CAPÍTULO 2

Uma de minhas melhores habilidades é minha grande capacidade de memória, não apenas de lembrar diálogos, mas de lembrar até mesmo de pequenos detalhes. Isso me facilita muito quando descrevo as cenas de crime para meus superiores, cada detalhe é muito importante para solucionar cada caso. Recordo-me que minha mãe sempre me incentivou com atividades de memórias, percebendo desde cedo essa habilidade. Como ela sempre dizia, um dia isso seria de grande utilidade - e de fato, hoje o é.

Era como fotografias, eu observava cada detalhe e assim gravava em minha memória. Porém, infelizmente, essa não foi uma habilidade que adquiri ao longo da experiência. Desde criança faço isso, portanto toda cena do assassinato que presenciei ainda está guardada em minha memória, como se fosse recente.

Estava voltando à minha cidade natal para um evento - um casamento de uma amiga, para ser mais específica. O ônibus passou pela estrada que ainda era de terra. O galpão ainda abandonado era escondido por outras casas que se faziam presente nessa estrada.

Aumentei o som da música de meu celular e tentei me concentrar no som que tocava alto pelos fones de ouvidos.

 “Você possui um trauma” - lembrei-me de quando minha terapeuta disse isso no meu primeiro surto. Foi quando estava atendendo um caso, a viatura que eu estava tinha pegado a rota desse crime no mesmo instante que fizeram a denúncia, então fomos os primeiros a chegar. O corpo da vítima estava desfalecido no chão da estrada e me fizera estremecer por lembrar da cena que havia presenciado quando criança. Não me movi, eu estava em choque. Todos me chamavam, eu podia ouvi-los, mas não os responder. O ar não chegava até os meus pulmões, desmaiei.

Vi-me obrigada a procurar ajuda de um terapeuta que confirmou tudo aquilo que eu já sabia. Eu tinha um trauma de infância. Presenciei um assassinato e não fora encontrado os assassinos. Isso me atormentava até os dias atuais.

Nunca contei para meus colegas de trabalho o motivo de eu ter desmaiado, mas depois desse acontecimento todas as minhas tentativas de trabalhar na parte investigativa foram recusadas.

Eu não tinha problemas com esses tipos de cenas - se tivesse, não trabalharia com isso - mas existiam características que faziam minha mente esvaziar e apenas lembrar do passado, características nada raras, infelizmente. Vítimas mulheres e testemunhas crianças.

Desci do ônibus e fui até a casa de minha mãe, que me recebeu com o maior sorriso que ela podia dar:

— Estava com tanta saudade — falou me abraçando, enquanto pegava de minhas mãos minha mochila.

— Também estava — respondi entrando junto com ela em casa.

— Juliana deixou um vestido para você — disse minha mãe me acompanhando até meu antigo quarto, onde deixei minhas coisas. Em cima da cama estava estendido um vestido longo, azul claro com delicadas pedrinhas que acompanhavam o decote. — Ela comentou que você estava tão atarefada com suas coisas que esqueceu que, como madrinha, deveria se vestir com a mesma cor que as demais.

— Sou uma péssima madrinha, não é? — falei segurando o vestido, torcendo para que não ficasse nem muito apertado e nem largo demais.

— Mas uma ótima policial — animou minha mãe. — Não podemos e nem deveríamos querer ser boas em tudo.

Esbocei um sorriso.

Enquanto esperávamos dar o horário para nos arrumar, minha mãe trocava o canal da televisão repetidamente, descontente por não achar nada que quisesse assistir - por fim desligou a TV e, olhando para mim, falou:

— Filha, você precisa vir mais vezes. Sinto-me tão sozinha aqui.

— Por que não vem morar comigo?

— Você sabe que não gosto de cidades grandes.

Desde que saí dessa cidade, raramente a visitava. Se eu voltasse, reviveria as cenas que buscava tirar de minha memória, cenas que há muito tempo eram desconfortáveis.

— Não é tão grande assim — comentei e o silêncio perdurou vários minutos. Os sons da televisão não mais abafavam esse clima estranho, então olhei rapidamente o horário e levantei. — Hora da madrinha se embelezar — descontraí indo para o quarto.

Na igreja cumprimentei brevemente os pais da Juliana e me juntei aos padrinhos. Um homem acompanhado de uma mulher me chamou a atenção. Lembrei-me de seu nome e de onde o conhecia. O detetive Erick estava em minha frente como padrinho.

— Oh, detetive Garcia — falei.

Ele me olhou e apenas me cumprimentou com um balançar de cabeça.

— Precisamos entrar, logo a noiva chegará — sua acompanhante disse.

— Precisamos esperar a Elisabeth — outro homem, que julguei ser um conhecido do noivo, falou.

Passaram-se mais vinte minutos e, novamente a acompanhante de Erick disse:

— Vamos.

— Espere. Geralmente ela demora muito ao usar o banheiro? — Erick perguntou já na intenção de investigar sua demora.

— Não sei — disse a garota que já o puxava pelo braço.

Então, eles entraram na igreja e, logo atrás, nós entramos, sorrindo e acenando para os parentes dos noivos. Posicionamo-nos na primeira fileira próxima ao altar. Ao lado dos padrinhos dos noivos, havia apenas um homem solitário, sem sua acompanhante. Aonde será que ela foi?

Quando a noiva entrou ficamos em pé até ela chegar ao altar juntamente com o noivo. Após os votos e agradecimentos, os dois saíram correndo no corredor, receberam uma chuva de pétalas e arroz - uma forma de tradição para abençoá-los.

Erick se aproximou de mim enquanto estávamos dispersos com a comemoração.

— A garota ainda não apareceu — sussurrou ao meu lado.

— Vou ao banheiro verificar, pois esse foi o último lugar que foi vista — falei e Erick me seguiu.

Ele ficou ao lado de fora. Empurrei quase todas as portas dos banheiros e todas abriram com facilidade, mas uma delas não abriu.

— Quem está aí? — perguntei já em alerta.

A porta se abriu, era a mãe da noiva.

— Estava tão apurada, achei melhor vir antes da festa — disse constrangida.

— Por um acaso, a senhora viu a madrinha... — interrompi meu pensamento tentando me lembrar do nome que o acompanhante havia citado. — Elisabeth?

A senhora franziu a testa na tentativa de lembrar, logo se recordou de quem estava falando.

— Ah, Elisabeth... não a vi. Aconteceu alguma coisa?

Para não a preocupar, apenas balancei a cabeça em negativo.

Quando sai do banheiro, a garota que acompanhava Erick estava em frente a ele. Mas Erick se virou em minha direção assim que sai do banheiro e, sem esperar que o mesmo questionasse algo, fiz um movimento em negativo como resposta.

— Precisa de carona até a festa? — disse solícito.

— Pensei que a carona fosse para mim — reclamou a garota.

— Além do lugar do motorista, há mais quatro lugares — ele fez questão de lembrar.

— Não se preocupe, eu irei junto com uma amiga — eu disse para evitar mais atrito entre eles.

— Então, nos vemos lá — falou dando as costas para mim, sua acompanhante o seguiu logo atrás, acelerando os passos para permanecer ao seu lado.

Chegamos logo atrás do carro de Erick, não consegui reparar na decoração quando desci do carro. Juliana estava do lado de fora, junto aos convidados. Havia algo errado. Estavam apavorados. Seria uma maneira estranha de entrar num local de festa.

— O que aconteceu? — perguntei me aproximando da noiva.

Suas mãos trêmulas apontaram em direção à chácara.

— O que houve? — disse Erick repetindo minha pergunta.

Não esperei Juliana responder, corri em direção ao local e pude ouvir os passos acelerados de Erick atrás de mim.

Engoli em seco quando visualizei o que apavorava aos demais. Uma das madrinhas encontrava-se suspensa no ar por uma corda que prendia seu pescoço. Logo após olharmos a cena, percebemos que era Elisabeth, a madrinha que já estava sumida desde a cerimônia.

— Temos um suposto caso de suicídio, preciso de ajuda aqui — Erick já falava ao telefone.

Eu continuei parada no mesmo lugar.

— Isso não é um suicídio. Por que ela o faria, ainda mais na festa de um casamento?

— Não sei os sentimentos dela, mas se isso fosse um suicídio, aquela cadeira estaria no lugar errado — Erick disse concordando com o meu pensamento e aproximando-se ainda mais da vítima, seus pés suspensos quase tocavam o seu rosto.

— Veja! – ele apontou para a cadeira. — Essa cadeira está alguns centímetros a frente dela, seus pés deveriam tocar no encosto da cadeira quando deixou a corda sustentar seu corpo, mas como observamos aqui, essa cadeira não mexeu nenhum centímetro após colocada — Erick se abaixou próximo à cadeira. — Não foi nem mesmo empurrada.

Ouvi o som da sirene se aproximando e esperamos os policiais tomarem nossos lugares. Quando saímos, Erick comentou:

— Mais um caso que aparenta suicídio.

— Mais um? — perguntei.

— Sim, o mesmo que o da criança.

— Como está esse caso, afinal?

— As câmeras de vigilância dos estabelecimentos próximos foram todas apagadas. Porém, além dos relatos das crianças, o terreno da casa é coberto por grama e um rastro amassado foi encontrado até o muro dos fundos da casa. O que me faz imaginar que a casa de fato possa ter sido invadida, pois esse rastro é recente e a família afirmou não ter nenhum animal que pudesse ter feito.

— Espero que você consiga achar o assassino — falei e, então fui até Juliana que ainda estava atônita ao lado do marido.

Apenas a abracei sentindo seu coração bater acelerado contra meu peito.

— Seria bom dar um calmante para ela — recomendei ao marido, mas ele também parecia assustado, então retifiquei-me: — Para vocês dois na verdade.

Os convidados foram se retirando pouco a pouco, Juliana e seu marido haviam sido levados por um tio dela. No fim sobrou apenas eu, minha mãe e Erick.

— Posso levá-las para casa? — Erick ofereceu.

No carro pelo retrovisor pude perceber que minha mãe olhava para Erick o tempo todo. Parecia observar sua aparência e ao mesmo tempo parecia que queria dizer algo, até que o silêncio foi quebrado por ela.

— Você trabalha com minha filha?

— Somos de departamentos diferentes, mas de certa forma, sim, trabalhamos.

— Qual é o seu nome, meu filho? — minha mãe tinha essa mania de chamar meus amigos de filhos. Erick ficou um pouco em silêncio por essas palavras, não era todo mundo que aceitava ser chamado de filho por uma mulher desconhecida.

— Erick — ele respondeu.

— Erick, você já morou nessa cidade?

— Passei um período de férias aqui, por isso que conheço o noivo — Erick estacionou em frente a nossa casa. — É aqui? — perguntou.

— Sim, obrigada — respondi

— Não quer entrar para tomar um café? — minha mãe sempre cheia de bons costumes.

— Preciso ajudar no caso de hoje — respondeu.

Suas respostas sempre curtas decepcionariam qualquer um que tentasse uma conversa com ele.

Saímos do carro e esperamos que o mesmo desse a partida.

— Como você está se sentindo? — minha mãe perguntou, voltando sua atenção a mim.

— Estou bem e você?

— Para falar a verdade, fiquei preocupada se isso te traria lembranças.

Virando-me para encará-la falei:

— Tudo me lembra do passado, qualquer cena que envolva uma mulher ou crianças. Até mesmo voltar para esta cidade me faz lembrar. Então, não me peça para vir visitá-la. — disse irritada.

— Desculpe-me se isso a faz sofrer.

Suspirei profundamente. Sabia que não podia colocar minhas emoções sobre minha mãe, por fim eu disse:

— Sei que não é sua culpa mãe, mas é difícil aceitar o que aconteceu com aquela mulher no passado e o que continua acontecendo com várias outras pessoas. Eu me tornei uma policial pra conseguir justiça e sabe o que estou fazendo? Estou apenas resolvendo brigas de bar.

— Tudo tem o seu tempo, Catarina — afirmou ela, e então me puxou para seus braços e sussurrou novamente, mas como se houvesse um significado a mais. — Tudo tem o seu tempo.

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