Capítulo 3: Passos vacilantes nas ruas do reino

                                            3: Passos vacilantes nas ruas do reino

         Era noite em Yongard, e havia poucos guardas circulando pela patrulha nos corredores do castelo do rei. Aqui ou ali um pássaro noturno voava, insetos se juntavam ao redor de lamparinas, um ou outro guarda mastigando uma fatia de carne seca salgada, nada fora do ordinário.

            Ou quase: uma sombra ligeira e pequena corria, de esconderijo em esconderijo, indo do pátio ao jardim, e no jardim para trás de cada arbusto possível, se escondendo e se ocultando em todas as sombras. Não fazia som algum quando andava, corria com leveza apesar da mochila em suas costas e da bolsa que carregava junto ao corpo, pois eram muitas coisas de que precisava. Seu medo era de que os guardas pudessem encontrá-la por acidente, com o canto dos olhos ou por um descuido acidental. Checava copiosamente suas coisas para se certificar de que nada havia caído da mochila ou da bolsa, e antes que qualquer guarda a visse, a sombra correu apressada para os muros de trás do castelo: uma corda e um gancho jogados com moderada força atingiram uma plataforma de três metros de altura, e ainda havia mais seis metros de altura a mais para escalar.

            Levou cerca de vinte minutos para que o muro fosse transposto, e a sombra atingiu o chão com um leve salto, largando a corda e recolhendo o gancho com um puxão, que o tirou de seu apoio no alto do muro. Liriel, então, arrancou a máscara de tecido negro que usava para ocultar o rosto e respirar um pouco de forma mais confortável, enquanto buscava um esconderijo próximo e verificar o movimento da estrada que levava à cidade. Não havia nem a movimentação de guardas, nem dos guardas de Aggrive, nem de civis. Perfeito, hora de correr para o Distrito Cinzento e encontrar um lugar que fosse próximo da forja e ferraria do alto Altruz.

            Seria relativamente fácil chegar até lá, ela se lembrava mais ou menos do caminho, e, se precisasse, poderia perguntar para alguém como se fosse uma forasteira. Seria fácil, então, pôs-se a andar para a cidade.

            As estradas tinham pouca iluminação, e o Distrito Cinzento era longe, especialmente da direção de onde viera. Não eram ruas estreitas, mas lembrava-se pouco do caminho propriamente dito. Perdeu-se algumas vezes e andou em círculos várias outras até que encontrou a praça do centro leste, onde se sentou em um dos bancos e depositou todos os seus pertences.

            De dentro da mochila, pegou um pacote de tecido enrolado, de onde tirou um bolo de carne, frio, mas ainda saboroso e macio. Liriel teve sorte de poder entrar da despensa da grande cozinha, com um ou outro guarda andando por lá e pegando sanduíches sem que a cozinheira ou o chefe de cozinha pudessem lhes dar tapas nas mãos e os tirar de lá. À força, se necessário. E a princesa sentiu que precisaria pegar muita coisa, o bastante para o caso de ter de fugir às pressas e se esconder em algum lugar ermo.

            Mas, ao menos, tinha pego uma boa quantidade de dinheiro do cofre do palácio. Ao menos isso seu pai não havia permitido acesso à Aggrive, que muito se ressentia da decisão, mas nada era capaz de fazer para dissuadir e persuadir o marido. Os únicos com acesso ao cofre eram os de sangue real, e por conseqüência, Liriel podia entrar e sair quando achasse necessário. Com todas aquelas moedas, poderia alugar um quarto nalguma pousada interessante, moderadamente boa, e pagar por um espaço numa despensa fria, ou comprar boas refeições caso sua comida acabasse. Presumindo que ficasse entocada por tempo demais em alguma casa abandonada, o que ela cogitou como possibilidade, mas descartou: iria achar a loja do homem alto, Altruz, iria achar uma pousada por perto, seu plano daria certo.

            Enquanto mastigava o bolo de carne frio e matutava seus próximos passos, um homem alto um pouco tonto passou por ela, notou sua presença, e acenou educadamente. Quando Liriel finalmente respondeu ao aceno, reconheceu o gigante: Altruz, em toda sua glória cambaleante de um aparente abuso de álcool. Duvidava que aquilo fosse freqüente, ele não tinha cara de ser um beberrão, mas era um pouco desconcertante ver o ferreiro no qual seu pai, o rei, depositara a confiança de produzir presentes para uma conferência diplomática. Mas, ao menos agora, tinha uma oportunidade de ouro de conseguir saber onde ficava a loja dele, e não perdeu tempo em interrogá-lo da forma mais discreta que conseguiu.

– Senhor, senhor! – Ela chamou, tentando criar algum sotaque que parecesse estrangeiro – Eu sou nova na cidade, cheguei ao cair da noite e busco um ferreiro, pois preciso comprar alguns utensílios. Sabe onde encontro um?

            Altruz olhou para baixo, para a forma pequena da “criança” que se aproximava dele. (Aos olhos dele, a estranha parecia-se com uma criança, pois a baixa estatura dela, contra sua altura, seja física seja pelo consumo das fortes cervejas e conhaques, faziam-na parecer ainda menor). Ele deu um sorriso afetado, riu um pouquinho e apontou para trás.

Eu sou um ferreiro, senhorita. Altruz é o meu nome! Minha loja fica no Distrito Cinzento dessa adorável cidade de Yongard, e pra chegar lá você vai precisar andar um bocado.

– Me aponte a direção, por favor – Liriel pediu quase como se suplicasse.

– Mas eu não estou trabalhando esta noite, mocinha.

– Não tem problema, se ao menos eu souber onde fica, posso me hospedar nalgum lugar e esperar pela manhã.

– Mas tem minha filha que pode te atender.

– Tudo bem, senhor, apenas me diga onde fica.

– Mas ela não pode forjar nada nesse horário, pois está tarde, sabe?

           

            Liriel suspirou exasperada, muito irritada enquanto acenava com a cabeça num gesto de concordância. Bêbado como estava, com aquele sorriso alegre, o ferreiro certamente estava aproveitando um pouco de folga com o gordo pagamento que seu pai lhe dera pelos escudos e jóias. Mas a princesa não podia ficar muito tempo nas ruas, pois temia que, de alguma forma, houvesse algum guarda andando entre tavernas naquele horário também, pois Aggrive era muito mole e até mesmo displicente com os guardas sob seu comando. A possibilidade era muito pequena, mas existia, e sua paranóia em ter os planos arruinados por qualquer mínimo erro estava gritando em sua mente para que se apressasse.

            Respirando fundo por uns instantes, a princesa pôs os pensamentos em ordem enquanto Altruz cantarolava ao redor dela alegremente, assoviando como um passarinho vez ou outra, o que parecia estranho num homem tão alto e de aparência tão ameaçadora (e isso era um elogio).

– Senhor, eu só preciso que me mostre o endereço de sua loja e deixarei você em paz esta noite. Amanhã de manhã eu poderei comprar seus produtos, mas pode por favor me indicar o caminho?

– O quê? Ah, sim, sim... – Altruz coçou o queixo, coçou a cabeça e começou a fazer um estranho mapeamento na palma da grande e calejada mão – Bom, você vai ter que caminhar naquela direção... – E começou a dar a direção do caiminho.

                                                           ----

            Perryk fazia anotações em um de seus cadernos, concentrado ao ponto de seus olhos sequer piscarem. Desde a visita do rei Madrolan e seu pequeno grupo de guardas, que compraram presentes para a comitiva de diplomatas dos reinos conflitantes de Hoozen, Dankkarkh e Bravahrin. O rei gostou bastante dos broches e escudos, além dos pequenos projetos pessoais do rapaz que muito impressionaram o rei e seus guardas. Mas, para Perryk, o que o surpreendera fora a presença da filha do rei: a jovem Liriel Feskridt. Diziam alguns rumores de moças pela cidade que a chamavam assim por conta de sua aparência extremamente delicada, juvenil e comportamento brincalhão, quase como uma fada. Pelo que Perryk sabia, tinha algo a ver com a mãe da menina, rumores acerca de ela ter sido uma elfa ou algo semelhante sempre existiam aos sussurros entre alguns historiadores do reino. Mas mais do que isso, ele não sabia.

            Agora o que ocupava sua mente era trabalhar em uma forma de arrumar alguns defeitos que encontrara no projeto de seus “cucos”. Esses mecanismos complicados iriam substituir o uso contadores de gotas ou ampulhetas para verificar os horários dos dias e das noites, ele faria fama com tal invenção. Mas havia falhas nos esquemas e desenhos que precisavam ser corrigidas, e agora ele desenhava e calculava enquanto vasculhava alguns livros e estudava como montar as peças uma a uma. Isso, até ouvir uma batida na porta, e sem que pudesse dizer nada, Grivian entrou no quarto e fechou a porta atrás de si.

– Achei que você tivesse um pouco mais de educação, Grivian – Perryk bufou de irritação fechando seus cadernos um a um.

– Eu quero saber logo o que é que há de errado com você, molenga – A garota declarou, enquanto andava pelo quarto e evitava ficar perto de Agrur, que se balançava em seu poleiro e mastigava um pão doce.

Depois do meu aniversário, se me lembro muito bem foi o que combinamos. Não falta muito, alguns dias são o bastante e até você pode esperar um pouco, se é capaz de esperar o bastante pra cozinhar a carne e não comer ela crua.

– Engraçadinho, mas não se esqueça de que foi você quem disse que ia falar alguma coisa, impondo um prazo esquisito como se fosse uma profecia – Grivian ressaltou levantando uma mão e apontando o dedo na direção dele – Eu apenas tolerei esse silêncio porque foi bem difícil sair de debaixo da vigilância do meu pai, e agora que ele foi até os portões da Parte Alta jogar com os amigos pra comemorar o pagamento que recebeu, tenho você só pra mim. Vai, desembucha, o que é que você tem?

– Olha, Grivian – Perryk massageou as têmporas com as mãos, visivelmente irritado com aquela intrusão – Considerando que eu sou parcialmente invulnerável por determinado tempo, além de outras coisinhas sórdidas que me acontecem e que você não sabe, não acha que está colocando a sua vida em risco, vindo até aqui e impondo uma autoridade que você não tem? Além do mais... – Ele se levantou, andou até onde a garota estava e socou a parede com toda a força que tinha, abrindo um buraco do tamanho de seu punho – eu posso fazer parecer que foi um acidente, não acha?

– Você... – Ela olhou assustada para o buraco, e para mão dele que abria os dedos e estalava os ossos – Você não faria nada pra me machucar, é muito covarde pra isso.

– Sério? Tem certeza? Eu sou inteligente o bastante pra sumir com você, só não fiz isso ainda porque quero tocar a minha vida sem crimes, mas acho que posso mudar de idéia de se me perturbar demais – Perryk ameaçou e encarou a garota intensamente até a ver recuar um passo e engolir em seco, dando de ombros e se sentindo satisfeito por ter tido o efeito desejado – Que seja, vai saber antes da hora, mas não quero um pio sobre isso, pode ser? Posso confiar em você?

– Se acha que vou usar qualquer coisa sobre você pra fazer o papai te expulsar de casa ou pior, saiba que não sou tão baixa assim.

– De onde eu vejo... – Perryk olhou-a de cima a baixo – Você parece bem baixa pra mim. Ei! – Ele reclamou ao levar um chute na canela.

– Melhor começar a falar, antes que o papai volte.

– Tá, tá, que seja, garota impaciente – Perryk suspirou fundo, andou um pouco e se sentou novamente em sua cadeira. Buscou algo em sua mesa, e apertando um espaço aparentemente liso, revelando um botão secreto que liberou um grande painel de madeira na mesa, cheio de desenhos, anotações e estranhos registros.

– O que é isso tudo? – Grivian se aproximou um pouco, com medo dos grunhidos de desaprovação de Agrur atrás dela.

– São registros, documentos, estudos, e anotações sobre os momentos onde tive esses “acessos” de força, agressividade, resistência entre outros assuntos que venho avaliando... – Perryk olhou com seriedade para Grivian enquanto ela admirava a quantidade de papéis anotados e desenhos no painel – Lembra quando eu tinha dez anos, e do nada eu atravessei uma parede num rompante?

– Sim, o que tem a ver?

– Dois dias depois Yongard sofreu um ataque de forças arrivistas, o grupo de rebeldes do feudo Madramekkin.

– Certo, e daí? – Grivian parecia bastante confusa.

– Lembra quando eu tinha doze anos, e comecei a brigar com vários moleques do nada?

– Eu lembro, o papai deixou você de castigo, precisou te amarrar pra trazer pra casa e te deu a maior bronca. Mas o que isso tem a ver, droga?

– Dois dias depois uma tempestade de proporções caóticas atingiu Yongard depois de passar por outros dois feudos e deixou um rastro de destruição no caminho. Entendeu onde quero chegar ou precisa de outro exemplo? Que tal se eu dissesse que, de alguma forma, esses acessos de “poder”, se quiser chamar assim, tem uma certa coincidência de ocorrência quando a data é próxima do meu aniversário ou quando alguma catástrofe bizarra está pra acontecer? Algumas vezes coincidem com a chegada da caravana viajante também. Isso basta?

– Como... Tá, como isso tudo tá relacionado, Perryk? Tá me dizendo que você fica fortão, agressivo, totalmente diferente do tímido molenga que você é quando alguma tragédia, desastre ou sei lá, tá pra acontecer, feito mágica? Como se você previsse? E o que a caravana tem a ver com isso?

– Bom, nunca contei pra você ou pro Altruz, mas no dia em que ganhei aqueles livros velhos ali – Apontou para os livros de histórias dos dragões – E a “pedra” verde que era o ovo do Agrur, eu encontrei um senhor estranho que me fez uma charada esquisita. Depois daquilo, meus “poderes” ficaram mais freqüentes do que eu gostaria. E, prever eu não prevejo nada. Mas eu sei que tem alguma relação, e se eu for mais além e arriscar outro palpite, eu digo que tem algo a ver com os sonhos que tenho na noite do dia do meu aniversário. Aqui – Ele pegou um dos desenhos, que mostrava a imagem de um dragão – Sabe o que é isso?

– Claro, claro, um de seus objetos malucos de histórias e lendas, os dragões que você tanto adora – Grivian caçoou, pegando o desenho nas mãos e olhando um pouco, mas recuou de susto quando Perryk arrancou a folha de suas mãos com um rosnado impaciente.

– Você não tem idéia de nada, garota. Com tantos estudos e tantas evidencias do passado, você e tantos outros ainda zombam disso como se fossem histórias ou mentiras invetadas. Se quer ouvir minha explicação, ótimo, mas se vai fazer piada é melhor sair de uma vez.

– Calma, desculpa... Não pensei que você fosse ficar tão afetado.

– Não começa, Grivian. Vai calar a boca e me ouvir?

– Você vai pagar por me mandar calar a boca, mas eu ouço sim.

– Eu vejo ele, desde que era pequeno – Ele ignorou a ameaça da garota, e começou seu relato – Ele vem, do meio do nada, às vezes é tão grande quanto qualquer montanha que eu já tenha visto, e eu não vi muitas. Ou é do meu tamanho. É bizarro. Ele não se parece com nenhum dos deuses dragões, nem com os antigos reis antes da Derrocada e do Mal de Azirov. Eu chequei todas as referências que pude, ele não tem relação com nenhum dragão dos doze povos.

– Posso ver? O livro onde tem as imagens deles... – Grivian pediu meio insegura, não sabia qual seria a reação dele.

            Para sua surpresa, ele buscou um de seus grandes livros encadernados em couro preto, e na capa se via o título “Registros de Drache, os antigos povos dos dragões”. Ele abriu a página onde mostrava o primeiro dos doze: Ghavarran. Ela tinha uma aparência delicada, mas imperiosa, com barbatanas na cabeça simulando uma coroa, asas que eram maiores do que seu corpo esguio e pequeno, como uma borboleta, e a ilustração mostrava na ponta de cada “dedo” dos dois pares de asas que tinha uma esfera bulbosa evidenciava que brilhavam. A cauda, longa e sinuosa como uma serpente, terminava numa forma que lembrava uma estrela.

            Perryk avançou algumas páginas e mostrou outro dragão, o segundo a vir: Praghun, e esse fora desenhado como um estranho lobo: as asas, se é que podiam ser chamadas assim, tinham a forma de barbatanas enormes tal como as de um kraghun dos mares, mas eram mais longas e cheias de motivos geométricos em sua superfície. Tinha pernas fortes, quatro, terminavam em mãos de seis dedos e pés de cinco dedos. Sua cabeça era longa, com grandes chifres e focinho longo, dentes protuberantes saindo dos lábios de forma ameaçadora. E Perryk avançou as páginas novamente e mostrou rapidamente alguns outros, mostrando como cada um dos deuses dragões era diferente e facilmente reconhecível, juntamente com seus descentes e membros de seus povos, e então chegou naquela que ele chamava de “uma das únicas três representações de Arkanish”: o dragão em questão tinha longos chifres, quatro, que subiam e se combinavam como uma longa teia de aranha, e ao centro dessa “coroa” de ossos uma jóia se exibia. Arkanish tinha dois braços e duas pernas, como os outros deuses dragões, mas tinha três caudas e seis pares de asas, combinadas entre asas de dragão e asas de pássaros com penas elegantes. Os ossos protuberantes de seus ombros, cotovelos, joelhos, cintura e caixa torácica montavam padrões geométricos como se fossem uma armadura elaborada e nobre. Além disso, ele era o único em todo o livro que estava colorido. Talvez Perryk tivesse feito aquilo deduzindo as cores do grande dragão lendário, Grivian não saberia dizer. O tal Arkanish possuía cores púrpura, azuis, amarelas, vermelhas e brancas em todo o seu corpo. A jóia em sua “coroa” também estava pintada, em um verde brilhante.

– Agora olha o tal dragão dos meus sonhos – Ele fechou o livro num movimento brusco que assustou Grivian, e já segurava outro desenho de outro dragão – Eu meio que apelidei ele de Drageskala, na falta de um nome mais adequado.

            Este era diferente em vários sentidos. A começar que tinha quatro braços e duas pernas, e os braços terminavam em mãos de quatro dedos cada, com garras longas como agulhas. Dois chifres acompanhavam uma estranha protuberância em sua cabeça, que subia como uma estranha placa e possuía um olho ao centro. E o rosto tinha mais quatro olhos, numa face achatada e séria, com duas pequenas linhas de pequenos espinhos saindo de debaixo do olho da placa da cabeça até as narinas. E completando o rosto, abaixo do queixo havia uma longa barba esvoaçante. O corpo era esguio e elegante, mas forte, possuindo placas que Perryk chamou de “placas de osso arcano” no peito, ombros, coxas e mãos. Sua cauda era longa, e se dividia em duas, próxima do final, cada uma com uma protuberância no formato de uma lança.

            E as cores dele eram diferentes: preto, índigo, amarelo, aqui e ali um pouco de cinza. Parecia-se com uma vespa enorme. E Grivian tinha de admitir, ele sabia desenhar muito bem, os detalhes eram muitos e bem feitos, transmitiam a intensidade daquela criatura. E, se Perryk estava sonhando com aquilo, o quão mais forte era a presença que o tal dragão tinha? E como seria se ele fosse real? O quão assustador ele não seria?

– Por que você chama ele de... “Dragaescala”? – Ela perguntou, olhando para a expressão de seriedade do dragão no desenho.

– Drageskala – Perryk corrigiu pacientemente – Ele sempre sussurra isso quando aparece, então decidi chamar ele assim.

– E o que significa?

– Não sei. Mas tem a ver com dragões, obviamente, só que não encontrei uma tradução pra isso. O que eu sei, é que ele sempre aparece num sonho um dia antes do evento trágico e é difícil dizer se ele tem relação com os eventos, ou se quer me alertar sobre eles, ou sobre algo mais.

– Já tentou falar com ele?

– Já, já sim. E não adianta nada. Eu tento perguntar o que é que significa a palavra, eu tento perguntar quem ele é, o que ele quer... E ele me responde coisas como “não é a hora, não tenha pressa, não é o momento” – Perryk jogou os braços para o alto e deixou-os cair junto ao corpo, visivelmente frustrado. Aquilo era estranho, pois Grivian nunca vira o colega tão decepcionado e sem saída.

– Tá, beleza... – Ela respirou fundo, tentando digerir aquelas informações – Tem mais algum... “Sintoma”, relacionado às aparições e aos desastres?

– Nenhum, não que ainda não tenha acontecido, mas acho que é possível – Perryk deu de ombros, colocou o desenho de volta no lugar, apertou o mesmo botão e o painel de madeira sumiu – Não sei o motivo disso, só sei que meu aniversário vai ser em breve, e pelos meus cálculos, vai coincidir exatamente no mesmo dia da chegada da caravana esse ano. Seja o que isso signifique, vai ser “interessante”.

            Antes que Grivian pudesse perguntar qualquer coisa a mais ao rapaz, a campainha da loja tocou no andar de baixo, assustando a ambos e interrompendo a conversa. Era tarde, a loja já não fazia os serviços de ferreiro naquele horário, e era pura coincidência que as luzes ainda estavam acesas. Então, quem poderia ser?

            Olhando um para o outro, Perryk e Grivian decidiram checar, e Agrur olhou-os com grande atenção enquanto saiam do quarto e desciam as escadas.

            Chegando ao balcão da loja, a pessoa que tocou a campainha aparentemente era de outro lugar, pois ocultava todo o rosto, exceto os olhos, que tinham um brilho leve de verde. Vestia roupas pretas de tecido fino e elegante, e carregava uma grande mochila em suas costas e uma bolsa de alça apoiada no ombro. Mas a estranha figura não parecia cansada ou sobrecarregada, apenas impaciente. A figura, também, era pequena, quase uma criança, pois aquela altura era ainda mais baixa do que a altura de Grivian.

– Boa noite, sou forasteira e busco uma pousada – Liriel tentou fingiu um sotaque, para que nenhum dos dois pudesse reconhecer sua voz. E não foi fácil, uma vez que estava cara a cara (ou quase) com o objeto de seus planos: o rapaz Perryk.

– Boa noite – Grivian respondeu de forma educada, mas entediada – Tem a pousada do Tordo de Pedra a duas quadras daqui, à direita.

– Não há nenhuma mais próxima?

– Bom... Tem algumas tavernas mais próximas há dez metros, mas eu não recomendaria que fosse – Perryk coçou a cabeça, olhou um de seus cadernos e pescou uma folha com um endereço – Esse é o endereço da taverna mais “limpa” que vai encontrar no Distrito Cinzento, basta seguir pela esquerda, depois direta, cinco passos pra cada, e vai dar de cara com ela.

– Obrigada – Liriel agradeceu, e antes de ir, virou-se e olhou para Perryk – Eu virei amanhã, quando houver mais luz e mais tempo, pra discutir com você um assunto de suma importância – E saiu, deixando a ambos extremamente confusos.

– Essa noite não tem como ficar mais confusa... – Grivian massageou a testa alguns momentos – Eu vou tomar um banho, fiquei com dor de cabeça...

            A garota subiu as escadas aos pulos, deixando Perryk sozinho, atrás do balcão, tremendamente confuso. A última coisa de que precisava era uma discussão com Grivian, e depois de ter contado para ela seu maior segredo, sentia que precisava comer alguma coisa para acalmar os nervos, então, foi até a cozinha.

                                                           ----

            Liriel andou vagarosamente até a taverna depois de conseguir um bom lugar para dormir. Ela veio de volta à loja sem ser percebida, e então andou novamente para a taverna que Perryk lhe indicou. Depois, foi ao endereço que a ruiva lhe deu, fez o mesmo indo e voltando, indo até a taverna, para a pousada, e para a loja. Contou os passos, calculou o tempo, e se certificou de que faria um bom tempo indo e vindo, se precisasse fugir, agora que tinha memorizado o caminho e os pontos de referência daquele local. O próximo passo era encontrar um local afastado e isolado, agora que conhecia o caminho.

            Ela andou, procurou, procurou, até que tropeçou num homem enorme que vinha cambaleando pela rua. O homem se desculpou de imediato, a voz arrastada e pastosa com um forte hálito de conhaque. A princesa apenas acenou com a cabeça e seguiu andando. O homem, por sua vez, olhou para baixo e agarrou um objeto brilhante que havia por ali, pois captara sua atenção de imediato.

            Quando chegou à loja, Altruz cambaleou de volta à sua cama, sendo guiado por uma Grivian cuidadosa que dava broncas e reclamava do hálito forte do pai. Ele caiu em seu colchão de penas e já estava roncando. Ela não viu o pingente brilhante na mão do pai.

            Perryk, quieto e em seu quarto, ouvia reconfortado os sons noturnos de seu tutor e sua colega indo dormirem, pois, agora, poderia sair e ir até uma velha torre abandonada observar as estrelas. Pensava que assim poderia clarear a mente, e Agrur foi com ele, empoleirado em seu ombro. Andaram um pouco, ambos tremendo levemente de frio, até que chegaram à base da torre. Entraram, usando um buraco num dos lados da estrutura, subiram as escadas com calma e evitando os degraus rachados ou deteriorados, e, enfim, chegaram ao topo. O teto há muito tempo tinha um grande buraco, e ali a luz das estrelas e da lua (quando havia lua) brilhava forte.

            Perryk se sentou num monte de entulhos que havia ali, e pôs-se a desenhar as constelações que via naquela noite: as estrelas sempre mudavam de lugar noite a após noite, voando no cosmos e alterando suas posições, mas as constelações em si possuíam sempre os mesmos padrões, apenas em lugares diferentes, seja acima de Mekkingard, Yongard, seja acima de outro reino do mundo, pelo que Perryk podia imaginar. E o rapaz se distraía tanto com seus desenhos, que se assustou quando uma voz falou com ele.

– Queria ter mais conhecimento do assunto pra ajudar você, garoto. Você desenha muito bem – Disse a voz, perto dele em algum lugar.

            Perryk olhou ao redor, até achar a fonte da voz: seu bicho de estimação, seu amigo animal místico: a voz vinha dele.

– Acho que devo algumas explicações – Agrur falou num tom de voz educado.

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