Allah! A polícia não!

Riad, Arábia Saudita 1980

Maysa Houssen Mahir

Eu estou no meu antigo quarto. Deitada em minha antiga cama, ouvindo os ventos fortes lá de fora. A aproximação de um Shamal, um vento oriental seco, vindo do deserto.

Depois de seis anos, morando na Inglaterra, voltei para a casa de meus falecidos pais, onde hoje é a casa de minha irmã gêmea, Adara. Mas infelizmente, minha volta não tem nada de festiva. Estou aqui porque minha irmã está doente. Vítima da corona vírus. Uma grave doença respiratória.

A casa é bem simples, sem ar-condicionado. A região, desprovida de boas lojas.

O calor agora está insuportável, o ar seco já irrita meus olhos. Suspirei em pensar na minha pobre irmã. Quando a visitei no hospital, quase não a reconheci. Ela está muito magra e abatida.

Levanto-me e calço os chinelos, visto um vestido branco que marca bem o meu corpo com detalhes em dourado.

Nessa hora escuto um barulho, corro para fechar a janela que foi aberta pela força do vento. Consegui com muito custo, quase às cegas, pois a quantidade de areia que entrava quase me impediu de fechá-la. Logo pude ver o chão e minhas roupas tomadas por elas.

Desanimada sacudo meu cabelo para tirar uma grande quantidade de grãos e me coloco a pensar como conseguirei sair daqui para ver minha irmã no hospital.

Vou até a cozinha e faço um café, com a xícara nas mãos vou até a sala. Sentada no sofá penso na conversa que tive ontem com ela.

Allah! O que ela me contou me deixou de cabelos em pé.

A vontade que me deu na hora foi de sacudi-la. Brigar com ela. Mas não fiz isso. Muito fraca, arrependida, ela já está pagando seus pecados deitada em cima daquela cama de hospital.

— Allah! Como minha irmã pode cometer tal ato! Roubar uma grande quantia de dinheiro para ajudar o namorado pagar uma dívida de jogo.

Quando ouvi o relato, foi como se eu estivesse ouvindo o pesadelo de alguém. Segundo minha irmã, ela trabalhava há um bom tempo na casa de uma senhora chamada Ester Nardini Hallan, uma viúva de classe média.

O Namorado de minha irmã, Nurab, um dia apareceu machucado, pedindo ajuda. Adara ficou tocada pelo estado dele, principalmente pelo psicológico abalado. Tudo isso fruto uma ameaça de morte que lhe deram caso ele não pagasse suas dívidas.

Como Adara era uma pessoa de confiança na casa em que trabalhava, sabendo onde Ester Nardini escondia uma grande quantia de dinheiro, pegou a quantia que ele precisava e lhe entregou. Segundo Adara, ela iria pagar de um jeito ou de outro.

Agora eu me pergunto como? A quantia não era pequena.

Como ela foi tão burra de confiar no rapaz e nas suas promessas?

Então ocorreu algo que minha irmã não contava. Esse dinheiro era a economia para pagar o tratamento do neto de sua patroa, que sofria de uma grave doença cardíaca. Depois de um tempo, a sua patroa recorreu ao dinheiro com urgência, e não o encontrou. Minha irmã ainda não tinha conseguido ajuntá-lo para devolvê-lo.

Nardini ficou louca e fez um escândalo na casa. Todos os servos foram chamados, inclusive minha irmã. A polícia religiosa local, os Mutaween, começaram a investigar e, para piorar, o namorado de Adara sumiu.

Minha irmã ficou desesperada. No dia seguinte ela fugiu. Passou dias longe de casa, morando com nômades no deserto, e foi lá que ela pegou essa doença horrível. Agora está internada no Al-Osrah, onde luta por sua vida.

Suspiro, fechando os olhos quando me dou conta do contraste do lugar onde eu moro em comparação a tudo aqui. Meneio a cabeça.

A Arábia Saudita é um lugar muito bom para os ricos, já os pobres sofrem muito, por causa da infraestrutura oferecida, que é muito precária. Por isso, quando a oportunidade de estudar na Inglaterra surgiu, não tive dúvidas em aceitar. O convite fora feito por meu tio Zafir, irmão de minha falecida mãe. Ele e sua esposa inglesa, Letícia já moravam há vinte anos em Londres quando me fizeram o convite.

Não fora fácil a minha adaptação. Tive uma grande dificuldade em aprender o inglês, estranhei o clima, as pessoas, mas nada disso me impediu de me esforçar em entender a língua, estudar e me formar.

Hoje sou graduada em enfermagem e trabalho em um grande hospital. Um arrepio me atravessa quando penso na dívida de minha irmã. Eu tenho economias, mas mesmo assim, não conseguiria pagar o que Adara deve. Isso me preocupa. Já presenciei em praça pública a amputação da mão de um homem por roubar.

Aqui é um mundo cão, eles têm suas próprias leis.

Allah! Se eu a tivesse convencido a minha irmã estudar fora!

Mas minha irmã é teimosa como uma mula! A sorte que Adara entrou inconsciente no hospital, delirando, com febre alta, eles não conseguiram fazer o registro, pois ela não carregava os documentos consigo. Quando recobrou os sentidos, tomada pelo medo mentiu dizendo que não sabia seu nome e que não se lembrava de nada.

A amnésia apresentada passou a ser investigada pelos médicos, isso fez com que minha irmã ganhasse tempo, mas não demorou muito para que ela fosse descoberta por uma vizinha, Nadir, que é enfermeira no hospital.

Nessa hora, não teve jeito, minha irmã abriu seu coração e contou tudo a ela. Muito fragilizada pediu para ela guardar segredo. Nadir se revelou uma amiga, pois resolveu ajudá-la e permitiu que minha irmã continuasse com a farsa.

Em três dias de internação o estado de minha irmã se agravou e ela foi levada para a UTI. Adara começou a chamar meu nome enquanto delirava.

Enxugo as lágrimas.

Nadir, receosa que minha irmã morresse, conseguiu nos pertences dela achar a chave da casa. Fazendo uma varredura, ela encontrou um caderninho que minha irmã anotava os telefones, e achou meu nome anotado e imediatamente entrou em contato comigo.

Como a ligação é muito cara, ela não pode me contar muita coisa, apenas o necessário. Quando cheguei de viagem, Nadir me recebeu no aeroporto, logo que ela me viu, sua expressão mudou. Ela demonstrou um grande espanto ao se dar conta somos gêmeas. Ela nem precisou olha o cartaz com meu nome entre as mãos.

Só que agora estou consciente que estou em perigo, pois posso ser confundida com a ladra que roubou Ester Nardini. Estou entre a cruz e a espada. Minha irmã no hospital, e eu tendo que me esconder. Mas como deixá-la nesse momento?

Cheguei há três dias e tenho visitado minha irmã. Uso uma burca, que é uma vestimenta preta que me cobre inteirinha. Só a tenho tirado no banheiro do hospital e Nadir sempre dá um jeito para eu vê-la na UTI.

Numa dessas visitas, minha irmã estava consciente e muito emocionada chorou quando me viu. Pude então ouvir toda a sua história, contada em detalhes. Eu a tranquilizei, prometendo a ela que irei resolver essa situação, embora eu não soubesse como.

Suspirando caminho até à cozinha e dou uma olhada na geladeira. Com o dinheiro que dei a Nadir, ela comprou algumas coisas, mas já estão acabando. Sobrou apenas queijo branco, um pedaço pequeno de carne e três ovos.

Resolvo fazer uma omelete para comer com pão pita. Ultimamente não tenho conseguido comer muita coisa, toda essa situação suprimiu minha fome. Na verdade, o que está me fazendo insistir em comer é a consciência que preciso ficar bem, pois minha irmã precisa de mim forte.

Encontro uma frigideira dentro do gabinete da pia. Despejo os ovos batidos com cebola, sal e temperos. Ouço um estrondo vindo da porta da sala. Dou um salto para trás com o susto.

O vento?

Ou alguém?

Com coração acelerado, desligo imediatamente o fogo e fico por um momento estática, apavorada.

Um homem entra na cozinha. Seus olhos negros hostis caem sobre mim e passam insolentes pelo meu corpo, como se me avaliassem.

Sinto-me encurralada dentro daquela minúscula cozinha.

Eu a caça e ele o caçador.

Ele é alto, cabelos negros, pele bem bronzeada que contrasta com a camisa branca semiaberta que ele usa por debaixo de um terno preto sob medida. A barba semicerrada lhe dá um certo charme. Percebo que mesmo nessa situação tão aterradora, nunca vi um homem tão atraente em toda a minha vida.

Desvio meu olhar, pois não consigo encará-lo por muito tempo nos olhos.

E agora? Me pergunto.

Com certeza ele veio atrás de minha irmã! Allah! Minha irmã não tem condições de enfrentar tudo e todos doente daquele jeito.

Nessa hora ouço alguém fechar a porta na sala, isso significa que ele não está só.

— Adara Houssen Mahir. Creio que não precise explicar a minha entrada. —Ele diz com uma voz grave e profunda.

Levanto o rosto. Pálida, nervosa, fecho as mãos para elas pararem de tremer.

— E o Senhor, quem é?

Ele arqueia uma sobrancelha.

—Um grande amigo da viúva que você roubou, sua....

Ele olha para mim sem encontrar um nome apropriado para me chamar.

Estremeço. A tensão é quase palpável.

— Quero elucidar que vou pagar cada centavo, mas preciso de um tempo para isso. Minha intenção sempre foi pagar. Quanto ao que fiz, sei que errei, agi por impulso, pois precisava do dinheiro.

— Ah, mas vai pagar mesmo. E pelo visto, o dinheiro foi muito bem gasto. — Ele diz passando os olhos insolentes pelo meu vestido branco tubinho e que molda meu corpo. O comprimento é um pouco acima dos joelhos.

Ele se aproxima de mim e eu dou um pulo para trás.

—Não me toque. —Ergo as mãos.

Ele para e sorri de um jeito bem, mas bem diabólico.

— Você irá me acompanhar. Por bem ou por mal. — Seu sorriso é frio, seus olhos uma pedra de gelo, mas se aquecem quando ele corre pelo corpo novamente. — Você é realmente linda, mas uma odalisca sem vergonha, podre e vulgar. Então, não se preocupe, eu não me sujaria com você. Mas você irá me acompanhar e pagar seus pecados.

—Por Allah! — Sinto vontade de gritar, mas tento argumentar. — Eu já disse que vou pagar!

Ele diz rude.

— Se sua intenção fosse pagar, não teria fugido.

Eu passo nervosamente as mãos em meus cabelos longos, os puxando para o lado direito.

— Eu estava assustada. Mas estou aqui, não estou?

Tento disfarçar as lágrimas que surgem em meus olhos, logo que as sinto, as limpo. Mas é difícil esconder o tremor das minhas mãos, pois a amargura e a falta de fé no futuro me deixam nervosa.

—Quem me garante que não irá fugir novamente?

Eu abaixo a minha cabeça, tentando buscar argumentos, mas não encontro nenhum. Se ao menos eu soubesse quem é o homem que enganou minha irmã e fugiu com o dinheiro....

Enxugo as lágrimas que teimam em cair.

— Para onde o senhor irá me levar?

—Vou te entregar para a polícia!

Quando ouço suas palavras, me desespero.

Allah! A polícia não!

Fecho os olhos, me sentindo fraca, parece um pesadelo. Tento pensar em algo, mas não me vem nada. Angustio-me. Tentando dizer a mim mesma que está tudo bem, mas não consigo parar de tremer. Sinto o suor frio descer pela minha testa e costas, me sentindo mal me seguro na pia.

Minha visão escurece, com um zunido forte no ouvido minhas pernas se dobram.

Tudo se apaga...

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