Capítulo 6

                                                        Capítulo 6

       Não são todos os que têm sorte de ficar aqui, vivos pelo menos



            No ginásio esportivo, vários alunos já estavam tendo algumas lições de ginástica: alongamento, corrida, alguns faziam exercícios, que eram ditados por um homem roedor, algo e magro, mas suas pernas eram muito torneadas e definidas: seu nome era Maurice Rapidórix, e era uma raridade, um homem ouriço. Já foi ganhador de vários prêmios em competições de corrida, e agora era um professor de educação física. Sua característica mais desconcertante era seu cabelo: penteado para trás, espetado, que ele teimava em tingir de azul. O outro professor estava separando times para o primeiro dia de bola queimada. Era um orc enorme, alto e largo como uma árvore, de pele morena cheia de tatuagens tribais, um cabelo preto e espesso caindo para trás em tranças feitas com ossos, e é claro, suas presas se projetando para fora da parte inferior da boca, e as presas tinham alguns anéis de ferro grudados, enfeites bem incomuns. Ele era o novo professor, Gunnar Firefoot, e fora um lutador de grande honra em torneios de artes marciais.

            Quando Vivi e Ana chegaram, notaram que um dos times de bola queimada só tinha sete membros: estes eram, sem sombra de dúvida, Pedro e seus colegas. O outro time consistia em mais de 35 outros alunos, que estavam tão confiantes que chamavam por mensagens de texto seus amigos para participarem do time, ou para assistir ao “massacre dos sete ridículos”. Em questão de minutos, havia uma considerável plateia ao redor das duas, e o time aumentou com mais dez pessoas: quarenta e cinco contra sete.

– MUITO BEM SUAS MOÇAS MAGRICELAS! – Berrou o professor, alto o suficiente para fazer todos se calarem – Se querem mesmo essa deslealdade, que seja! Esses sete vão acabar com vocês todos, a quantidade pode ser um verdadeiro diferencial numa batalha, seja com espadas, seja com bolas! – Todos os rapazes riram, e o professor Gunnar riu de forma contida – É, é, bolas. Que seja. Terão uma dura lição hoje, vocês todos – Apontou para o time de quarenta e cinco alunos – se vocês se atreverem a perder para apenas sete malucos mirrados, que contam apenas com os laços mágicos de sua amizade.

– Objeção, professor! – Gritou Capivara – Não somos pôneis! – O ginásio se encheu de risadas, e Gunnar Firefoot riu com gosto.

– Que os deuses da guerra fiquem felizes por esse fato, rapaz! – Respondeu o professor – Conhecem as regras! São três bolas na linha central, mas hoje vou colocar uma quarta. Ao tocar o apito, vocês pegam a bola, o mais rápido que puderem, apenas quatro de cada equipe, e se revezam para jogar, pegar, ou… – Ele olhou de forma ameaçadora para os alunos – … Perderem de forma vergonhosa e ridícula, justo no meu primeiro dia de aula! EM POSIÇÃO, VOCÊS TODOS! – Berrou ele, fazendo com que o time de quarenta e cinco alunos decidisse que seguiria a regra dos jogadores reservas: com trinta no campo principal, e quinze na área traseira da quadra (área neutra, segundo as regras), haveria duas frentes de jogadores.

            A idéia era que, caso uma bola fosse jogada para trás da quadra, os reservas também poderiam queimar os oponentes. Não poderiam se esquivar com tanta velocidade de duas frentes. Vivi explicava essa estratégia para a amiga, mas Ana só sentia uma aflição enorme.

– Como é que pode essa desvantagem? – Queixou-se – São quarenta e cinco contra sete.

– Realmente, é muito injusto. Deveriam ser uns cinqüenta – Disse a felina, confiante.

– O que? Tá maluca?

– Calma, você vai ver… – Confidenciou Vivi, e Ana só podia olhar, aflita, seu amigo e os amigos dele se posicionando. Pedro e os rapazes decidiram que deveria haver três na reserva, na parte de trás da área do time inimigo. Portanto, contavam apenas com quatro jogadores principais. Se um deles perdesse “três vidas”, ou três acertos de bola sem poder segurar, seria eliminado, e então, um reserva poderia entrar.

            Algum tempo depois, quatro grandes bolas de borracha vermelha foram postas na linha central, e os times se preparam nas posições. Como se o tempo tivesse parado, todos olhavam ansiosos para as bolas na linha central, e quando o professor apitou, foi uma confusão: os quatro rapazes recuperaram três bolas, enquanto que o time inimigo ficou com uma bola apenas. Com isso,  os trinta contavam agora com vinte e sete, pois Pedro e Lincoln eliminaram, logo de cara, três dos rivais. Igor passava a bola para a reserva, enquanto segurava a bola que jogaram nele: agora eram vinte e seis.

            As bolas de borracha vermelha voavam, zunindo feito balas de armas de fogo, e os quatro dos “sete ridículos” (Pedro, Lincoln, Igor e Capivara), faziam malabarismos exagerados para esquivar-se dos ataques. O time inimigo descobriu que, por ter muito mais pessoas em sua equipe, era quase impossível que alguém não fosse acertado, dado o pouco espaço para fugirem e correrem sem terem o problema de esbarrar e tropeçar nos colegas de equipe. Pouco a pouco, a suposta desvantagem numérica foi reduzida a apenas dez, e desses dez, cinco eram da equipe reserva que resolveram ir para a quadra (chegaram ao ponto de estarem com cinco contra quatro). Igor havia levado apenas duas boladas, Capivara levara duas também, Lincoln e Pedro não haviam sequer sido tocados pelas pancadas das bolas de borracha. Andrey, Heitor e Samuel passavam as bolas de volta aos amigos, com lançamentos altos, ou também eliminavam os oponentes.

            Quando cada um dos times contava com quatro jogadores na quadra, e apenas três na reserva, as coisas esquentaram, e muito. Os oponentes resolveram fazer uso da diminuição dos membros da equipe, e fizeram jogadas espetaculares e quase orquestradas, eliminando Igor e Capivara. Estes foram substituídos por Andrey e Heitor. Mas logo Andrey foi eliminado: todos do time inimigo estavam com a posse das bolas, e ele não esperava quatro jogadas de uma vez. Então Samuel entrou na equipe, e fez um verdadeiro show: como era permitido aos alunos usarem suas habilidades especiais para jogar, incentivados a se adaptarem às situações, ele fez uma jogada tripla com duas mãos e a cauda longa que ele nunca escondia. Conseguiu marcar um jogador inimigo duas vezes e outro foi eliminado, restando uma diferença de quatro contra seis. E mesmo isso durou pouco: os seis tornaram-se quatro, os quatro tornaram-se dois. Pedro e Lincoln mantinham-se totalmente intocados, Samuel deixou-se eliminar, junto com Heitor, para que os outros dois tivessem todas as quatro bolas em mãos.

            Enquanto isso, a platéia urrava e gemia, tendo reações assustadas de surpresa ante a ferocidade dos alunos. Alguns ali nunca haviam visto Pedro e os amigos jogarem, mas sabiam que sua reputação poderia ser exagerada. Ainda assim, ficaram pasmos de ver sua agilidade e força ao jogar a bola, em arremessos que a faziam quicar no inimigo, voltar para suas mãos, apenas para retornar de encontro ao alvo. Vivi fazia torcida, dando gritinhos animados, e Ana sorria vendo a coisa toda. “É, eles realmente estavam com a vantagem…”, ela pensou, entusiasmada. Os rapazes jogavam muito bem, a sinergia deles era quase como uma ligação mental, eles faziam as jogadas como numa dança, ajudando e não atrapalhando os outros do time. E Pedro, ela pensou com carinho, era o melhor da equipe. Corajoso, impetuoso, feroz, ele não dizia nada, olhava para os oponentes e sussurrava ao ouvido de Lincoln o próximo lance. O elfo, por sua vez, sorria com atrevimento.

            Eram três contra dois agora, e cada time contava com duas bolas. Enquanto Lincoln se esquivava de duas jogadas, Pedro afastou-se para trás, deixando os outros três apreensivos. E, quando Lincoln se agachou, Pedro correu na direção dele, usando o amigo como alavanca: o elfo se ergueu, ajudando Pedro a dar um salto titânico e arremessar as duas bolas de borracha com força total ao chão, e elas quicaram com força e acertaram dois do time inimigo. Eles mal puderam reagir, de tão atônitos estavam perante uma jogada tão inusitada.

            Vivi e Ana gritavam de alegria, aquilo era incrível de se ver. Sete jogadores conseguiram tornar a desvantagem de 2 para 1. Entretanto, esse último jogador estava dando trabalho: homem símio de 19 anos, na flor da idade, era rápido e acrobático em seus movimentos. Mas não teve chance alguma: enquanto Pedro se sacrificava numa distração, para levar uma bolada bem localizada (ao que ele já havia levado outras duas do oponente), Lincoln provou que os elfos são superiores em velocidade e pontaria: numa sucessão de três arremessos, como se ele usasse um arco e flecha, as três bolas de borracha no campo dele voaram de suas mãos fortes, de tanto dobrar massas de confeitaria, e acertaram em cheio as pernas e o tronco do rapaz símio. E esse foi o fim da partida, com a platéia gritando vivas, aplaudindo, e mesmo os oponentes admitindo com respeito a superioridade dos rivais.

– Muito bem, seus molengas! – Gritou o professor – Esse foi um belo show, justo no meu primeiro dia! Os quarenta e cinco perdedores vão pagar trinta voltas ao redor da área interna do ginásio, depois mais trinta na área externa, AO REDOR DO PRÉDIO INTEIRO! E depois disso, cinqüenta flexões! Sem choradeira! Mexam essas bundas magrelas! – Os perdedores, é claro, resmungaram chateados, mas aceitaram a continuidade da tarefa.

– Aos vencedores – Continuou o grande orc – Vocês têm, pelo menos, vinte minutos de descanso, antes de irem ao chuveiro e voltarem até aqui. Quero os nomes de vocês para um pequeno projeto, adorei o desempenho de vocês. MAS NINGUÉM QUER SABER DO CHEIRO DE SUOR DE VOCÊS! Então lavem bem esse cheiro de sovaqueira, seus delinqüentes!

            Os sete amigos, é claro, riram, bateram na mão espalmada do professor Gunnar e foram até a arquibancada, sentaram-se e observaram os perdedores correndo ao redor da quadra, seguidos de perto pelo professor, que berrava em suas orelhas e dava tapas estrondosos nas costas de qualquer um que ficasse molenga demais.

            Logo, os sete rapazes estavam rodeados de garotos e garotas, alguns eram os céticos, que queriam saber como eles haviam conseguido uma vitória tão improvável, outros para cumprimentar a performance de jogo tão bem ensaiada, ao que eram respondidos “foi puro instinto”. A grande maioria das garotas, é claro, ficava paparicando pelo menos seis deles: Pedro recusava educadamente as garrafas de água, toalhas, lenços ou coisas parecidas, até que Vivi e Ana puderam abrir caminho em meio a multidão.

– Vocês jogam muito bem! – Exclamou a felina – E a Ana aqui morreu de preocupação por você.

– Não precisava tanto, já sobrevivi a muita coisa – O lobisomem sorriu para a amiga vulpe, que se sentia tímida.

– Ah, eu sabia desde o início que vocês iam detonar aqueles caras – Mentiu ela, sem jeito.

– Que mentirosa – Vivi riu – Bem, conversem um pouco, vocês tem vinte minutos, de qualquer forma. Vou buscar uma água pra você – E saiu apressada, junto com outros alunos que dispersavam-se do grupo, deixando Pedro e Ana bem juntos.

            Ela sentou ao lado dele, fascinada com o rapaz. Ela via agora um outro lado nele: não a agressividade explosiva de uma briga, mas a competitividade disciplinada de um esportista. Ambas as coisas, é claro, estavam muito próximas, em se tratando de lobisomens. Mas ela, como vulpe, raramente vira uma demonstração esportiva tão acirrada, mesmo nos programas de esportes e eventos de grande escala.

– Onde aprendeu a jogar daquele jeito? – Ela perguntou, curiosa.

– Te falar, eu poderia dizer que tá no meu sangue, mas eu estaria mentindo – Pedro respondeu, rindo – Eu sempre gostei de bola queimada, ou dodge ball, voleiball, essas coisas. E, agitado como eu sou, somado à agressividade, foi uma válvula de escape perfeita.

– Imagino, mas você e seus amigos, vocês treinam ou praticam juntos?

– Negativo.

– Então, como é que vocês conseguiram ter essa sincronia toda?

– Como eles disseram, e eu digo: instinto. Nos acostumamos a jogar uns com os outros, já jogamos uns contra os outros, sabemos como nos movemos, como pensamos. O resto funciona no piloto automático, agimos de acordo com padrões, e o resto, é puro instinto.

– Saquei, parece complexo.

– E você? Já praticou algum esporte?

– Ah, eu gosto de vôlei, mas não sei se vou fazer educação física… Minhas duas próximas aulas vão ser línguas e história, antes do horário de almoço, até onde decidi.

– Eu vou ter, provavelmente, informática e filosofia.

– Você não me parece muito filósofo – Ana brincou, achando estranho a possibilidade.

– Eu sei, tenho mais cara de bruto.

            Ambos riram, e logo Vivi já estava por lá, com uma garrafa de água. Mas logo os deixou conversando, até que os vinte minutos de descanso terminaram, e Gunnar os mandou para os chuveiros. Todos os sete foram, em grupo, brincando e se batendo, e Ana ficou observando-os um pouco, antes de Vivi a arrastar pelos corredores, de volta à Academia: o sinal logo tocaria, e ela teria outra aula. Precisavam comprar algum doce.

– Caralho, fazia tempo que eu não jogava assim! – Pedro falou, alto, acima do som dos chuveiros ligados, de dentro de seu cubículo

– Admito que senti falta dessa energia – Lincoln respondeu. Era alto o suficiente para que alguns centímetros de seu “cucurutu” ficasse acima do cubículo.

– Por que raios eles tentaram usar quarenta e cinco malucos? – Andrey perguntou, praticamente escondido no cubículo do chuveiro – Todo mundo sabe que bola queimada é um esporte de poucas pessoas.

– Todo mundo, menos aqueles quarenta e cinco – Igor salientou.

– Realmente – Capivara concordou – Aquele maluco símio que sobrou, ele sim jogava bem. Teria carregado o time sozinho se deixassem.

– Patético – Pedro bufou – deixaram o cara guardado como se fosse fazer qualquer diferença. Ele era bom, sim, mas teria sido melhor deixar ele na quadra desde o início.

– Não dá idéia – Heitor advertiu. Ele era alto o suficiente para que seus olhos ficassem acima do cubículo – Se algum deles ouve, na próxima vez podemos ter problemas.

– Ah tá, duvido disso – Retrucou Samuel – Pego ele no 1 “xis” 1 de bola queimada quando ele quiser.

            Os amigos riram, sabendo que Samuel não brincava. De banho tomado, saíram todos enrolados em toalhas brancas nas cinturas, e Pedro, obviamente, tinha uma toalha extra: ele enrolava-a e dava golpes estalados nas peles expostas dos colegas, e ria de forma sádica quando eles reclamavam. Junto aos armários, eles vestiam suas roupas normais do dia a dia escolar, mas foram interrompidos por alguns encrenqueiros do time adversário.

– Ei, seus manés – Disse um deles – É melhor tomarem cuidado, não gostamos de ser humilhados.

– Quenti? – Samuel perguntou.

– O que? – Outro dos encrenqueiros retrucou.

– Quem te perguntou alguma coisa? – Os amigos dele responderam com chiados entre os dentes, rindo.

– Tu é bem corajoso pra um camundongo, né? – O mais perto dele agarrou a cauda dele.

            Fez-se um silêncio de expectativa na sala. Ninguém dizia nada, e a respiração quase parava. Samuel mal se movia, e Pedro olhava a cena, adorando o resultado próximo.

– Ahn… Eu sugiro que vocês corram, o mais rápido que puder – Disse o lobisomem.

– Ah é? E por quê? – Perguntou o que segurava a cauda de Samuel.

– Bom, não digam que não avisei, você especialmente, tem cinco segundos…

– Como é?

– Três, dois… Um.

            Rápido como um raio, Samuel desferiu um chute para trás, sua perna já tomada por uma transformação parcial que lhe dava garras e dedos longos, como os de um rato, e arremessou o primeiro encrenqueiro para a parede. Antes que o outro pudesse soltar a cauda dele, ela se desvencilhou e agarrou o pescoço dele feito uma enorme serpente rosada com fios de pêlo grossos e ásperos, e Samuel, dando um salto-mortal para trás, agarrou os braços do garoto, assustado.

            Na transformação parcial de Samuel, seu rosto se projetava para frente, com o focinho largo, orelhas protuberantes acima da cabeça, os dentes tornando-se afiadíssimos e os dois dentes da frente mais alongados, o corpo parcialmente coberto por pêlos negros e uma musculatura mais definida. Por causa das pernas animalescas, ele ficava mais alto, e agora respirava em baforadas junto ao pescoço do outro garoto, que tremia e gemia, apavorado ante a reação inesperada da “vítima”. Suas mãos, agora longas com dedos de garras afiadas, forçavam seus braços para baixo.

– Escuta bem… – Samuel disse, sussurrando numa voz chiada e medonha perto da orelha longa do garoto (era um elfo, aproximadamente uns 160 anos) – Da próxima vez que agarrar meu rabo, eu vou enfiar uma cadeira no teu rabo, capicce?

            O elfo encrenqueiro assentiu com a cabeça, e Samuel o soltou, num movimento brusco para fazê-lo virar-se e olhar para ele. A visão era realmente assustadora: aquele garoto magro e mirrado fora substituído por um rato humanóide bípede com olhos furiosos e músculos cobertos numa pelagem negra e eriçada de raiva. Quando Samuel bufou, o encrenqueiro virou-se e correu, tropeçando, caindo, levantando e fugindo de novo.

– Estão sentindo esse cheiro? – Capivara perguntou.

– Ah, que merda! O maluco se mijou todo! – Samuel reclamou, voltando ao normal e pondo uma camiseta limpa.

– Que covardão, o cara quer arrumar confusão e comete o erro de agarrar o rabo do nosso rato! – disse Andrey.

– Agora eu não duvido que ele vence o garoto símio – Completou Igor.

– Galera, a conversa tá ótima, mas vou me enfiar na academia de exercícios agora – Heitor disse, entrando no vestiário com outra roupa para se exercitar – Eu passo seus nomes para o professor, o sinal já vai bater.

– Valeu, cara – Respondeu Pedro, e logo, os seis já estavam de saída.

– Galera, vou ficar por aqui, na piscina – Disse Igor, a certa altura – Quero praticar natação algum tempo.

            Assim, apenas cinco dos sete voltaram ao horário normal das aulas. Os alunos tinham essa liberdade de escolher suas aulas, e como era o começo do ano letivo, aos poucos as matérias seriam definidas. Não era preciso ter pressa nem se desesperar por notas.

            Em algum lugar, na zona oeste de Howlingtown, um elfo estava sendo torturado com espetos de ferro aquecidos no fogo, envenenado com fungos, de olhos vendados e boca costurada. O misterioso assassino fazia sua terceira vítima. Em dado momento, o elfo apagou, desmaiando. O assassino decidiu retirar a linha de costura de sua boca, brutalmente.

– Sabe por que isso está te acontecendo…? – Ele perguntou, quando o elfo acordava assustado, quase sem fôlego de tanto gritar, mesmo de boca fechada.

– Você é um louco! Um sádico maldito! Vão pegar você e te pôr num buraco fundo, acorrentado pra semp- – Foi interrompido por um estrondoso tapa.

– Você é uma criatura imunda, uma porcaria de um demônio pagão… Uma aberração aos olhos do Senhor…

– Um fundamentalista religioso… Eu ouvi boatos de que você era um humano imundo, e quando isso vier a público, você e toda a sua raça vão ser pun- – Outro tapa, seguido de um soco.

– Não se atreva a blasfemar! Fomos feitos à forma do Senhor! E você, é uma aberração. Isso é só o começo…

            Ele caminhou, lentamente, até uma bancada. A casa, toda revirada, com sangue e pedaços de corpos espalhados por todo lado, revelavam um massacre. A família de Lars Dragunov, diplomata internacional dos interesses de raças dissidentes, foi brutalmente assassinada. Pelo menos, teve a misericórdia de morrer rapidamente e com pouca dor. Mas não Lars: ele sofrera, recusou a todo custo entregar as senhas de seus computadores, não iria revelar os planos políticos de seu povo e seus aliados. Mas o assassino tinha muitos métodos de conseguir informações, e, não importava o quanto o elfo fosse capaz de esconder: ele saberia como descobrir o que queria.

            Retornando da bancada, ele trazia uma enorme faca de aço de osso, vermelha e amarelada de tão quente que estava, e começou a fazer longos cortes na carne do elfo: braços, pernas, peito. Ele gritava, mas já estava sem forças, e seus gritos se reduziram a um choro desesperançado. E mal teve tempo de implorar por misericórdia: o assassino cravou a faca, ainda quente, no peito do elfo, lentamente, deixando-a ali. Aos poucos, a cor da pele dele se desfez, num cinza escuro e apagado. Seus olhos perderam a cor verde e brilhante, tornado-se cinzentos também. Seu cabelo ficou seco como palha, quebradiço. Assim morreu um dos maiores diplomatas da civilização, que ajudara a trazer a paz entre humanos, não humanos, e outros monstros ainda não registrados.

            Seu corpo só seria encontrado no dia seguinte, pois ele tinha um compromisso importante na câmara da prefeitura, às sete horas da manhã.

            Pedro concentrava-se no longo discurso do professor Logan Manto Cinzento. Um lobisomem de sessenta anos de idade, alto e ainda musculoso. Fazia uma narrativa de todas as nações que deram, de certa forma, origem aos lobisomens. O rei grego Licaão, que fizera sacrifícios humanos aos deuses do Olimpo, e fora “punido” ou “abençoado” com a forma lupina. Depois ouve o antigo Gran Duque Victor Kruschev II, que guerreou contra a opressão austro-húngara, usando um exército inteiro de lobisomens. A ideia era: por que a maioria das pessoas considera a licantropia uma maldição? Medo? Inveja? Incerteza? O desconhecido? E prosseguia com seu debate, ouvindo perguntas, e fazendo perguntas.

            Ao toque do sinal, todos foram dispensados, e Pedro andou tranquilamente até o refeitório. Pretendia se entupir de comida gordurosa o suficiente para fazê-lo zonzo. Encontrou com Samuel no corredor, e foram até lá conversando. Uma vez lá, esperaram na fila. Samuel pediu três sanduíches da carne do dia: carneiro com molho.

– E o que o meu garoto favorito vai querer hoje? – Disse a enorme e rechonchuda mulher loba, com um largo sorriso no rosto.

– Dez sanduíches de carneiro, e vê se capricha nesse molho que eu tô louco por tempero.

– Pode deixar – Ela se foi atrás do balcão, e logo voltou com um enorme prato – Não sei se ficou sabendo, mas o teu namorado, Alexander, foi expulso da escola, e preso pela polícia. Crime de traição.

– Já era hora, eu não aguentava aquele relacionamento abusivo – Brincou Pedro.

– Imagino, aquele moleque era realmente um pé no saco. “Eu só como comida sem glúten, nada de carne exagerada, tem alguma coisa de soja?”, um pirralho afeminado de merda. Não suporto essa onda de veganismo poluindo os licantropos.

– Nem me fale, me dá até nojo pensar. E aqueles latinos bundões?

– Ah, eles estão de detenção até o meio do ano, provavelmente vão abandonar a escola.

– Todos têm o direito de sonhar. A gente se vê mais tarde, Abigail.

            Ela acenou, enquanto ele ia até a mesa. Então, Alexander fora expulso da escola. Isso era uma ótima notícia, e a possibilidade de os outros três acabarem largando tudo era ainda melhor. Isso ficaria permanentemente nas fichas deles, jamais encontrariam trabalho. “Eles bem que merecem, bando de vira-latas sarnentos…”, pensou Pedro. Na mesa, seus colegas estavam concentrados num pequeno debate, acenaram com a cabeça, e deram espaço para que ele pudesse sentar. Ao que parecia, o debate era sobre história: a professora Rose De Lacroix havia narrado os feitos de uma guerra anterior a primeira guerra mundial, um evento que aconteceu entre elfos e trolls, nas florestas, tão obscuro que poucos historiadores entre os não humanos tiveram a oportunidade de registrar, mas novos detalhes estavam sendo desencavados.

            Pedro ouviu com atenção a coisa toda, fazendo algumas perguntas ocasionais, por curiosidade. Ele gostava de guerras, e, além disso, a raça dos trolls ainda era uma dissidente. Ao que ele sabia, havia meses que estavam próximos de resultados para o registro deles, e o diplomata Lars Dragunov estava tendo grandes progressos com os líderes dos trolls.

            Ao fim da conversa, ele contou aos amigos a novidade: Alexander fora expulso da escola, com o bônus de ser preso.

– Ai… – Lincoln comentou – Não bastasse o fato de ser… O que vocês, lobisomens, chamam de impuro, mas ameaçar outro com uma faca de prata… É, ele arruinou a família inteira dele.

– Acho justo, é quase a mesma coisa que um orc trapacear nos combates rituais, usando magia – Comentou Capivara – Já aconteceu, é claro, e a punição foi o exílio. Uma desonra enorme.

– Desonra pra tu! Desonra pra tua vó! Desonra pra tua vaca! Mais ou menos assim? – perguntou Samuel.

– Exatamente – Confirmou o orc, e eles riram da piada usada nos filmes infantis.

– Mas e os outros três? Vão conseguir trabalho em fast food ou sei lá? – Perguntou Andrey.

– Nem – Respondeu o lobisomem – Eles estão em detenção, até o meio do ano.

– E isso é bom?

– Afirmativo. Eles podem viver aqui, no dormitório deles, mas não podem estudar aqui, comer aqui, nem mesmo fazer trabalhos internos. Só podem arrumar trabalho lá fora, comer lá fora, na cidade, enfim, é como se fosse um exílio, mas é tipo um castigo pra crianças mal criadas.

– Acho que vai ser bem difícil de ver as caras deles pelos corredores – Comentou Igor – Se há a chance de eles saírem daqui, é provável que até fujam do país.

– E pra onde iriam? – Pedro perguntou, animado – Eles vão ser perseguidos pela vergonha, se aliaram a um criminoso, e a ficha deles vai ficar marcada pra sempre. O máximo que vão poder fazer vai ser ficarem transformados na forma lupina permanentemente, e aos poucos vão assumir a forma verdadeira: cães sarnentos de rua, sem importância, e vão morrer, minguados e esfarrapados.

– Caramba, que carinhoso da sua parte – Igor respondeu, rindo.

– Eu sou um cara carinhoso, não sabia? – Respondeu Pedro, rindo também.

            Alguns instantes depois, as quatro garotas procuravam uma mesa para sentarem. E Pedro, vendo elas, acenou e chamou-as para sentarem-se ali. Na teoria, pela regra dos territórios, agora elas faziam parte “daquele bando”. Se um lobisomem permitia que você sentasse na mesa dele, junto com sua turma, era considerado um gesto cortês na escola. Os rapazes arrumaram lugares para elas, e logo, os onze estavam conversando sobre as matérias do primeiro dia, as aulas que tiveram até ali, e as aulas que teriam até as cinco horas e quarenta da tarde.

            Pedro e Ana estavam um pouco avulsos, conversando entre si as mesmas coisas, mas numa concentração só deles. Isso, com certeza, era notado por Vivi, Judy e Lincoln. Eles apenas sorriam quando lançavam olhares rápidos para os dois, e voltavam sua atenção para a comida e as conversas. Quando o horário de almoço terminou, todos dirigiam-se para suas aulas, e Pedro andava perto de Ana, ainda conversando.

– Que aula você vai ter agora?

– Biologia, e você?

– Bom, vamos juntos pra sala então – Respondeu ele.

– Ah, deixa eu perguntar: quem é a professora de informática? É a minha próxima aula depois de biologia… Disseram que ela era muito agressiva…

– Ah, é a Pequena Jenny, ela é gente boa.

– “Pequena Jenny”? Ela é o que? Uma orc? Uma giganta?

– Uma gnomo.

– Tá falando sério?

– Tô.

            Ela riu disso, mas ficou apreensiva: se uma professora com menos de sessenta centímetros de altura tinha a fama de ser agressiva, isso era mau sinal. Quando entraram na sala, depararam-se com um elfo alto, de cabelo vermelho como ferrugem e olhos azuis como um céu de inverno. Seu nome era Eric Magnarsson, e estava segurando alguns pássaros nas mãos. Soltou-os assim que os dois amigos sentaram-se e começou sua aula. Ele explicava sobre anatomia, e em dado momento, Ana resolveu tirar uma pequena dúvida.

– Professor? Tenho uma pergunta…

– Pois bem, jovenzinha…?

– Ana, Ana Maria.

– Sim, a aluna nova… Ouvi bem a seu respeito.

– Obrigada. Então, eu queria saber, qual a diferença de uma lâmia pra uma medusa?

– Uma pergunta curiosa, em que aspecto quer saber a diferença?

– A forma geral, tudo, eu acho.

– Entendo. Acho que vou permitir que outro aluno responda, e assim, podem vocês dois partilhar a nota inicial da matéria.

– Eu respondo, prof – Pedro disse, do fundo da sala – Uma górgona, que é a nomenclatura, é descendente de Medusa e suas duas irmãs, as górgonas originais. Na história, Medusa fora transformada em monstro por Atena, deusa da sabedoria e estratégia em batalha, porque ela tava lá se atracando com Poseidon no templo dela – Todos na sala riram – Como eu dizia… A maldição dela foi ter os cabelos transformados em serpentes, garras afiadas, e algumas versões dizem que ela tinha uma longa cauda com um chocalho de cascavel na ponta. Seu maior poder era poder transformar em pedra quem olhasse diretamente em seus olhos. As górgonas partilham essas características em comum com sua mãe original, cabelo de serpente, escamas, garras, uma língua de réptil, além da possível chance de transformar as pernas numa longa cauda de cobra. Agora, a visão de pedra é um poder que elas escolhem quando usar ou não, tá relacionado com magia.

– Muito bem, rapaz – Elogiou o professor – E as lâmias…?

– Elas são metade mulher, metade serpente, raros são os machos da espécie e por isso precisam procriar com os homens naga, que são, basicamente, cobras macho enormes com a parte superior do corpo de um homem musculoso e escamoso, reptiliano. A lâmia já nasce, da cintura para baixo, com uma longa cauda de cobra, variando entre as espécies. Algumas têm orelhas pontas e longas, escamosas, contam com garras e presas afiadas, além de poder secretar veneno das presas.

– Ótimo, e o que mais? – Questionou o professor elfo.

– Podem botar ovos, o que é bem nojento, asseguro a todos vocês – Novamente a sala inteira riu – Além de poderem distender a boca numa forma pavorosa como as cobras fazem ao comer ovos. Algumas conseguem aprender a habilidade de substituir a cauda por pernas por um período, podendo voltar à cauda de serpente quando necessário, mas só acima dos 25 anos.

– Muito bem rapaz, 15 pontos para você e para Ana, que levantou a questão – Concluiu o professor, e Ana olhou agradecida para o jovem lobisomem.

– A tarefa de vocês, meninos e meninas, vai ser pesquisar o motivo de as lâmias só serem capazes de aprender a habilidade de metamorfose parcial da parte inferior só a partir dos 25 anos – E tocou o sinal – Estão dispensados, vejo vocês outra hora.

            Pedro e Ana saíram juntos, conversando sobre a pergunta. O jovem lobisomem afirmou que pesquisaria sobre a pergunta do professor, e despediu-se de Ana, que entrava na sala de informática. Lá, de pé num banco realmente alto, estava parada e atenta, uma mulher miúda (não mais do que vinte e cinco centímetros de altura, ao todo) e rechonchuda, de um cabelo rosa pink que não podia ser natural. Ela tinha grandes olhos cor de violeta, e um sorriso atrevido no rosto. “Então é essa a tal Jenny…”, Ana pensou, e cumprimentou a professora.

            A matéria do nível de Ana era avançada, então começaram com edição de imagens usando um programa que a própria professora desenvolvera nos minutos que tivera de folga. Julgando que era impossível alguém fazer isso em tão pouco tempo, Ana olhou, cética, para a complexidade do programa. Ela nunca havia lidado com gnomos antes, e a habilidade com máquinas e tecnologia da raça era desconhecida para a garota raposa. E, em poucos minutos, já estava com dores de cabeça e pedia a ajuda da professora, que era prestativa e educada. Mas, com alunos desleixados, ela era realmente cruel, acionando botões nas cadeiras que davam choques nos alunos, para “discipliná-los”, dizia a mulher de sessenta centímetros de altura.

            Em outra sala, na oficina subterrânea dos anões, o professor Daeron Coração de Ferro, ensinava aos alunos, dentre os quais estavam Heitor, Andrey, Igor e Pedro, como montar e desmontar um enorme motor de escavadeira. A fala do professor era arcaica, como se ele ainda vivesse nos tempos medievais. Mas era paciente e ajudava quem demonstrava interesse na matéria.

            O dia foi passando, pouco a pouco, as aulas foram terminando, até o horário das cinco e meia, onde os alunos tinham o horário do lanche, e poderiam ir ao refeitório novamente. Os onze, os sete rapazes e as quatro garotas, agora estavam juntos novamente e comiam calmamente, vez ou outra conversando, até o sinal das cinco e quarenta bater, liberando-os para voltarem aos dormitórios. Lincoln foi correndo, pois agora estava livre para poder ir até sua confeitaria na cidade trabalhar um pouco, e dormir menos ainda (os elfos podem recarregar suas forças se ficarem expostos ao sol por um tempo, ou dormir debaixo do sol da manhã). Os outros foram andando pelos corredores lotados, e despediram-se para voltar aos seus dormitórios.

            Pedro e Ana se despediram, sorrindo, e cada um foi para um lado. O primeiro dia de aula se mostrara promissor, e agora, as coisas poderiam andar normalmente. Ou era assim que se imaginava, até o dia seguinte.

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