Minguante

O sol se despedia novamente, seria somente o fim de um dia exaustivo de trabalho na lavoura para os homens, correria e afazeres para as mulheres da pequena e pacata vila, se a noite que se formava diante dos olhos de todos, não fosse a primeiro noite de lua minguante. Assim que a claridade começou a ceder lugar para a brisa fresca do fim de tarde, mães corriam em buscas de suas crianças, amontoando-as em seus braços, enquanto buscavam a segurança enganosa de seus lares frágeis. Pais, voltavam a passos apressados, carregando com esforços seus equipamentos pesados e sem cuidado algum, despejando ao lado da entrada da casa simples, encontrando no cômodo mal iluminado os olhos aflitos daquela que sabia o que estava por vim e implorava em silencio para que algo fosse feito, mesmo sabendo que contra a maldade que os assolariam ao escurecer, não teriam como lutar. Precisavam ser rápidos, o tempo se dissolvia entre os dedos de todos os moradores e a grande decisão ainda precisava ser tomada. As poucos famílias estavam reunidas na praça central, somente os adultos, todas as crianças menores de doze anos, inclusive os bebês, ficavam em casa à espera da decisão. Choro, gritaria, o caos e desolação estampado no rosto de todos, ainda que o alivio por não terem sidos os escolhidos, transbordasse no coração, sabiam que naquela noite uma família inteira sofreria e pagaria com o próprio sangue, para que o restante da vila seguissem vivos.

— Não! – A dor na voz da mãe em desespero, cortou em pedaços o coração de todas as mães ali presente.

O grito ecoou por todos os cantos, a angustia foi tamanha que era possível ver o exato momento que a alma da mulher se quebrou, caiu sobre os joelhos e seus olhos perderam a vida, não existia mais foco, uma única lagrima caiu de seus olhos. Seu marido tentou ampara-la, dar a ela o conforto que precisava, mas soltou-se dele e o olhou com tamanho ódio, deixando claro sem dizer uma palavra se quer, o quão fraco aquele homem era por não conseguir proteger o seu bem mais valioso.

— Covardes imundos! – Gritou ao passar por todos – Ele não teve tempo se quer de viver é apenas um bebê, um bebê.

Correu em direção de sua casa, sabia que seu tempo ao lado dele era mínimo, logo passariam para tomar o escolhido para o sacrifício.

Um sacrifício, por todas as vidas.

Abriu a porta em um rompante, não conseguiu impedir que o sorriso se misturasse as lagrimas que escorriam em descontrole sobre sua face, quando viu o pequeno pacote embrulhado dentro do cesto. Dormia tranquilo, dentro da inocência de seus nove meses de vida, nem ao menos sabia o quão cruel o ser humano poderia ser, não passava por sua mente inocente que precisaria derramar o próprio sangue para lutar contra algo que ele jamais ouviria falar.

As lágrimas venceram.

O soluço rompeu seu peito, ajoelhou-se tomando o pequeno embrulho em seus braços, pedindo aos deuses uma solução, um único escape, uma força para que somente daquela vez conseguisse enganar o terror minguante.

— Ele ainda é um bebê. – Choramingou implorando.

Sentiu os braços do marido a envolvendo e dessa vez não se afastou, entregou-se a pequeno conforto que ele poderia lhe dar, deixando com que a dor e a angustia que sentiam se misturassem.

— Não posso, não posso entrega-lo. – A voz saindo estrangulada entre o choro e o desespero da impotência diante do que estava fora do controle de suas mãos.

Logo bateriam em sua porta, levariam o seu bebê e o sangue dele seria derramado para que o amanhã de toda a vila acontecesse, mas ela sabia que morreria no exato momento em que cruzassem a porta com seu filho nos braços.

— Eliza! – O grito ecoou atravessando a porta, encontrando a mãe aflita – Precisamos leva-lo, abra a porta!

A hora havia chegado, não teriam como fugir. A lei foi estabelecida há séculos: Para que todos vivessem, um deveria ser entregue e seu sangue derramado nos umbrais das portas. A minguante não falhava, o terror sempre surgia com ela.

O baque seco da porta assustou os três moradores e o pequeno bebê chorou com toda a sua força, parecendo prever o seu destino. Os homens adentraram a simples casa e sem muito cuidado, tomaram das mãos de Eliza o seu pequeno tesouro. Gritos e lagrimas se misturavam ao clamor e pedidos de misericórdia, mas eles nada poderiam fazer, gostavam daquela situação tanto quanto ela, mas sabiam que a morte era certa se a minguante não fosse saciada.

— Espere! – Ela gritou ainda jogada ao chão, segurando-se aos pés do homem que levava seu filho – Deixe-me fazer isso. Se ele precisa morrer, que seja por minhas mãos.

Os homens pararam chocados, jamais haviam pedido tal coisa a eles, imaginavam que elas não conseguiriam, se para eles a imagem da morte, o peso da cena se estendia sobre seus sonhos e os carregava para o mais sombrio dos pensamentos. Como poderia uma mãe ser capaz de tirar a vida do próprio filho? O algoz a encarou por segundos que pareceram a eternidade.

— Levante-se. – Disse com pesar em sua voz, ela de pronto obedeceu e sem pensar duas vezes estendeu os braços na espera de receber o filho de volta. – Sabe do que precisamos, o tempo está acabando, Eliza. Seja rápida.

O bebê lhe foi entregue e os homens, ainda que contrariados, saíram da casa, deixando nas mãos da mulher o destino de todos da vila.

O tempo se arrastava, a luz do sol cedia lugar e a luz já se fazia presente no céu, como um riso sinistro, zombando de todos abaixo dela, sabendo exatamente o que lhes obrigavam a fazer sempre que surgia.

Todos estavam reunidos na praça, as mulheres com suas vasilhas à espera do sangue inocente, os homens aflitos com os olhos fincados na floresta, esperando que a imagem de uma mulher acabada surgisse com o liquido vermelho que os salvaria.

— Ela está vindo! – Alguém gritou em meio a pequena multidão que a esperava.

Eliza surgiu com o rosto abatido, as vestes sujas e o sangue manchando suas mãos. Seus olhos encaravam a todos e a acusação estava estampado em sua face.

— Tome. – Entregou o velho balde de madeira e a forma bruta com que socou nos braços do homem parado a sua frente fez com que respingo do liquido vermelho espirasse nas pessoas ao redor. – Abutres, salvem-se.

Não esperou por resposta, virou-se e já andava de volta a floresta fechada de onde veio quando ouviu a voz de cobrança.

— Onde está seu marido? – Ele gritou e sua voz estava carregada de acusação.

— Enterrando aquele que vocês mataram. – Respondeu sobre o ombro sem se dar ao trabalho de virar para olha-lo.

Ela desapareceu na mata fechada, deixando para trás as pessoas que conviveu durante toda a sua vida, dividindo em vasilhas o sangue do seu filho.

A noite chegou mais rápido do que muitos gostariam, enquanto alguns ansiavam para que a escuridão os atingisse e da mesma forma que veio fosse embora, expulsa pelos raios de sol, outros desejavam que ela jamais chegasse. Mas ele não falhava, como uma nevoa fria e demoníaca se arrastava a procura das vidas que saciaria sua fome até a próxima colheita.

Portas e janelas bem fechadas, todos se agrupavam o mais longe possível de qualquer brecha que pudesse entrar a luz da lua, por menor que fosse. Mães, abrigavam seus filhos sob grossas peles, enquanto os pais permaneciam em pé parado diante a porta com qualquer instrumento de luta em mãos, mesmo sabendo que contra o que estava por vim, não teriam como lutar. A noite chegou enfim, deixando a todos no mais completo desespero, os ruídos que vinham do lado de fora enlouqueciam os moradores, deixando claro que ela estava chegando, as gavinhas se arrastavam pela grama úmida marcando todo o lugar por onde passava levando com elas grama e terra.

— Afastem-se da porta! Afastem-se da porta!

Ouvia-se os gritos em amargura.

O sangue fresco do sacrifício ainda escorria pelos umbrais das moradas protegendo os primogênitos.

— O sacrifício foi feito, ela não poderá entrar! – Gritou uma mãe, tentando convencer a si mesma daquela verdade.

De forma sorrateira e tomando cada pedacinho da vila, as gavinhas tão escuras quanto a noite, deslizavam com facilidade, não encontrando dificuldade alguma ao passar pelas brechas das portas e janelas, o sangue não a conteve, rastejava para dentro das casas levando os moradores ao total desespero. Gritos se misturava ao soluço alto do choro que rompia no peito das mulheres e crianças que corriam sem direção tentando fugir, homens golpeavam com toda a fúria as amarras pretas e peçonhentas que deslizava pelo chão na esperança inútil de atingi-la e de alguma forma dar ao seus filhos alguma vantagem na fuga, mas como fumaça elas se desfaziam, tornando-se solidas e ágeis logo em seguida. Corpos eram arremessados no ar enquanto gavinhas os dividiam ao meio, fazendo com que suas tripas explodissem e pedaços caíssem para todos os lados, um mar de sangue banhando a todos.

“Eu pedi somente um e por causa da desobediência todos pagaram”

Uma voz ecoou alto dentro da cabeça de todos os moradores da pequena vila, fazendo com que os ossos tremessem e as pernas falhassem.

— Mas o que ela fez? – Alguém gritou no meio da multidão, sem entender o que estava acontecendo.

Mas não teve tempo para pensar, sentiu a amarra em seu tornozelo e o corpo ser levantado com tamanha rapidez que o filho que segurava com força em seus braços caiu no chão e antes mesmo que conseguisse registrar o tombo da criança e sua perda, viu quando uma gavinha perfurou a cabeça de seu filho no mesmo momento em que suas pernas foram abertas com tamanha força que seu corpo foi partido em dois.

Morte, para todo lado era somente morte.

Corpos em pedaços pelo chão, sangue tingindo toda a vila, nem uma única pessoa sobreviveu, do mais novo ao mais velho, todos foram mortos em uma carnificina.

Eliza corria pela floresta, segurava seu bebê em seus braços, as lágrimas escorriam em sua face, seus pensamentos confusos, por mais que lamentasse a decisão que tomou, jamais conseguiria conviver com aquela morte em suas mãos. Precisou decidir entre o marido e o filho, eles queriam sangue e sangue ela entregou, existia somente uma certeza dentro de seu coração, ninguém iria tocar em seu filho. Correu, quando acreditou que não teria mais forças para seguir, respirou fundo e continuou correndo, sentiu seus pés machucando, as pernas pesadas e os braços adormecidos, mas não parou, não afrouxou o aperto. Só pararia quando sentisse o primeiro raio de sol tocando o seu rosto.

Sentia-se livre, como se todo o peso de gerações já não estivesse mais sobre seus ombros, não sabia o que iria fazer ou como sobreviveria, a única certeza que existia dentro de si é que conseguiu manter-se viva e seu bebê vivo, estavam seguro. A noite já perdia espaço para o dia que chegava devagar, fraco, mas Eliza agradecia aos céus por enfim conseguir enxergar uma gota de claridade, enfim poderia respirar. Deixou o corpo moído cair na grama úmida e apoiou-se na arvore, já não sentia mais as pernas e os braços agora tentava acalmar o bebê aflito e faminto, estava tão cansado e dolorido quanto ela. Eliza sorriu para sua pequena vitória, acariciando o rosto do seu filho e com cuidado soltou as tiras de suas vestes, deixando assim a mostra os seios fartos que continha o único alimento que seu bebê desejava, em um ato faminto o pequeno abocanhou sua fonte de sustento, passando a sugar com força. E ali estava o pequeno paraíso daquela simples mulher, todo o motivo de suas mentiras e luta, estava em seus braços. Sorria amamentando seu primogênito, seu único filho, sua única família, tudo o que lhe restara no mundo, tudo o que tinha em sua vida, estava em suas mãos.

Não teve tempo para sonhar mais, sentiu seu corpo ser invadido e um arrombo ser feito em seu peito, passando por ela e invadindo o pequeno em seus braços, fazendo a pequena boca que se alimentava abrir em um “O” perfeito e não se fechar mais, ela olhou para baixo e viu uma gavinha preta atravessando os dois, arrancando seus corações ainda pulsando em um mesmo ritmo.

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