DRACO SAGA: A BARONESA
DRACO SAGA: A BARONESA
Por: F. G. CARD
1 - FUGITIVA

Milão, Itália – outono de 1277.

Fugíamos, eu e minha família, expulsos da cidade no ano do Senhor de 1277. Depois de perderem a batalha de Désio, os partidários da minha família não conseguiram mais impedir que nós, os Della Torre, fôssemos expulsos da cidade. Na fuga cega, no meio da noite, correndo para salvar nossas vidas, papa subiu-me a sua frente no cavalo e saímos em disparada com meu irmão mais velho, Reimondo, então com dezenove anos, cavalgando outro animal. Ele carregava sua jovem esposa da mesma forma que papa a mim. Em sua sela, para manter o grupo unido, ia amarrada a égua de mama que montava-a. O mano, recém-casado, nem tivera tempo para a noite de núpcias.

Eu era apenas uma jovem desonrada de quatorze anos de idade e, apesar disso, tinha o corpo formado e altura de mulher. Casar-me-ia no ano seguinte com todas as pompas e honrarias que uma família nobre e religiosa como a minha podia arcar. No entanto, por ser desde cedo travessa e curiosa, acabei sendo “desonrada”, como falavam, pelo domador de cavalos de papa. O pobre homem, é claro, sofreu duras consequências, mas a verdade é que gostei muito do toque daquele moreno de pele queimada, corpo robusto, braços musculosos, cabelos e olhos negros. Fez-me mulher em um canto, no chão do estábulo, sobre o feno estocado. Era um dia quente de verão e suas suaves carícias envoltas no odor másculo, embriagaram-me de prazer. A partir daí, apaixonada, eu escapava todos os dias para visitá-lo ao entardecer, horário em que, eu sabia, finalizava as atividades no trato dos animais, já recolhidos às baias. Foi assim por meses até que papa nos surpreendeu. Ele nunca soube que aquela não fora minha primeira vez.

Em nossa estabanada evasão noturna, o cavalo de papa por um momento assustou-se com algo e acabamos, ambos, sofrendo uma queda e eu, por ter desmaiado, não lembro de muita coisa. Dentre as vagas recordações que tenho está o rosto belo e pálido de meu salvador, carregando-me nos braços. Cuidou de mim até que acordei sobressaltada em meio a devaneios, enquanto ele beijava meu pescoço de forma que me levava ao êxtase. Era imenso o prazer que sentia ao toque daqueles lábios, ele parecia ter descoberto a mais sensível zona erógena do meu corpo e eu ofegava incontrolável até desmaiar.

Minha próxima lembrança é meu despertar aqui, nesse mundo desconhecido. Quando acordei era noite e ao meu redor, o silêncio mortal imperava, a não ser pelos distantes ruídos dos animais noturnos. Não fazia ideia de onde estava e dentre minhas poucas lembranças, o toque quente daquele que me salvara da perseguição dos inimigos da minha família.

Usava o mesmo vestido champanhe com muitas rendas, do dia da fuga de Milão, o que evidenciava minha alta posição social, contudo, meio rasgado e sujo de poeira e sangue. Toquei e olhei várias partes do meu corpo, mas não encontrei nenhum machucado e nem dolorido que justificasse as manchas.

Olhei a minha volta e, apesar da escuridão, via quase tudo. Uma linda lua cheia iluminava a noite, mostrando-me a margem de uma estrada que, pelo modo como era pavimentada, parecia herança do antigo Império Romano, cortando o planalto com suaves elevações percebidas ao longe pelos raios lunares refletidos nas pedras claras do leito da via. A vegetação rala com poucas árvores favorecia o campo visual e o clima temperado com leve brisa noturna trazia-me um agradável odor selvagem que eu jamais sentira.

Sozinha e desorientada, decidi seguir na estrada para qualquer lado a fim de encontrar ajuda. Sentia-me exausta, faminta e, por isso, caminhava devagar. Depois de horas ouvi, de muito longe, o trotar de vários cavalos vindos de trás. Percebi que puxavam uma grande carruagem aproximando-se rápido e então pus-me no meio da via a sinalizar desvairadamente com os braços.

O cocheiro me viu, ainda distante e precisou de alguns metros para frear, obrigando-me a saltar para não ser atropelada. Quando passou por mim, notei ser aquele, o veículo de alguém importante, visto o requinte dos detalhes entalhados na madeira cor de vinho envernizada. Na porta do enorme e luxuoso vagão puxado por oito cavalos negros aos pares, havia um brasão que não reconheci. Quando parou, corri para alcançá-lo e pedir ajuda.

Por favor, senhor, ajude-me. Estou sozinha, perdida e faminta! — implorei ao cocheiro.

O condutor pôs-se de pé e me encarou com surpresa, parecendo não me entender muito bem. Um homem alto, cabelos grisalhos, profundos olhos negros e nariz aquilino. Não era feio, mas algumas rugas castigavam-lhe o semblante.

No mesmo instante, a refinada cortina de seda bordô de uma das janelas se abriu e uma mulher de voz estridente e irritante gritou, encoberta pela penumbra:

Rambertino! Ordenei que não parasse!

Tinha forte sotaque que não identifiquei. O idioma parecia uma mistura do meu com o latim da Roma antiga, ainda falado em Milão pelos padres, contudo, eu entendia muito bem, pois estudara em colégio de freiras a vida toda, tendo aprendido lá o latim para uso nas orações. Ela, então, apareceu na janela para verificar o que acontecia, mostrando o rosto maquiado de uma jovem e bela senhora alva de cabelos ruivos ondulados. Devia ter menos de trinta anos.

Eu, a dois metros de distância, senti o odor adocicado que ela exalava. Os dois me encararam com surpresa por um instante e foi quando aconteceu pela primeira vez: algo em mim não permitia que desviassem o olhar e, subitamente percebi que algo neles me paralisava também.

Além do perfume, senti outro cheiro e o silêncio foi quebrado por um pulsar estranho, depois, várias batidas graves, baixas e ritmadas que penetravam minha mente cada vez mais acentuadas! Olhei para os lados buscando, frenética, a origem dos sons até que vi, no pescoço daquela senhora, um detalhe que jamais percebera em ninguém: uma leve perturbação cuja frequência coincidia com um dos pulsares que eu ouvia. Entendi que eram as batidas de seu coração e, súbito, minha boca e narinas arderam, meu estômago se contraiu, os meus lábios se retesaram e minha visão turvou-se de vermelho.

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