Zoira parece não ter mudado muito desde a última vez que estive aqui. 

– Zoira? – perguntei – Espere um minuto! Você já esteve aqui? 

– Sim! – ele olhou para mim e depois se virou para vigiar as pessoas e voltou a olhar para mim – Você também já esteve aqui! 

– Como é que é? – gritei. 

– Quieta! – ele tapou a minha boca – Não chame tanto a atenção. Devemos sair daqui o mais rápido possível. 

– Vocês ouviram algo? – uma voz vinha da rua que fazia esquina com a nossa. 

– Porcaria! – Nicardo sussurrou – Venha!

Corremos para outra rua e ouvi duas pessoas dizendo “olhe lá” e correndo atrás de nós dois. Não sei exatamente o que eram e nem o que queriam, mas estavam furiosos. 

– Quando eu disser três está ouvindo? – Nicardo começava a correr mais rápido. 

– Fazer o que quando você disser três? – perguntei inutilmente. 

– Um, dois, três!

De repente eu sabia o que fazer. Era como se alguém tivesse me enviado um sinal, uma luz e finalmente lembrei o que deveria fazer. 

Como num passe de mágica, minha vontade foi cumprida. Um jato de água perfurou o chão e começou a inundar as ruas levando tudo e todos. Não estava acreditando no que estava acontecendo, mas não estava tão assustada como imaginei que estava. 

– Tudo bem, eu estava pensando em algo com fogo! – Nicardo me pagava no colo. 

– Fogo? – perguntei. 

– Mas ganhamos tempo. – ele sorriu – Agora temos que ser bem rápidos!

Nicardo começou a correr feito um louco e – com um pouco de dificuldade – pude notar o motivo. Esses seres estranhos que estavam nos perseguindo eram exímios nadadores e agora estavam mais rápidos do que antes.

Aos poucos não vi mais ninguém nos perseguindo. Nicardo começou a diminuir a velocidade e sua respiração começou a ficar mais pesada. Também pudera, me carregou no colo quilômetros e quilômetros em velocidade máxima. 

– Por que eles estavam atrás de nós? – perguntei quando ele me colocou no chão. 

– Espere... Ah... Espere um minuto! – ele sentou no chão e colocou a mão no peito. 

– Espero que agora você possa responder algumas das minhas perguntas! – falei um pouco alto. 

– Shhh! – ele colocou o indicador na frente da boca – Quer

atraí-los outra vez? 

– Desculpe! – baixei a voz constrangida – Eu só queria entender o que está acontecendo! 

– Espero que esse lugar ainda seja um bom esconderijo. – Nicardo se colocava de pé – Vamos entrar! Lá dentro eu te conto tudo.

Estávamos de frente para um enorme castelo abandonado. Rodeamos um imenso muro até chagar ao portão. Não foi muito difícil de entrar, o portão estava com algumas de suas barras tortas ou quebradas. O castelo não estava em ruínas, estava apenas velho. Sua cor estava desbotada, havia janelas quebradas e parte da pintura havia descascado, fora isso, o castelo estava em perfeito estado. Novamente tinha a impressão de já ter vivido tudo aquilo antes.

Assim como o lado de fora, dentro do castelo as coisas estavam apenas muito velhas. Haviam coisas quebradas e poeira para tudo que é lado. Mas ainda não era a minha imagem de castelo abandonado. 

A primeira coisa que vi foi uma longa escadaria, com seu tapete vermelho desbotado e empoeirado. Havia uma grande porta a esquerda e outra grande porta a direita, assim como na parte de cima do castelo. No meio, ao fim da escadaria, havia outra grande porta. 

Fiquei fitando aquela porta por um tempo. Algo nela obrigava a minha cabeça a se lembrar. Sentia que havia acontecido algo de muito especial naquela sala, mas o que seria? 

– Lembrou de algo? – Nicardo perguntou.

Neste momento um som, uma melodia, tocada ao piano começou a invadir o local. Era uma melodia triste e dramática, mas ao mesmo tempo romântica e arrebatadora. Era uma belíssima melodia. Senti que já havia ouvido antes, mas não lembrava quando. 

– Você está ouvindo isso? – perguntei. 

– Isso o que? – Nicardo perguntou. 

– Essa música? 

– Desculpe... – Nicardo balançou a cabeça negativamente.

A melodia estava sendo tocada apenas em minha mente. Seria uma lembrança? Eu ainda estava tão confusa com tudo o que estava acontecendo que já não tinha certeza da minha própria sanidade. Foi neste instante que aconteceu. Minha primeira lembrança de verdade.

Abria porta que tanto me intrigava e dei de cara com um imenso salão. Ele era rodeado por enormes janelas e velhas cortinas vermelhas. A única coisa que havia no salão era um velho piano destruído.

"O Oceano" uma moça se virou para mim "É uma composição minha, estava muito ruim?" 

Um clarão tomou conta de minha visão e quando dei por mim estava jogada no chão, com Nicardo me segurando. 

– O que houve? – ele perguntou preocupado. 

– Não sei, acho que... Acho que... Acho que tive uma visão! – estava tonta. 

– Uma visão? – ele se assustou. – Não teria sido uma... Lembrança? 

– Uma lembrança? – estava confusa. 

– Quem está ? – uma voz feminina ecoou no salão. 

– Venha! – Nicardo me pegou no colo e foi para trás da porta. – Não saia daí. 

Nicardo me colocou sentada no chão e pegou uma espada que estava pendurada na parede, perto de uma das janelas. A espada parecia um pouco enferrujada, mas ainda tinha um pequeno brilho letal e ameaçador.

Nicardo voltou para trás da porta e esperou até a pessoa chegar perto. Notei que os passos começaram a se aproximar, se aproximar, se aproximar até que BLANG, BLANG! 

As espadas de ambos se cruzaram. Os dois baixaram as armas e pareceram extremamente aliviados. Olhei melhor para a moça e reconheci na mesma hora. Era a moça que vi no cartaz e a moça que apareceu em minha lembrança. 

– Thalisa! – Nicardo suspirou aliviado. 

– Nicardo, Beatriz! – a Thalisa pareceu muito feliz – Não acredito que vocês voltaram! 

– Espere! Nós já nos conhecemos mesmo? – perguntei. 

– Acho que agora já está na hora de você saber de tudo! – Nicardo ficou sério.

Nicardo me contou que estávamos em um lugar chamado Monterra. Este mundo era parte de outra dimensão, bem distante da Terra e que este lugar estava em uma grande guerra. Ele disse que fui chamada para este lugar há um ano para ser a salvadora deles, mas eu quis desafiar a profecia e acabei fazendo com que Monterra caísse em desgraça e que Leone, o grande vilão à frente da guerra, ganhasse poder absoluto para fazer o que quisesse com Monterra.

Ele contou que fui mandada para Terra outra vez para a minha própria proteção por Alina, a rainha de um reino chamado Nebro. Alina havia sido capturada por Leone e, se não fosse por um pedido meu para Damaris, a primeira rainha de Nebro, ela teria morrido. 

Toda essa história pareceu um tanto absurda para minha compreensão, mas se comparasse com os últimos acontecimentos de minha vida, parecia uma história bem coerente.

Tentei forçar minha mente a me lembrar de tudo o que me contavam, mas de nada adiantou. O máximo que consegui foi uma bruta dor de cabeça. 

– Tem certeza de que esse lugar continua sendo seguro? – Nicardo perguntava para Thalisa. 

– Seguro este lugar não é, mas ele continua sendo o lugar com o menor índice de visitação do reino. – Thalisa sorriu – De vez em outra alguns guardas aparecem, mas eu tenho um esconderijo aqui dentro. 

– Acha que podemos passar a noite aqui? – Nicardo perguntou. 

– Sim, podem. Como nos velhos tempos? 

– Como nos velhos tempos! – Nicardo sorriu.

Saímos do salão e entramos na porta da direita. Havia um grande corredor e várias portas. Algumas estavam abertas, outras simplesmente arrombadas, mas não olhei o que tinha dentro. Novamente uma forte sensação de que já havia vivido aquilo invadiu meu peito. Era como se já tivesse feito esse mesmo trajeto, o que – pelo que me contaram – eu realmente fiz.

 – Teremos que ficar todos no mesmo quarto. – Thalisa abria uma porta que quase tombou. – Os outros quartos não estão “habitáveis”. 

– Continua com seus estoques de lençóis? – Nicardo perguntou. 

– Sim! – ela sorriu.

O quarto era bem grande e a velha cama que estava ali também. Poderíamos dormir os três tranquilamente e ainda sobraria espaço para mais uma pessoa. Mesmo que não coubesse, havia outro colchão ao lado da cama.

Havia também um velho guarda roupa, ao lado de uma grande janela aparentemente emperrada e uma porta dentro do quarto que estava aberta e revelava uma banheira.

Não consegui tirar aquela lembrança de minha cabeça. Estava tão atordoada com tudo o que estava acontecendo comigo que não consegui dormir. Estava pensando não só na lembrança, mas estava pensando na história que me contaram e em tudo o que eu havia esquecido. Mas por que eu havia esquecido? Quando e como eu esqueci coisas tão importantes? Cheguei a pensar que estava tendo uma noite longa e que esse era o sonho mais estranho de todos que vinha tendo, mas infelizmente sabia que não era um sonho.

Quando finalmente dormi – horas depois – tive um sonho. Ou uma recordação. Eu começava a questionar as coisas que surgiam em minha mente desde que soube de toda a “verdade”.

Eu estava em uma floresta e sentado no topo de uma árvore estava um jovem. Não conseguia ver seu rosto, mas seu braço sangrava muito. Ele parecia estar prestes a desmaiar e eu queria muito fazer alguma coisa, mas descobri que era inútil. Eu não estava na floresta, estava assistindo tudo dentro de uma sala com paredes em vários tons de roxo. 

Eu me olhava no espelho e via uma mulher de cabelos loiros e vestido rosa. A mesma que eu havia visto em meus sonhos algumas vezes depois que voltei do coma. Ela me olhava aflita e se perguntava sobre algo que não conseguia ouvir. Então reparei que ela não estava falando comigo, mas com outra pessoa. 

Era uma sombra negra e aterrorizante, mas a mulher de vestido rosa não se deixava intimidar e parecia encarar o homem. Aos poucos o homem entrou em meu campo de visão e uma foice surgiu de sua mão. Ele estendeu a foice e mirou na cabeça da mulher e foi com tudo. 

– Aaahh! – acordei antes de presenciar a cena.

Eu estava sozinha na cama. Não havia mais ninguém no quarto. Entrei em desespero. O que teria acontecido com os dois? Por que eles me deixaram sozinha?

Comecei a andar pelos corredores, procurando pelos quartos destruídos. Ruídos assustadores vinham de cada passo que dava, sons estranhos apareciam a cada vez que encostava na porta e o eco dos meus gritos pareciam gargalhadas de fantasmas.

Segui para as escadas e desci correndo. Não sei exatamente dizer qual caminho eu havia pego. Estava tão desesperada que não olhava por onde andava, apenas andava. Talvez eu não estivesse emocionalmente preparada para enfrentar aquele mundo estranho sozinha.

Entrei em uma porta e dei de cara com o que deveria ser um jardim. O que deveria ter sido um belo jardim. Estava todo congelado, mas ainda podia sentia a vida que um dia passou por ele. Havia várias árvores, sem folhas, e vários canteiros que deveriam ser repletos de flores. Havia também um pequeno chafariz, com um cavalo marinho esculpido e havia pedras azuis fazendo um caminho circular por todo o jardim.

Eu não sabia explicar, mas estava sentindo que já havia visto aquele jardim vivo antes. Vendo as minhas últimas descobertas, provavelmente eu realmente havia visto aquele jardim em sua melhor forma. Era uma pena que eu não lembrasse como esse jardim era antes, mas por algum motivo eu sentia que veria ele incrível, forte e vivo novamente. 

– Você está ? – era a voz de Nicardo. 

– Por que você sumiu? – corri e o beijei – Fiquei tão assustada. 

– Lembrou de mais alguma coisa? – ele perguntou. 

– Eu estou tentando não forçar minha mente. – respondi de cabeça baixa. 

– Entendo. – Nicardo não pareceu muito decepcionado. 

– Mas por que você sumiu? – voltei a minha pergunta – E a Thalisa, onde ela está? 

– Thalisa! – Nicardo corrigiu.

– Que seja! – ainda estava um pouco nervosa.

– Estávamos montando guarda! – começamos a andar pelo jardim – Eu fui primeiro e depois a Thalisa trocou de lugar comigo. Agora que já amanheceu, resolvemos ficar os dois vigiando. 

– E por que não me acordaram? – perguntei irritada. 

– Você está passando por um momento difícil – Nicardo segurava em meus ombros – resolvemos deixar você descansar o quanto fosse necessário. 

– Sim, sim. – tirei suas mãos de meus ombros – Mas não façam isso outra vez! Eu fiquei muito assustada. 

– Está tudo bem, não iremos fazer de novo! – ele sorriu. 

– Obrigada. – retribui o sorriso. 

– Você está preocupada? – ele olhava intrigado comigo. 

– Não sei se a palavra certa seria essa. – eu disse – Talvez... Assustada. São tantas informações e em tão pouco tempo, ainda não consegui digeri tudo isso. 

– Eu imagino. – ele sorriu. 

– Será? – achei graça. 

– Você pode não acreditar, mas eu sinto o que as pessoas sentem. 

– Você também? – fiquei surpresa. 

– Na verdade essa era uma exclusividade minha no grupo – ele sorriu – você roubou isso de mim. Sua ladra!

Nicardo pulou em mim e começou a me encher de cócegas. As minhas gargalhadas e as gargalhadas dele faziam parecer que nada disso estava acontecendo. Tudo não havia passado de um sonho estranho. Mas eu sabia que não era um sonho estranho. 

– Nicardo... – eu estava prestes a tocar em um assunto perigoso – E a outra pessoa. Aquele que não posso falar. Ele é daqui também, não é? 

– Beatriz, esse assunto agora? – ele fechou o rosto. 

– Acho que chegou o momento. – cheguei mais perto. 

– Não, não é o momento! – ele ficou chateado. 

– Claro que é o momento! – o segurei pelo braço – Não existe outro momento melhor. 

– Será que você não entende? 

– Não! – respondi automaticamente – Existem várias coisas que eu preciso lembrar. Quem sabe se eu me lembrar dele eu não consiga lembrar de outras coisas? 

– Não! – ele quase gritou – Você pode lembrar de tudo, menos dele! 

– Por que essa agressividade? 

– Você realmente não entende? – ele perguntou – Será que não consegue sentir? 

– Eu... Eu... Eu não sei! – coloquei as mãos na cabeça – Eu não sei, está tudo tão confuso, tão estranho. 

Nicardo começou a me fitar triste. Ele suspirou e espremeu a boca. Sabia que estava sendo cruel com ele, mas não sabia explicar o motivo. Eu estava vivendo no momento mais estranho e complexo de toda a minha vida. 

– Sim, ele era de Monterra. – Nicardo começou a falar – Seu nome era Alexis, ele era o príncipe herdeiro de Nebro. Ele é o irmão do Neandro. 

– Ele nos acompanhou durante a primeira vez que estive aqui? – perguntei mais calma. 

– Foi ele quem te achou! – ele não olhava para mim. 

– E por que você não falou nada dele para mim quando estava contando o que aconteceu um ano atrás? 

– Eu não podia. E complicado. – ele fitava o chão. 

– E como ele era? Como era a minha relação com ele? A relação dele com você? Vocês eram amigos, digo, nós três? 

– O que você está me perguntando? – Nicardo parecia decepcionado. 

– Nicardo, Beatriz! – Thalisa chegava apavorada – Ainda bem que encontrei vocês! 

– O que aconteceu? – Nicardo perguntou. 

– Ouvi pessoas entrando pelo portão! – Thalisa vigiava as janelas – Eles estão entrando no castelo. 

– Eles? – fiquei assustada – Eles quem? 

– Os Leons! – Thalisa respondeu rápido. 

– Leons? – perguntei. 

– São guardas de Leone – ela nos puxava para fora do jardim. 

– E nós não podemos enfrentá-los? – Nicardo perguntou. 

– Está doido? – Thalisa pareceu rir para não chorar – Eles são seres criados pelo próprio Leone, não são coisas que se possam ser vencidas com facilidade. 

– Mas nos já destruímos coisas bem piores! – Nicardo ainda queria lutar – Lembra do dragão? 

– Sim, mas naquela vez estávamos em seis! – Thalisa respondeu. 

– E o que vamos fazer? – perguntei desesperada. 

– Eu acho que disse que tenho um esconderijo?

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