Capítulo 03

Donna Reid

Horas mais tarde, já na minha casa, ouvi uma voz familiar perguntar.

"— Como está se sentindo?"

"— Estou com uma dor de cabeça horrível. Parece que vai estourar a qualquer momento."

"— Não pode ficar fazendo esse tipo de coisa. Em pouco tempo não estarei mais aqui para lhe socorrer..." — estreitei os olhos para ela, imaginando o que aquilo significava. "— Vou viajar. Esqueceu o trabalho voluntário que aceitei na América Central?"

Era verdade, eu tinha esquecido. Ela se sentou na beirada da minha cama e com uma voz conciliadora, começou a falar.

"— Donna, eu entendo que quando era mais nova, em se ver numa situação difícil com a perda dos pais, tenha se revoltado, eu mesma tive meu momento. Mas os anos se passaram e agora você é uma mulher adulta e, o que está fazendo da sua vida? Está se tornando uma pessoa sem conteúdo, sem moral. Diminuindo-se por nada."

"— Você não sabe do que está falando" — revidei.

"— Sei que agindo desse jeito não está prejudicando ninguém além de si mesma. Hoje você ainda tem a mim e a seu tio, mas o que vai acontecer quando eu não estiver aqui e ele lhe der ás costas?" — não respondi, as lágrimas quentes caiam em abundância, nublando minha visão. "— Tenho certeza que seus pais não aprovariam esse comportamento e teriam vergonha do que está fazendo. Sinto muito se minhas palavras são duras, mas é a verdade."

Ela se curvou me dando um beijo de despedida e se foi sem dizer mais nada.

Por dois dias seguidos, eu me afundei em autolamentação, me depreciei de todas as formas, me sentia desprezível pelo que tinha me tornado, então quando já não tinha o que chorar, tomei uma decisão.

Liguei para Victória e disse que iria junto em sua viagem, relutante, ela tentou argumentar, mas eu já tinha resolvido. Seria meu recomeço em um lugar estranho, onde as pessoas me veriam por quem eu era e não pelo que minha família tinha. Uma folha em branco, onde eu poderia ser a Donna de antes.

Convencer meu tio não seria um problema, era maior de idade e dona da minha vida, e mesmo que tivesse com a intenção de um recomeço, era difícil esquecer o que ele tinha feito. Ainda não me sentia preparada para ser a doce sobrinha que ele conheceu anos atrás. Por isso quando o informei de minha decisão, terminamos de forma acalorada.

"— Donna, é um lugar remoto e cheio de..."

"— Não estou pedindo sua permissão."

"— Mesmo assim, não quero que vá."

"— Você não é meu pai..."

"— Prometi a ele que cuidaria de você."

"— Não cuide, eu não preciso" — ele me olhava magoado. "— Amanhã neste mesmo horário, estará livre de mim."

Saí da mesa de refeições e fui para o meu quarto. Mesmo diante de minha impertinência, ele me levou ao aeroporto no dia seguinte e suas últimas palavras penetraram meu coração, mesmo contra minha vontade.

Volto ao presente sentindo um toque leve em meu braço.

— Señorita! — disse o senhor Morales, me olhando de forma curiosa. — Parecia perdida em pensamentos.

— Desculpe. Realmente, estava lembrando-me de casa — fiz um carinho na bochecha da garota que estava ao seu lado. — Estou tentando ligar e não consigo.

Leti'e' mix ba'al u yóojel (ela não sabe de nada) — disse a menina em sua língua nativa.

Eu era especialista em línguas, além de espanhol e inglês, também era fluente em francês e italiano, mas me deparei com a barreira de algumas línguas antigas quando cheguei aqui, as quais, só os nativos eram habituados a falar.

— Maylin, já expliquei para não usar dialetos na presença da señorita, ela pode sentir-se desconfortável e achar que estamos escondendo algo.

— Perdón — pediu e virou-se para contemplar a bela paisagem da baía. A água era de um azul profundo e o sol brilhava no céu de anil.

— Tudo bem senhor Morales, mas o que ela disse?

Ele soltou um suspiro, me fazendo suspeitar que algo não estava certo.

— Há dois dias tivemos rumores de uma força rebelde agindo em alguns vilarejos e na capital, derrubando linhas de comunicação, nos isolando do restante do mundo. E hoje se confirmou que eles estão vindo para cá. Precisa ir embora o quanto antes, eles são sanguinários e não gostam de estrangeiros — senti um calafrio atravessar meu corpo, apesar da temperatura amena que não ultrapassava os 22 graus. — Eles costumam torturar estrangeiros em praça pública para servir de exemplo e ter as exigências atendidas.

— Mas sem linha, como vou contatar alguém nos Estados Unidos? E não vão me deixar passar se me virem, não tenho como sair daqui...

— Não tem e se eles souberem quem a señorita é na verdade, não hesitarão em tê-la como uma refém de guerra, para barganha.

Sinto meus olhos se arregalarem.

— Meu Deus! — exclamo, respiro fundo tentando me acalmar. — Vamos pensar em algo.

— Logo eles chegarão a Santa Rosa, deveria ter ido quando sua amiga se foi. Meu país é um lugar instável.

— Não se preocupe com isso. Só preciso me manter escondida até que esse motim acabe, talvez eles nem venham para essas bandas.

— Gostaria de ter sua confiança. Mas sei como as coisas funcionam por aqui, vamos ter que contar com a ajuda de Nossa Rainha do Rosário para protegê-la — eles são muito devotos e desde o início de sua colonização, tem recorrido aos favores de sua virgem protetora. Faço um aceno com a cabeça em concordância. — Eu sinto muito.

Seu olhar castanho demostra tristeza, ele passa por mim, vai até a garota, pegando em sua mão e eles saem. Caminho até onde ela estava minutos antes e fico olhando pela janela. Suspirei frustrada e temerosa. Quando pensei em vir para cá, jamais imaginei passar por uma situação como esta. Claro que quando tomei minha decisão, corri para o notebook para pesquisar um pouco sobre a região, o que não me ajudou muito: o que mais encontrei foram índices de violência, informações sobre clima e lugares turísticos. Não era o que eu procurava. Eu queria saber como é morar na Guatemala e não como ser um turista nesse lugar.

Embora não fosse um desses países em que se pode vir para aventurar um novo começo, ou tentar fazer a vida, pois o índice de desemprego no país é bem alto, era o que tinha no momento. Eu queria sim, um recomeço, mas de uma forma diferente. O trabalho voluntariado me daria essa oportunidade.

Quando cheguei, aberta a novas perspectivas, comecei a observar tudo: os lugares, as pessoas. A cultura é muito rica e colorida; uma verdadeira mistura de elementos do povo nativo Maia e da colonização espanhola, o que dão características únicas a esse país. Senti-me imensamente feliz ao chegar aqui, o povo Guatemalteco é um povo sorridente, calmo e receptivo. Muito diferente da imagem de país violento que eu tinha antes de vir para cá. É claro que sim, a violência existe. Principalmente nas chamadas áreas rojas, locais que normalmente não são frequentados por estrangeiros, a não ser aqueles que fazem algum tipo de trabalho voluntário, assim como eu. Porém, eu sempre estava acompanhada de algum morador local ou de alguém da administração do serviço voluntariado.

Temo que isso agora não será sinônimo de segurança e este país, onde meses atrás representou minha liberdade, agora será minha prisão por tempo indeterminado.

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