- Vamos lá, isso nem doí – eu falo pelo que parece ser a milésima vez para um Vince aborrecido.
Deus, já fazia mais de uma semana e ele continuava insistindo em não tomar os remédios e muito menos aceitava a aplicação da injeção.
- Não doí porque não é com você
- Acredite, eu já tomei diversas vacinas e tirei mais sangue do que pode imaginar – me aproximo da cadeira, mas ele se afasta de novo – Vince!
- Não vou tomar e pronto – ele faz uma careta e coloca a mão em torno dos olhos – Estou até me sentindo meio tonto, isso é culpa sua
- Se você me deixasse aplicar a injeção não estaria passando mal
- Uma ova que não
Suspiro cansada e olho ao redor do quarto, ainda com a injeção na mão eu olho para Vince de novo e tenho uma ideia.
Ele iria me deixar aplicar nem que fosse forçado
- Tudo bem, que tal assim – pauso e começo a colocar as coisas dentro da maleta bem devagar – Eu faço isso mais tarde, quando você estiver desmaiado.
- Desmaiado? – ele diz e eu aceno séria.
- Sim, porque essa injeção é importante para você conseguir passar o dia sem dores e tudo mais – guardo um frasquinho e vejo com o canto do olho ele me observar desconfiado – Mas tudo bem, daqui a algumas horas eu volto.
- Você está mentindo
- Eu queria estar Vince, mas infelizmente não estou – eu falo e fecho a maleta com um clique silencioso – Bom, eu acho que vou organizar os seus remédios e....
- Aplique logo
- O que disse? – eu falo e ele bufa raivoso
- Aplique logo
Dou um sorriso e tiro a injeção de dentro da maleta junto com o algodão com álcool. Passo de leve e antes que ele se esquive eu aplico, e não posso deixar de sorrir quando o vejo fazer uma careta dramática.
- Viu? Nem sentiu
- Senti sim, não estou morto
- Verdade? – eu falo e começo a guardar de verdade as coisas – Então vou ligar para cancelar o caixão.
- Você é uma moça muito malvada. Não sei como admitiram você como enfermeira
- Do mesmo jeito que você me contratou. Na força do ódio
Ele estreita os olhos e eu sorrio terminando de guardar. Olho de novo para o quarto e faço uma careta para as cortinas ainda fechadas, mesmo sendo quase dez da manhã, o quarto ainda parece meio escuro e mórbido.
- O que? – ele pergunta e eu resolvo falar apontando para as cortinas
- Porque não abre essas cortinas?
- Não sei
Fico confusa e olho de novo para ele. Vince era um senhor bem durão para a sua idade (setenta e nove), mas ele não gosta muito que digam em voz alta. Cabelos brancos, olhos escuros e pele morena, e não vamos nos esquecer que ele tem uma postura de alguém que poderia se levantar a qualquer minuto e te dar um soco no nariz.
- Como assim você não sabe?
- O último medico veio e fechou as cortinas – ele pisca os olhos lentamente e aponta para a janela – Disse que tenho olhos frágeis e que não suportam muita luz
Dou risada e ele faz uma careta chateado.
- Olhos frágeis? Está brincando? – me aproximo da janela e olho como faço para abrir – Se tem alguém frágil nesse quarto sou eu, você é no mínimo delicado.
- Não sou delicado
- Maravilha, estão vamos abrir isso – vejo um tipo de corda e puxo de leve vendo a movimentação do tecido, puxo o resto e rapidamente o quarto se enche da luz do sol, sorrio e me viro para Vince que franze os olhos em uma careta – Você está a um trisco de virar o conde drácula do século XXI
Ele resmunga alguma coisa e eu aproveito para abrir as extensas janelas que dão de frente para o jardim principal. O ar invade o quarto e eu me viro animada para ele.
- Vamos dar uma volta
- Não
- Vamos sim – pego a sua bengala apoiada na parede e a entrego para ele que sacode a cabeça com força – Anda logo
- Não vou
- Você vai, e fique sabendo que se você não for comigo eu juro que vou ficar aqui te atazanando até você desistir – ele para de balançar a cabeça e eu sorrio – E então?
- Não vou enxergar nada lá fora – ele diz, mas pega a bengala feita com uma madeira pesada.
Movo os olhos pelo quarto e vou até o closet dele.
Fala sério, quem tem um closet?
Olho em todas as gavetas e somente na última de baixo para cima é que eu encontro os óculos lindos e estilosos. Pego o de armação escura e levo para ele que ainda está sentado na poltrona.
- Aqui – coloco os óculos em seu rosto e ele suspira antes de se levantar devagar. Pego o seu braço e entrelaço com o meu lhe dando sustentação.
- Não preciso de ajuda, você sabe disso
- E quem disse que é para você? – eu respondo e ele me olha de lado – Estou me sentindo meio cansada, vou me apoiar em você
- Não sou um bom apoio, fique sabendo
- Estou avisada – eu falo e começamos a descer as escadas – Prometo que se eu cair eu te puxo junto.
- Não é assim que se faz, nunca te ensinaram não?
- Infelizmente não, e nem tente, sou um caso perdido
Ele resmunga e eu sorrio pisando em mais um degrau.
...................................
O jardim era algo parecido com aquele livro o Jardim Secreto, só que com cores em vez de vim sem pintar, o que eu achava sem graça. Caramba, eu odiava pintar.
Sempre pintava fora do desenho.
Passo por uma fonte de cor preta e sorrio vendo uma arvore enorme cobrindo uma extensão do jardim do outro lado.
- Sabe, até que você tem bom gosto no quesito jardins
- Hunf, não sei se isso foi um elogio
- Considere que sim e ficamos em paz
- Irritante – ele diz baixinho e andamos mais alguns passos até que ele olhe para um dos arbustos na nossa frente e fale com a voz meio distante – Minha esposa era quem cuidava do jardim
- Verdade?
- Sim, eu queria construir um estacionamento maior e talvez uma casa menor lá atrás, mas ela quis um jardim – ele fala e eu sorrio olhando para as flores - Ela vinha todos os dias bem cedo e regava todas elas, e ficava até a hora do almoço fazendo isso
Ouço seu tom contemplativo e paro por um instante de caminhar, ele olha ao redor e suspira parecendo cansado, mas não fisicamente
- Qual era o nome dela? – eu pergunto e ele responde baixinho
- Davínia Vince
- Como vocês se conheceram?
- Na Escócia, ela trabalhava em uma livraria e eu não gostava de ler – dou risada e ele me olha por sobre os óculos escuros – Estou falando sério
- Então o que você fez?
- Fingi que gostava e entrei na livraria procurando só deus sabe. Ela me atendeu e sorriu – ele bate a bengala no chão de leve – Tenho certeza que ela me amou no mesmo instante
- Ou pensou: Nossa, esse cara está na seção infantil e nem sabe – eu falo e ele bate a bengala em minha perna – Aí Vince
- Bem feito, e eu não estava na seção infantil – ele faz uma pausa e resmunga o resto da frase, mas ainda assim eu o escuto – Ou pelo menos acho que não
Cubro a boca com a mão ocultando o riso e ele percebe, me afasto antes que ele mova a bengala de novo e coloco alguma distância entre a gente.
- Alguém tem que colocar um freio em você
- Nunca
Eu falo e ele arqueia uma sobrancelha, dou de ombros e continuamos a caminhada pelo grande e encantado jardim.