Corações em frenesi acompanha os sentimentos e interações de um grupo de amigos interligados pelo limbo da transição da juventude para a vida adulta, em especial Thomaz, que vivência uma confusão emocional ao mesmo tempo em que tenta manter seu próprio escape através das noitadas com seus amigos, regado a álcool, cigarros, e uma paixão platônica pelo enigmático Pedro. Entretanto, Thomaz guarda um segredo que pode mudar para sempre os fatos daquela noite. Obs: a presente narrativa pode conter elementos considerados gatilhos.
Leer másHavia uma certa peculiaridade naquele chão, algo que refletia o olhar abatido e silencioso de um jovem de 23 anos prestes a encarar a si e não mais enxergar a mesma pessoa de 15 minutos atrás. Seu rosto, antes pálido, de olheiras notáveis e lábios na maior parte do tempo comprimidos pela insegurança e timidez (com exceção das noites sob o efeito do álcool), de um nariz marcante e cabelos negros ondulados que oscilavam entre o popular e a invisibilidade, agora refletia no piso carmesim sem estes traços. Agora, Thomaz encarava alguém que a princípio ele não conhecia, mas que, depois de um longo silêncio e a pressão do gotejar que ecoava perfurante através do banheiro, ele sabia que só não lembrava. Aconteceu de novo, e dessa vez ele tinha idade o suficiente para entender e refletir acerca disso; idade para não reverberar a dor, mas causá-la, porque não havia nada até aquele momento que o machucaria mais do que ele mesmo. Thomaz quase se confundiria com os azulejos perolados das paredes se não fosse seu peito, que se enchia e esvaziava lentamente (ainda que os azulejos também parecessem respirar sob os olhos do jovem), mas principalmente pelos tons de vermelho que em um canto ou outro destronavam o perolado — em especial no piso.
...
Era a terceira música seguida de “Poesia acústica” que Saulo colocava na TV Smart
e, estranhamente, Elise não estava criticando. Rita dançava no meio da sala de estar, os cabelos castanhos escuros se movendo no mesmo ritmo acima de seus ombros. Há uma garrafinha de ice, que já havia secado há tempos, em sua mão e que, agora, estava preenchida com uma mistura de vodca, refrigerante de laranja e energético. Otto lhe fazia companhia, segurando um cigarro entre os dedos de uma das mãos e um copo descartável com a mesma mistura na outra. Do sofá, há menos de 2 metros, Lucas já observava todo o cenário sonolento ao lado de Saulo, que estava escolhendo a quinta música seguida, segurando o controle com afinco e vendo as thumbnails deslizando na tela da televisão.Pedro, por sua vez, parecia perdido em seus pensamentos. Os olhos azuis fixados em algum lugar no tapete da sala, sua mão esquerda repousada sobre a coxa enquanto a direita segurava uma latinha vazia de Tiger. Quando Rita quase esbarrou nele, seu olhar ganhou foco para a garota.
— Meu Deus, descuuuulpa — disse pedinte, apesar do sorriso nos lábios, e então sussurrou: — Que músicas são essas, amigo?
Pedro entendera o recado.
— Muda essa playlist, mano! — Ele disse, tomando o controle da televisão das mãos de Saulo.
— Ei?!
— É... mudan... — Rita concordou, enrolando as palavras enquanto as proferia — Não dá pra... daaançar com isso não...
No canto da sala, sentado em uma cadeira acolchoada, Thomaz ergueu-se e caminhou até o corredor, passando por Elise, que vinha da cozinha abrindo uma latinha de Tiger enquanto mexia os quadris sutilmente. A pele negra brilhava na meia luz do corredor, enquanto as tranças em seus cabelos a deixava com um ar mais jovial do que Elise realmente possuía.
— Está com sono? — Elise sussurrou para Thomaz, esboçando uma expressão clara, que Elise reconheceu como de descontentamento com a qualidade do último tiro.
— Ironicamente. — Ele respondeu, e os dois seguiram.
O som mudou para um funk anos 2000, o que pareceu surtir um grande efeito dos movimentos de Rita. Otto cambaleou, derramando um pouco da sua bebida no piso, se desculpando logo depois.
— Relaxa, man. — disse Saulo. — Vou pegar um pano, calma.
Lucas fechou os olhos por alguns segundos e se imaginou em casa, em sua cama, longe da música e das pessoas com quem não tinha afinidade, mas também longe de Otto. Em sua mente, uma canção de ninar, que sua mãe cantava para ele quando criança, surgiu como que invasiva. Nostalgia.
— O que houve? — A voz de Otto o fez abrir os olhos.
Lucas encarou o rosto do namorado diante dele.
— O quê?
— Estava dormindo? Está com sono? — Otto perguntou. Atrás dele, Rita parou ao ouvir a palavra “sono” e lançar um olhar de censura na direção de Lucas.
— Não, é só que… — ele começou a dizer, então refletiu sobre seus pensamentos e continuou. — Não estou com sono, estava pensando na hora. — Otto tocou sua mão. — Você está gelado.
— Está frio.
— VAMO ESQUENTAR! — Rita disse em voz alta.
— Menos, gata. — Elise surgiu do corredor.
Otto puxou Lucas, que parecia desmotivado apesar da insistência de Ritta e Otto. Elise se aproximou dos três no centro da sala, dançando. Pouco a pouco Lucas era encurralado pelos corpos dos amigos.
— A vontade de dançar não pode ser passada por osmose, pessoal. — Lucas ria enquanto proferia as palavras. Estranhamente, a sensação de estar preso naquele contexto o fazia repensar sua desmotivação. — Eu não gosto de dançar…
— Ah, vamos, Lu! — Rita exclamou. — Não é todo dia que você pode dormir fora.
— E se eu te der isso. — Otto vira-se para o namorado e o beija, colocando sua mão livre atrás do pescoço de Lucas. É um beijo rápido, significativo.
— Pegue de volta, não quero ficar doidão. — Lucas diz ao fim do beijo, falando como se segurasse algo em sua língua.
— É só chiclete, bobão.
Lucas mastiga a coisa em sua língua, aliviado.
— Toma. — Elise empurra a Tiger na direção de Lucas, que aceita sem hesitar.
— Eu vou tomar uma água. — Pedro levanta do sofá, a latinha vazia continua em sua mão. Ele olha para Saulo, entretido com o corpo das meninas se movendo na estranha tentativa de levantar o ânimo de Lucas. — Quer algo?
Saulo parece não ter o escutado.
...
Em menos de 48h, Thomaz esteve bêbado. Nesse exato momento, ele também está. Seu olhar procurava por algo no interior reluzente da geladeira, uma garrafa de água para ser mais específico, porém seu olhar pousou em uma latinha de Tiger que ele não bebia fazia meses, não importava de quem eram três dolorosas latas de cerveja, uma agora era dele.
— Acho que você precisa pedir permissão pra pegar isso aí. — Ele ouviu a voz por trás dele assim que tocou na superfície gélida da latinha.
Thomaz tirou a cerveja da prateleira e fechou a porta, virando-se para Pedro atrás dele.
Aquela seria a segunda vez que os dois estavam sozinhos no mesmo cômodo e, como da primeira vez, aquilo também fazia borboletas voarem dentro do estômago de Thomaz, que nunca se sentia confortável o bastante sozinho com alguém que não fosse sua melhor amiga, Rita. Para completar, Pedro tinha um tom de voz que parecia reduzir os 1,80 metros de altura de Thomaz à metade perto dele, assim como sua postura e o olhar azul penetrante. A regata deixava a mostra os músculos bem desenhados, mas não era para eles que Thomaz geralmente olhava; eram os lábios que mais pareciam ter sido desenhados por algum pintor-gênio ao estilo "o sorriso de Monalisa", com traços delicados e uma tinta rosada com óleo sobre a tela.
— Quer uma também? — Thomaz questionou, feliz por responder consideravelmente rápido, apesar do rosto de Pedro estar há poucos centímetros do seu, o que normalmente o faria perder - metaforicamente - a fala.
Pedro sorriu, se posicionando ao lado de Thomaz e abrindo a geladeira novamente, o que fez Thomaz se afastar para que ele pudesse concluir o ato. Thom respirou fundo e puxou o lacre da latinha de cerveja, dando um longo e silencioso passo em direção à sala.
— Ei... — chamou, Pedro, fazendo Thomaz parar por um momento. — O que a Rita disse... É verdade?
Thomaz engoliu em seco.
O Thomaz criança nunca superaria o trauma de ter sido tocado e ter matado por isso. Ele levaria para uma vida toda. Ninguém mais. Foi uma escolha que ele fez, e que, tão logo crescer virasse uma regra, ele esqueceria da motivação por trás de suas ações. Ele esqueceria que o tempo foi um amigo diversas vezes e que, por diversos motivos, também foi seu pior inimigo. Ainda que Thomaz fosse o próprio tempo, por muito, muito…— Tempo? — Rita perguntou, a voz misturada à mistura de ritmos que emanava dos diversos aparelhos de som integrados aos carros ali presentes.— O que? — Thom apertou o olhar, como se pudesse ouvir através dele.— Tem um tempo?Thom apenas concordou.Ela o arrastou para um canto, longe de todo o barulho. O encarou por um bom tempo, como se pudesse ver no rosto do seu amigo todas às vezes em que ele se perdeu nas próprias intenções por pura fragilidade.— O que? — Ele perguntou rindo.— Eu tô chapada. — Ela riu.Os dois se encararam por alguns segundos, rindo como bobos.
O cheiro de álcool e fumaça de cigarro pairava suavemente no ar da rua tranquila. Thomaz sentiu uma estranha melancolia, uma falta que ele não conseguia identificar, como se uma melodia estivesse presa em sua mente, mas sem letra ou ritmo definidos. Havia um barulho ecoando em sua mente desde aquela manhã, como se nada tivesse sido planejado. Ele sentiu como se tivesse esquecido algo crucial, mas a lembrança escapava, deslizava como areia entre os dedos. A sua própria memória, outrora um labirinto familiar de eventos, agora se apresentava como uma tela em branco. Ele não se lembrava de ter voltado no tempo, de ter reescrito o passado, de ter confrontado o vigia da creche. Para ele, tudo era novo, e a ausência de uma dor familiar era, por si só, uma dor.Quando encontrou Rita na esquina de sua rua, próximo das 18:40, seu espírito se acendeu como se, pela primeira vez nas últimas horas, tudo estivesse dando certo. Ela acenou de longe para ele; segurava um cigarro aceso entre os dedos e,
Pedro acordou de um sonho. Um sonho extremamente ruim. Suas mãos tremiam e ele suava frio. A cama estava molhada — e não apenas de suor. Queria esquecer o pesadelo, mas agora os lençóis o lembravam dele o tempo inteiro. Olhou ao redor, procurando por Saulo – há quanto tempo eles haviam ido deitar? – e, por fim, recuou em sua busca, sabendo que seria zoado pelo amigo pelo resto da vida, se ele soubesse que, dessa vez, Pedro não fizera xixi apenas nas calças.Levantou-se lentamente, ainda na inocência de seus gestos, retirando os lençóis sem fazer barulho. Queria chorar, mas sua mente insistia: qualquer som, por menor que fosse, poderia acordar as outras crianças. E não havia nada pior do que o bullying que duraria, no mínimo, o resto do ano. E as cervejas? Quantas beberam? Foram poucas, não foi?Nunca pensou no termo “sono pesado”, mas sabia que os únicos adultos que ficavam ali durante a madrugada geralmente tinham isso. Não deveria ter bebido. Sua cabeça fervia com a sensação de arre
O relógio de parede marcava seis da tarde e alguns minutos. Havia barulho por todo lado, apesar dos adultos tentarem apaziguar a energia das crianças. Tânia era a responsável por uma das turmas, a que Pedro fazia parte, para ser mais exato. Todos com idade similar: dos 5 aos 8 anos. Às vezes, Pedro parava para observar a mulher e lembrava dos dias que enrolava o cabelo dela nos dedos e às vezes até cheirava, mas há um bom tempo não repetia, parecia “criança demais” para ele. Tânia nunca reclamou.Ele estava cansado. Nem brincou tanto durante a tarde, mas sentia como se tivesse feito. Vez ou outra uma das garotas se aproximava dele para tentar convencê-lo a participar do jogo de “casinha” delas, mas da última vez uma delas o beijou na bochecha e ele fez xixi na calça de tanta vergonha. Não queria ser visto beijando uma menina pelos outros garotos, mas acabou sendo visto fazendo xixi na roupa, e isso foi bem pior. Isso faz tempo, na verdade. Bastante tempo. Foi na mesma época que parou d
Thomaz bateu à porta do banheiro ao sair, o som seco ecoou entre as ondas da música pop que vinha da sala, e caminhou desconcertado até a sala. Havia algo de irreal na forma como seus pés tocavam o chão. Como se o tempo estivesse maleável, e ele fosse o único que não sabia mais andar sobre ele. Talvez nunca soubesse, afinal de contas.Foi então que encontrou o olhar de Rita. Silencioso, consternado. Os olhos dela não pediam explicação — eles sussurravam compaixão e empatia.Todos voltaram os olhos para o rosto dele primeiro, encharcado da água da pia, mas a verdadeira interrupção na atmosfera veio ao notarem suas mãos, e o vermelho que a coloria.— Thom, — Elise disse, sem desviar os olhos — o que você fez?Thomaz desmoronou. O chão o puxou como se reconhecesse nele uma culpa antiga, que nem mesmo ele sabia que possuía, mas que a aceitou, pois só restava isso a se fazer. Chorou de joelhos. As mãos no rosto, o sujando ainda mais com o sangue de Pedro.Houve uma comoção imediata. Sapato
O tempo acontecia diferente para Thomaz, ele sabia. Da mesma maneira que o cérebro, as emoções, o ritmo cardíaco, a voz, o corpo, mudam com o tempo, o tempo também mudava em um ritmo caótico que apenas Thom conseguia notar em seus momentos de não-sobriedade. As vozes do passado reverberavam em sua mente ao longo dos anos, como anotações de coisas que ele deveria lembrar, mas sempre coisas que realmente aconteceram. As lembranças de outros momentos, momentos que ele não vivera, se apagavam como cinzas quando o vento soprava sobre elas. E o vento era Thom – até Pedro e ele se tocarem, naquele momento exato.Foi tudo de repente: em um momento, Thomaz batia o cotovelo na quina da pia, ignorando a dor; no outro, empurrava Pedro contra a parede, distante de si, e o olhava no fundo dos olhos como se nada daquilo fizesse sentido; como se Pedro fosse o elo entre o que ele era e o que ele podia lembrar que foi.Pedro não conseguiu encontrar palavras para questionar Thom sobre sua ação, mas sua
Último capítulo