4. A Escolhida

- Precisamos levar a garota até a Rainha logo, Leiva! - Dizia uma mulher no meio do grupo. As outras guerreiras estavam contrariadas.

- Leiva, eu vou! Já percebi que é a única saída! - Consegui dizer aquilo no meu momento de maior coragem e idiotice, até então. Leiva me olhou, sorriu pra mim, enquanto acariciava minha face e disse:

- Certo, se vamos fazer isso, vamos pelo menos levá-la pelo centro da cidade até o castelo de água, pegamos a rota das quedas. Acredito que ela, junto da rainha, não terá mais uma oportunidade de aproveitar a nossa única diversão por aqui.

- Rota das quedas? Ebaaa! Precisamos que mais condenadas apareçam por aqui mais vezes - disse uma das garotas que, até então, parecia tão tímida. Negra, rosto como se fosse de porcelana, quase uma boneca. Ela, imediatamente após o comentário, tomou um tapa atrás da cabeça de outra que estava ao seu lado, que fisicamente era o oposto desta: grande, forte, pele mais amarelada, cabelos escuros cortados na altura da orelha, mas nem por isso menos bonita. Aliás, com exceção da velha bruxa, todas as mulheres eram muito bonitas e no meio disso tudo me peguei pensando se eu poderia estar mais bonita do que em minha outra vida. Olhei procurando um espelho em algum lugar, tentei buscar o reflexo na água, mas não consegui me enxergar.

- Olha ela ali! Já ficou doidinha, coitada! Tá olhando pra água como se fosse um bicho querendo atacar - comentou outra guerreira.

- Eu só queria ver meu reflexo, saber como estou… Percebi que até agora eu ainda não tinha conseguido me ver. Vocês todas são tão lindas que pensei que talvez fosse alguma coisa desse mundo que nos deixasse assim. Por que não consigo ver meu reflexo? - Perguntei, muito curiosa.

- Parece que a intenção desse mundo é nos abalar psicologicamente. A ironia aqui é de melhorar nossa aparência, corrigir pequenos defeitos que achávamos que nosso corpo tinha, sem nunca podermos ver como estamos. Somos lindas num planeta onde não existe possibilidade de reflexo para que consigamos nos enxergar e onde não existe sexo oposto, apenas mulheres vem pra cá, o que não seria um problema se a maioria não fosse na maior parte do tempo heterossexual em suas vidas anteriores. - Leiva me explicava enquanto começou a caminhar, deu um simples aceno com as mãos e as outras começaram a seguí-la, eu fui andando ao seu lado. - Vamos indo e eu te explico algumas coisas sobre esse mundo. Não existe tecnologia aqui e todas as técnicas que possuímos são muito primitivas. As matérias-primas são limitadas e escassas. Não sei se você reparou, não temos árvores, não temos portanto madeira. Quase toda a vegetação é rasteira ou de galhos que não poderiam ser aproveitados de alguma forma. Isso tem seu lado bom pois permite esse cenário belíssimo, esses jardins floridos, de uma natureza exuberante. Também não existem metais e os elementos naturais, assim como os elementos químicos são extremamente limitados. Sentimos fome mas não comemos. Não temos como comer. Por mais que tentássemos ingerir algo, nosso corpo não aceita e vomitamos. A Ogra, uma gigante, que vive numa das cidades afastadas do planeta, uma vez arrancou os braços de uma recém chegada, em uma única puxada e tentou comer. Ela teve uma congestão com uma dor terrível e morreu. Alguns dias depois estavam ambas ressuscitadas novamente. Além de nós, os únicos seres que habitam esse planeta são as algas. Se elas tocam a pele de alguém, essa pessoa fica sentindo uma dor terrível mas em estado de coma. Esse coma pode durar dias, semanas, meses, anos, já houveram casos de décadas. Durante todo esse tempo a pessoa sente dor, como se pegasse fogo. Existe uma casa onde algumas recuperadas do coma fazem tratamento, pois sua mente se perdeu na dor e elas não conseguem mais ser como antes, ficam loucas. A única que pode tocar nas algas é a Rainha. Ela consegue pegá-las e controlá-las. Sob o comando da Rainha, as algas tem ainda o poder de transformar qualquer coisa em água. A Rainha vive aqui há séculos. Existe uma profecia antiga que tratava da Escolhida. A profecia dizia que uma afogada controlaria as algas e seria Rainha e um dia ela teria o poder de acabar com a dor de todas as outras e colocar fim na maldição do planeta. Quando ela conseguiu controlar as algas e descobriu o que elas faziam, ela se tornou Rainha. Ela diz que conversa com Deus e que somente ela pode terminar com nosso martírio desse mundo, mas que não pode fazer isso de uma vez. Criou clãs, exércitos e faz jogos com as combatentes para escolher quem merece ser morta e sair daqui.

Eu ouvia toda aquela história e não conseguia acreditar. Pensava muitas coisas. Ficava imaginando que se Deus existia, porque ele permitia que aquilo acontecesse? Tentava entender se o que eu tinha feito em minha outra vida era tão ruim para merecer aquilo, para estar ali. Ao mesmo tempo,eu estava encantada com o que eu estava vendo. O caminho que as guerreiras tomaram era espetacular. Mesmo aquilo sendo um inferno, os cenários eram incríveis. O show que as águas faziam por todos os lados, com explosões de cores, feitas com as luzes das duas estrelas que funcionavam como Sol para aquele lugar. A luz de cada uma delas não era tão forte mas iluminava o lugar todo, e quando se encontravam causavam a impressão do que eu me lembrava de um breve momento do nascer do Sol.

- É aqui! Vamos aproveitar, não é sempre que podemos fazer isso e provavelmente pra você vai ser a única vez que conseguirá vir para esse lugar - Leiva disse, apontando para um desfiladeiro. Quando me aproximei a imagem foi chocante. Nunca vi nada igual. Era como um parque aquático dos sonhos, onde as águas formavam tobogãs que desciam e subiam numa cachoeira que se invertia.Como se o fluxo dela estivesse ao contrário. As ondas iam para as margens na parte baixa e voltavam, fazendo um túnel.

- Vamos garotas, pulem e estiquem bem o corpo, se entrarem só de leve na onda serão atiradas longe, então, cuidado! - Leiva orientou antes de pular - Agoraaaaa! - E saltou!

Eu fui olhando elas pularem e senti um frio na espinha, me travando. Bom, àquela altura, o que eu tinha a perder? Saltei no precipício e entrei no tobogã de água.

A sensação que tive não podia ser expressa em palavras. As ondas batiam em meu corpo e parecia que jogavam ping-pong comigo. Eu girava, ia e voltava, era arremessada longe e alto e caia suavemente nos braços de outra onda e cada um dos movimentos me envolvia de cores, que também me rodeavam, como se eu fosse atacada por jatos de tinta que explodiam e brilhavam. O barulho era semelhante ao mar batendo em rochas, mas ao mesmo tempo com um eco suave, quase hipnotizante. As águas massageavam cada centímetro do meu corpo. Todos os meus sentidos trabalhavam ao mesmo tempo e causavam uma sensação deliciosa.

Percebi que ao final do desfiladeiro as ondas se acalmavam e as outras garotas foram sendo jogadas para a margem, uma a uma. Acreditei que o prazeroso passeio aquático estava no fim.

Mas quando todas já estavam fora e começaram a apontar pra mim, eu comecei a perceber que alguma coisa estava errada. As ondas começaram a reagir contra meu corpo, me envolver, me arrastar. Me senti presa de tal forma que, mesmo batendo contra elas, já não conseguia ver o que acontecia. Entrei num casulo aquático que começou a me sugar para um redemoinho. Ouvia os gritos de Leiva e das outras.

Meus pensamentos ficaram dispersos e leves. Lembrei que eu nem tinha me apresentado a elas, que nem sabia qual nome elas me chamavam, enquanto gritavam. Pensei que aquilo tudo era um sonho. Que na verdade eu estava presa, desacordada em alguma clínica, em coma, talvez, e isso me fez rir. Eu não sentia dor. Não sentia nada além de paz. Talvez ficar ali fosse o melhor. Pra sempre presa, numa onda misteriosa. Pelo que falavam da Rainha, isso deveria ser algo realmente melhor do que o meu destino ingrato.

Então, uma alga surgiu na minha frente. Ela parou bem próximo do meu nariz, na altura dos meus olhos e parecia que me analisava, era como se me olhasse.

Era estranha, diferente do conceito de alga que eu tinha da Terra. Parecia ter uma estrutura muito mais complexa. Era como um animal.

Pelo que eu tinha entendido, apenas a Rainha conseguia tocar nelas e controlá-las. Ninguém mais havia conseguido se aproximar. Era com essas algas que a Rainha explodia as mulheres e isso as libertava desse mundo.

Arregalei os olhos quando conclui espantada que, talvez, se eu conseguisse agarrar aquela pequena alga eu estaria livre daquilo tudo. Ou renasceria em algum lugar longe e não precisaria me apresentar à Rainha. Algo como matar um mosquito poderia ser meu passaporte para outro destino. Suspirei fundo, me preparei e quando ia bater nela, ela suavemente pousou no meu nariz. Eu olhei para os lados e nada havia acontecido. A pequenina fez um movimento como se fosse um carinho, que me deu uma leve coceira, um pouco de cócegas, me fazendo rir novamente. Saiu numa velocidade surpreendente e as águas me empurraram para baixo tão rápido quanto ela.

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