Capítulo 5

                                                        Capítulo 5

              Ele será meu, ele gostando ou não, ela gostando ou não

            O resto do fim de semana passou, sem grandes emoções para ninguém. O domingo, como era de se esperar, foi tedioso, lento, como costuma ser toda vez. Ana e suas colegas de quarto ficaram passeando pela Academia, e elas ficaram na biblioteca adiantando algumas das matérias que teriam início na terça-feira. Ana tinha uma habilidade incomum para aprendizado: memorizava muito bem matérias que, aos olhos das amigas, pareciam absurdos escritos em uma linguagem alienígena. Mas, sobretudo, ela gostava das matérias de línguas, história e literatura. Quando questionada sobre isso, ela apenas comentou que gostava de escrever, e ter conhecimento sobre tudo era necessário.

            A essa resposta, as garotas deram sorrisos de cumplicidade, o que forçou Ana a perguntar:

– Tá, o que é que vocês sabem que eu não sei?

– Ah, nada de mais… – Respondeu Judy, inocente – Mas, é que tem alguém na escola que também pensa assim.

– O que você quer… Ah, ele… Bom, ele é um cara inteligente, de fato. Faz sentido pensar assim.

– Mas você nem imagina, garota – Comentou Vivi – Ele é famoso por ficar lendo por horas a fio quando quer saber algo, já conseguiu fazer bombas usando batatas, fios de cobre, produtos químicos e uma lâmpada fluorescente.

– Tá brincando, né? – Ana questionou, cética.

– Nem, ele já teve notas extraordinárias em matérias como química, educação física, economia doméstica, entre outras assim – Respondeu Elise – Mas ele gosta bem mais é de artes.

– Ah, o desenhista da escola… – Judy suspirou – Quem dera ele me desenhasse como uma de suas garotas francesas… – Ao que foi respondido por dois tapas na nuca.

– Já avisamos pra você parar com essas idéias, sua ovelha maluca – Ralhou Vivi – Ainda mais agora, que o lobisomem número um da escola está apaixonado pela Ana… – Arregalou os olhos e sussurrou – …E lá vem ele agora…

            As outras olharam, e lá estava Pedro, com Igor, Heitor e Capivara, empilhando vários livros num carrinho com rodas. As matérias dos livros, elas não podiam dizer com certeza, mas pela seção em que se encontravam, poderiam ser “variedades”, conhecimentos aleatórios que podiam surpreender quem os lesse.

            Elas permaneceram olhando enquanto Igor citava uma lista, Capivara puxava o carrinho, e Pedro dava saltos e observava quais eram os nomes dos livros. Quando pulava alto, quase tocando o teto, e achava o livro que queria, agarrava-o e deixava-se cair ao solo com uma leveza quase improvável para um rapaz de 1,70 m de altura que, por ser um lobisomem, era bem mais pesado do que aparentava. E logo ele notou as garotas olhando, lançou um sorriso amistoso e, com um menear de cabeça, cumprimentou-as. Mas manteve-se olhando pro algum tempo para Ana, e ela devolveu o sorriso.

– Eu falei que ele tá apaixonado… – Vivi sussurrou, tentando impedir que o lobisomem ouvisse.

– Você é sortuda, garota… – Elise congratulou a novata, que se sentia tímida perante a afirmação.

            A noite de ambos os grupos passou totalmente tranqüila, os rapazes lendo, num estilo que chamavam de “mesa redonda”: dois deles escolhiam um livro de certa matéria, liam em voz alta os interesses de um outro, e todo o grupo tinha o dever de debater as informações contidas na passagem. Assim, fazendo anotações nos cadernos, eles continuavam a estudar cada tipo de informação, desde as mais importantes como matemática (os melhores do grupo eram Igor e Lincoln, o pior era Pedro), até mesmo coisas absurdas como o comportamento dos texugos (Pedro adorava informações relativamente inúteis que poderiam ser usadas em qualquer momento inoportuno).

            Já as garotas ficaram estudando as matérias que, segundo o programa de aulas, teriam início na semana de abertura. Elas escolheram suas aulas baseadas em seus gostos, obviamente seguindo o comportamento acadêmico. Elise e Ana teriam, juntas, as aulas de literatura e história, enquanto que Ana teria aulas de química e línguas com Vivi, e de artes com Judy. Assim, as quatro poderiam permanecer mantendo contato durante as aulas. Ficaram estudando por horas, e tiveram algumas dicas de Ana, e ela também recebeu algumas idéias. Mas a maioria eram idéias sobre recriar seu uniforme, e elas o fariam na segunda-feira.

            Quando amanheceu, Vivi já tinha saído: durante os cinco dias úteis, ela tinha o costume de acordar muito cedo para se exercitar, voltar ao dormitório, tomar uma ducha e se arrumar para as aulas. Enquanto ela estava fora, Elise e Judy buscavam em seus baús de pertences coisas que poderiam ajudar Ana em seu uniforme. Ela tinha usado, no dia de apresentação, o modelo padrão e simples: uma camisa branca de botões, uma gravatinha feminina, um blazer feminino, sapatos pretos lustrosos com meias brancas e uma saia preta com pregas. Se ela queria marcar presença, ser distinta dentre todos os outros, tinha de mostrar sua personalidade aos outros, demarcar seu território (o que era praticamente de lei numa escola repleta de lobisomens). E em poucos minutos, já tinham costurado uma camiseta larga, de cores rosa e preto, que ficou folgada em Ana. Mas ela adorou: gostava de roupas folgadas, largas, era raro usar alguma coisa que fosse muito “formal”.

            Em seguida, customizaram um jeans azul-escuro desbotado na parte da frente, com desenhos de fogo abaixo do joelho que, formando linhas, faziam os contornos de raposas. O blazer preto teve as mangas cortadas, costuradas, nas costas bordaram uma raposa vermelha e branca, num círculo, e ela “mordia a própria cauda”. Depois disso, não difícil arrumar sapatos: Ana tinha vários tênis, cano alto, baixo, algumas botinas de caminhada, não seria problema algum combinar suas roupas com sapatos. E quando a conta em seu nome na escola tivesse sido ativada, ela compraria mais algumas coisas para si mesma durante o ano letivo.

            Quando Vivi retornou, Ana decidiu dar uma volta, para se acostumar com os locais das salas em que ela estudaria. Levando uma folha avulsa do caderno e uma caneta, anotou as salas, seus números, e ficou passeando pelos corredores, vendo, vez ou outra, os outros novatos, já enturmados, aqui e ali, conversando com colegas de quarto, fazendo amizades. Ela gostou ver isso, ao menos assim, eles também não ficariam sozinhos. Alguns a cumprimentavam, educadamente, e ela acenava com a cabeça. Ela cada vez mais sentia-se como parte do lugar, mesmo que houvesse chegado apenas há poucos dias. Havia uma ordem nessa escola, os lobisomens eram os dominantes, os predadores máximos, não só na escola, mas também na cidade: Howlingtown era, na grande maioria da população, de lobisomens (se o próprio nome não fosse óbvio de se adivinhar tal falto, “howling” significa “uivando”, um hábito dos lobos e lobisomens). Mas, apesar disso, por terem em seu sangue a herança dos canídeos, eles podiam se socializar com facilidade. Mas não permitiriam que fossem detronados em seus campos de caça, seus territórios: ali, eles eram reis, chefes, e eram amigáveis enquanto não fossem confrontados por motivos fúteis ou superficiais.

            Ana observava os comportamentos de todos os alunos com atenção: estavam calmos, relaxados, brincavam uns com os outros, variando suas idades entre os 17 e acima de 20. A paz que havia entre eles era quase surreal, especialmente em se tratando de monstros. Mas mesmo assim, alguns ainda tinham, em seus olhos, aquele estranho fogo de competição. Especialmente nos lobisomens, ela percebia que muitos estavam cortejando garotas. Óbvio que fariam isso, e a maioria deles fazia os cortejos com garotas de sua espécie. Mas as garotas lobas mantinham-se sempre exigentes, e não era para menos: ao que Ana sabia, era considerado uma desonra enorme para os lobisomens gerar filhos que não poderiam sustentar, proteger, cuidar. E, se a garota loba se esquivava das cantadas de um lobisomem, era porque sabia alguma coisa que a desagradava muito dentro desses critérios.

            Após caminhar bastante, ela parou numa máquina de bebidas e, usando umas moedas, escolheu um refrigerante de uva. Mas teve pouco tempo para aproveitar sua bebida, pois ao longe, no corredor, ela ouviu um colear característico de serpentes, e logo ouvia as vozes: exaltadas, agressivas. Uma delas era, com certeza, de Manuella. As outras deviam ser de seus amigos, ou colegas de quarto. Não que isso importasse, Ana não tinha interesse algum em querer saber mais da vida dela. Agora ela só pensava em se esconder.

            Como as vozes vinham do lado esquerdo do corredor, ela procurou um refúgio à direita. O melhor esconderijo que conseguiu encontrar, entretanto, foi a porta do zelador, que ficava, infelizmente, muito perto da máquina de bebidas. “Seja o que os divinos quiserem!”, ela pensou, ao destrancar a porta usando um grampo de cabelo e se enfiando lá o mais rápida e silenciosamente que podia, mas pensou, irritada “eu nem tenho medo dessa vagabunda! Eu deveria é apenas ir pra qualquer outro lugar”. Mas antes que pudesse sair e correr em outra direção, já podia ouvir a conversa com clareza, próxima demais no corredor:

– Mas garota, tem tantos caras na escola, por que você não desisssste daquele mané? – Disse uma voz, melada como um doce extremamente açucarado.

– Calada, Renata! – Respondeu Manuella, ríspida – Você não entende? Todos os caras dessa essssscola morreriam pra ficar uns minutinhos que fossem por mim, mas, porra! Por que aquele idiota se recusa?

– Vai ver a culpa foi ssssssua… – Respondeu outra.

– Se disser isso de novo, Patrícia, eu arranco sua língua – Ralhou a “líder” do grupo.

– Quero ver tentar.

– Parem vocês duas – Interrompeu Renata – Não entendo como você foi se apaixonar por ele. Sabe o que penssssssam sobre relações de espécies diferentes.

– Quem liga? Eu é que não! – Manuella retrucou – Vocês bem sabem que as pessoas ignoram isso, os casos que realmente incomodam é com humanossssssss.

– Nisso você tem razão – Comentou Patrícia – Mas, poxa, você é uma lâmia de escamas negras, é raríssima entre nossa espécie, por que perder seu tempo com um cão sarnento?

– Ele não é nenhum cão sarnento… Nunca se esqueça disso – Manuella estava realmente irritada – Ele é um puro sangue, filho de um herói militar, de uma das maiores tribos de lobisomens, os Filhos de Fenrir. Ele é o único cara que se recusou a ficar comigo, eu quero ele mais do que qualquer coisa!

            Ana ouvia tudo com um misto de nojo e humor. “Caramba, essa mal amada tá louquinha pelo Pedro! Uma pena que ele odeie ela… Ou será que não?”, ela pensou, entretida na idéia de uma briga de “lobo e cobra”. Agachada em seu esconderijo, ela podia ver a luz de fora do corredor pelo quadrado de vidro fosco da porta. Agora, elas estavam ao lado da máquina de bebidas, e mantinham a conversa. Com um susto, Ana percebeu que ela era agora o alvo da conversa.

– E o que você pretende fazer a ressssspeito da novata? – Patrícia perguntou.

– Quem? Aquela ridícula da Ana? – Manuella respondeu com outra pergunta, distraída, enquanto esperava a lata de energético descer – Se ela continuar arrasssstando asa pra ele, vou engolir ela inteira.

– Você conhece as regras, nosso povo é proibido de devorar outras raças que não sejam criminososssss – lembrou Renata – Não se lembra da quantidade de problemas que os parlamentares enfrentaram pra poder legalizar isso? Ainda temos uma reputação bem ruim com os outrosssss.

– Não me interessa, que droga! Vocês duas não entendem? Não me importo com casaizinhos da escola, eu já provei de todos os caras, os novatos, os veteranos, até mesmo alguns professores. Mais de uma vez, é claro. Agora eu dei os restos para as outras, elas que se divirtam. Mas Pedro é meu, ele querendo ou não. Uma hora ou outra, ele vai ceder, e eu vou ficar por diassss e diasssss com ele…

– O mais provável é que ele passe diassss e diasssss te dando socos – Comentou Patrícia – Ele é bem pavio curto, e não hesita em bater noutros caras, sejam eles maiores ou em maior número. O que te faz pensar que ele não te daria um tapa ou coisa pior?

– Haha! Ele nunca bateria numa garota, ele é um cavalheiro, um galante e elegante lobisomem de respeito – Manuella suspirou, exagerada, e suas colegas riram.

            Elas passaram pela abertura de vidro, e Ana viu a silhueta delas na porta, indo para a direita, e agora estavam conversando sobre outros assuntos que não tinham mais relação alguma com os temas principais. Ana esperou quase vinte minutos antes de sair da sala do zelador, com sua lata de refrigerante pingando na mão, de tão quente que seu corpo estava. Aquela lâmia era louca, obcecada, sem noção, na melhor das hipóteses. Mas a vulpe não poderia tolerar que ela fosse agressiva só por causa de um garoto.

            Enquanto corria pelo corredor, nem se deu conta de que estava passando pelo refeitório, até que trombou com Pedro, que tinha nas mãos um sanduíche dos grandes: seu conteúdo era uma massa disforme amarela, marrom e vermelha.

– Ei, calma lá, onde é o fogo? – Ele perguntou, preocupado.

– Fogo? Não, não… Eu só estava com pressa pra voltar pro dormitório – Ana respondeu, tentando esquivar de qualquer pergunta.

– Sei… Alguma coisa te deixou aflita. Vai, me conta: o que aconteceu?

– Olha… Eu não sei se é uma boa idéia…

– Minha vida é feita de péssimas idéias. Algo te deixou nesse estado, parece que você estava fugindo. Então, por favor, me conta. Se eu puder ajudar, dou um jeito.

– Bom, não sei como você pode ajudar – Ana disse, desamparada – Mas, eu tava lá numa das máquinas de bebidas, e ouvi vozes, e reconheci aquela víbora maldita da Manuella.

– Oh, oh, vai com calma. Vem, senta comigo aqui, eu tava comendo um sanduba de carne com ovo mexido, então pode me contar com calma.

            Ana aceitou, e contou tudo o que ouvira para o lobisomem. Ele ouvia com atenção, olhava para ela com grande concentração, embora parecesse bem distraído graças ao sanduíche de carne com ovo mexido (que era quase tão grande quanto seu antebraço). Ao final, ele já tinha terminado de comer, limpava a gordura da boca com um guardanapo e suspirou.

– Essa garota é um saco, vou te contar… – ele disse, irritado.

– Me diga algo que eu não saiba. Cheguei aqui há poucos dias, e já passei por mais emoções que um filme de ação de baixo orçamento.

– Sinto muito, de verdade, que ela esteja implicando contigo. Mas eu falei sério sobre ajudar, e falei sério sobre dar cabo dela se ela me amolar. Vou te contar o motivo de ela ser tão insistente, é melhor que entenda o motivo pra isso.

            Assim, ele contou para Ana sua desventura amorosa com a lâmia. Quando ela chegou à Academia, três anos atrás, ele se deslumbrou por ela. Logo estavam amigos, conversando, mas ele não via o que ela fazia com outros rapazes: enquanto ela era meiga e doce com ele, era erótica e solta com os outros. Ela se divertia com vários rapazes, e ele foi se cansando, tentando dar crédito a ela, confiando, mas foi se irritando. Quando o outro Pedro, apelidado de Capivara, chegou à escola, ele resolveu ajudar o inocente lobisomem. Armou um esquema para que ela ficasse mais “à vontade” com o orc, e depois ele expôs a coisa toda pro lobisomem. Vendo que não havia outra solução, a lâmia recorreu á infame e herege religião Wicca, que era, no geral, um aglomerado de sincretismos absurdos com rituais elaborados pelo humano delirante Aleister Crowley. Falhou miseravelmente num feitiço de amarração, num feitiço de amor, e ainda num feitiço de atração sexual. Pedro era imune a esse tipo de coisa, e sabia quando alguém fazia isso a distância. E Pedro, por sua vez, quando tomou consciência dos feitiços, ardendo no mais puro ódio, conseguiu uma brecha no jornal da escola, escrevendo uma crônica para lá de reveladora, e isso fez com que Manuella ganhasse a reputação de “vadia, fácil, meretriz”, entre outros nomes nada carinhosos. Ela, por sua vez, aceitava numa boa, transava com quem tivesse tripas para agüentar seu lado réptil, mas isso culminou num desejo psicológico de ter Pedro: ele rejeitava-a com tamanha força que, quanto mais ele se afastava, mais ela o perseguia. E, como os alunos só poderiam ser expulsos caso ameaçassem a vida e saúde dos outros alunos, “assédio sexual” era tratado de forma rígida, mas como era raro, os alunos tratavam disso como sabiam.

            Ao final do relato, Ana olhava para ele admirada. Ele parecia ser bem sincero, admitia que dera trela para ela, que ele tinha errado em “não ter dado um pé nela” quando pôde. Era meio desconcertante que um lobisomem recusasse sexo, fosse com uma garota loba, fosse com uma fêmea de outra raça. Até onde ela sabia, eles eram bem liberais nessa questão. Mas ali estava um que se recusava a todo custo.

– Bem, essa é a história, resumida até demais – Disse o lobisomem – E já que ela quer tentar te agredir, ou coisa do tipo, o que duvido que ela faria porque não é tão burra a ponto de arriscar ser expulsa, eu vou ficar perto de você o máximo que puder.

– Ah, pára, vai… Eu não tenho medo dela, se ela tentar me bater ou me ameaçar, eu dou um jeito de me livrar – Respondeu a vulpe – Não é como se fosse sua obrigação nem nada, ok? Eu sei me virar.

– Não duvido disso, Ana. O problema é que, uma vez que ela me enche o saco, e ela enche o seu saco só porque eu gosto de você, significa que, indiretamente, a culpa é minha. Eu devia ter arrancado aquele couro de cobra quando tive a chance…

– Bom… Obrigada, de coração, por querer me proteger e tal. Gostei de você quando me mostrou a escola. Dentre todos aqui, você foi o mais amigável do sexo masculino.

– O que? Vai dizer que houve algum mané te dando cantada? – Pedro riu.

– Não, ainda não. Não duvido que vai acabar acontecendo. Mas, sinceramente, não tô procurando namoro nem nada, a maioria dos caras que conheci era tão…

– Repulsivo? Imaturo? Mal educado? Grosso? Vulgar? – Pedro sugeriu.

– Isso tudo, e mais um pouco – Ela riu, divertida com os comentários.

– Bem, se serve de consolo, não sou um traste como meus camaradas de espécie. Sou um em milhão – Gabou-se – Não é à toa que eu ganhei por quatro anos seguidos o título de “Mister Simpatia” na escola.

            Ambos riram, e voltaram para seus dormitórios, preparando-se para o dia seguinte, o primeiro dia de aula. Ana estava se sentido segura de que Pedro fosse cumprir sua palavra. Era raro ela sentir algo assim, mas ele transmitia uma confiança quase sobrenatural. Quando dormia, ela teve novamente o sonho das serpentes e do lobo: agora, elas se fundiam e tornavam-se uma única e enorme víbora negra, confrontada por um lobo gigante que dava dentadas profundas e sangrentas.

            De tão desligada e cansada que estava, Ana perdera a festa de boas-vindas da escola. Nem se preocupara com isso, suas colegas de quarto ficaram amolando-a por horas a fio, enquanto elas andavam pelos corredores. Quando Ana perguntou se Pedro estava por lá, elas negaram.

– Ele odeia festas, pelo menos é o que se diz – Disse Judy.

– Eu soube que ele só odeia aglomerações de pessoas, algo a ver com lugares fechados – Vivi acrescentou.

– Ah, normal, eu também não sou muito fã de festas – Defendeu-se Ana – Eu até teria ido, se não estivesse mais preocupada em: ter boas notas no começo das aulas e evitar aquela babaca da Manuella.

– Nem esquenta com isso, garota – Elise disse, decidida – Ela não vai passar por cima de nós pra pegar você.

– É mais provável que não passe por cima do lobisomem… – Judy comentou, inocente, e elas riram da sugestão.

            A primeira aula do dia seria de biologia, e Ana estaria sozinha na classe. O professor era um elfo, alto, de cabelo longo e de um negro profundo, como uma noite de outono. Sua pele era clara, e seus olhos eram brancos: a íris mal se via. Eric Magnarsson, era seu nome, e contava com quase 3.600 anos de idade. “Alguém com essa idade, com certeza, sabe de tudo sobre biologia”, Ana pensou.

            Alguns minutos durante a aula, ela percebeu que junto na classe estavam Samuel e Capivara. Eles repararam na presença dela, acenaram, e ela acenou de volta. A aula prosseguiu com temas a respeito de medicina, o uso de insetos na produção de remédios para diferentes organismos, até que tocou o sinal.

            Em outra sala, Pedro, Lincoln e Igor estavam sendo metralhados com centenas de perguntas a respeito de cálculo. Alissa Clockwork, a professa de matemática geral, era uma velha coruja de 60 anos, que nunca perdia o ânimo com relação a números. Todos sabiam que o povo coruja era dotado de uma inteligência e memória incomuns, e cada um de seu povo podia memorizar com precisão detalhes que, aos olhos menos treinados, passariam despercebidos. A especialidade de Alissa era, aos olhos de Pedro, um maldito pesadelo de tortura numérica. Ele se saía bem com algumas contas relativamente longas, mas era um fracasso total em coisas mais complexas do que uma subtração básica.

            Ao toque do sinal, Pedro e Igor se dirigiram para a aula de química, com Julien Leatherhead, o homem-crocodilo. Rolavam boatos na escola de que ele era o único professor de química que permaneceu no cargo sem se queixar de queimaduras pelos produtos químicos que manuseava de forma tão confiante. Na mesma sala, estavam Vivi e Ana. Pedro tratou logo de sentar-se perto dela, e ficaram assim, tendo a aula juntos e conversando quando podiam.

            Novamente, toca o sinal. A próxima aula de Pedro agora era de artes, junto com Heitor e Andrey (o anão tolerava aulas de artes para aprender a desenhar, para poder confeccionar suas canecas de madeira com desenhos em alto-relevo). Ana e Judy encontraram com eles no corredor, e sentaram-se juntos na mesma mesa. A professora, uma elfa de cabelos dourados e bem alta (uma mulher élfica com 1,80 m de altura era incomum), estava tocando calmamente um instrumento de sopro, esperando os alunos sentarem-se às mesas. Quando todos estavam acomodados, ela foi afinando a música até terminar.

– Bom dia, classe. Vejo muitos rostos novos aqui… Chamo-me Astrid Sóldottir, tenho mais de 5.758 anos, de acordo com os registros do tempo. Embora o tempo se pareça como segundos diante dos meus olhos, e a memória seja algo tão profunda quanto um lago.

– Ela realmente viveu pra caramba… – Sussurrou Andrey.

– Eu vou apresentar a vocês muitos e muitos anos de arte, mas, de acordo com os gostos de cada um, faremos votações sobre o que poderá ser apresentado nas aulas.

– Professora, me faça o enorme favor de nunca falar sobre aqueles mequetrefes dos surrealistas? – Disse Pedro, ganhando algumas risadas. A professora sorriu, entretida pelo comentário, e perguntou:

– Por que não gosta deles, senhor…? Você não é estranho, mas são tantos lobisomens que é difícil para mim distinguir entre dois.

– Pedro, Pedro Fenrirsson, professora – Ele respondeu, educadamente.

– Oh, sim, agora me lembro. Um dos favoritos do professor anterior. Li a seu respeito.

– Imagino. Respondendo à sua pergunta: acho uma preguiça descomunal, ficar rabiscando e jogando traços de tinta, grossos ou finos, sem forma definida, ou supostamente com uma forma metafórica, só pra dizer que “só os inteligentes podem interpretar isso”. É coisa de quem não tem estudo sobre a arte, julgar que os outros são obrigados a dar significado ao abstrato que você põe no pincel, porque não tem vocação pra fazer algo mais complexo e organizado. E mesmo assim, são hipócritas, pois eles fazem, inconscientemente, ordem dentro do caos abstrato deles.

– Uma boa resposta, admito. Em todos os meus anos, pelos quais eu vi os humanos e os não humanos, criando arte, evoluindo, ou mesmo regredindo no conceito artístico, já vi coisas que, francamente, me dão calafrios de decepção – disse a professora – Bom, faremos apenas uma análise rápida sobre pintura e arte abstrata, mas faremos a análise pelo ponto de vista negativo. Ninguém mais agüenta ouvir elogios rasgados para Salvador Dali, não é, turma? – Todos na sala riram, e depois a professora anotou coisas no quadro, algumas atividades.

– Eu gostaria que, agora, pegassem seus instrumentos de desenho: seja lápis, caneta, pincel, o que for, e usem uma folha para representar um sentimento dentro de vocês. Podem fazer isso?

            Em poucos minutos, a sala estava silenciosa de vozes, preenchida com os sons de pincéis, canetas, lápis e lapiseiras rabiscando e riscando. Vivi era lenta, meticulosa, e fazia vários movimentos exagerados. Ana era cuidadosa, calma, desenhava alguma coisa que era pequena, mas colorida. Heitor, pro sua vez, fazia um desenho lento e longo, numa folha grande, e Andrey pegava dicas com ele, fazendo vários rabiscos rápidos.

            Pedro estava friamente concentrado. Ele mantinha total atenção ao que estava fazendo, um desenho elaborado, e não permitia que ninguém, nem mesmo a professora o visse antes de estar pronto. Ela ia circulando pelas mesas, dando elogios educados e dicas, analisando com calma os alunos e ouvindo suas explicações. Heitor notara que, enquanto o amigo desenhava, ele dava rápidas olhadas para Ana, coisa de segundos, e logo voltava ao desenho. O que poderia ele estar desenhando, provavelmente teria de esperar para ver.

            Pouco a pouco, os alunos foram até a frente do quadro-negro, e iam descrevendo seus desenhos. Alguns eram tolos e infantis, de alunos que gostavam de fazer piadas, e a professora aceitou numa boa. Mas outros eram bonitos, verdadeiras obras de arte. Heitor foi até o quadro, e mostrou seu enorme desenho de um dos heróis dos quadrinhos que tanto gostava: Conan, o bárbaro, empunhando uma espada e andando sobre uma pilha de caveiras. Segundo ele, o sentimento que predominava nele era o barbarismo heróico dos heróis antigos, fossem eles reais ou não. Andrey foi em seguida, correndo, e exibiu orgulhoso os desenhos de sua enorme folha: montanhas que, vistas de perto, eram amontoados de moedas de ouro, derramando-se num vale, tornando-se um mar liquido e dourado, e enchendo uma caneca de um anão parado à frente da maré.

– Tem coisa mais legal do que um bom hidromel? – Perguntou o anão, conseguindo risadas até da professora.

            Vivi foi até o quadro-negro e mostrou uma cena intrigante: uma árvore, com poucas folhas, e no meio dos galhos, vários pássaros voavam ao redor, e ela balançava com os desenhos de uma ventania. Sua explicação era ainda mais curiosa: o sentimento era de que, apesar de ter tanto barulho ao redor de sua mente, com tantos problemas que ela tinha de resolver, ela mantinha suas raízes bem firmes no solo, não perdia o controle. Poucas pessoas sabiam dos problemas dela, mas, fosse o que fosse, ela lidava com tudo muito bem. Ganhou palmas, puxadas pela professora, e sentou-se na sua cadeira, orgulhosa. Quando foi a vez de Ana, ela explicou, tímida, que o desenho dela era sobre vida: uma borboleta vermelha e azul, com grandes asas coloridas de verde, amarelo, rosa, faziam o molde de um feto de animal: provavelmente uma raposa. A professora novamente aplaudiu o desenho dela, e os alunos também o fizeram, deixando a garota tímida e sorrindo de cabeça baixa.

            Quando foi a vez de Pedro, todos se surpreenderam: a cena era elaborada, um único lobisomem lutando contra centenas de inimigos, carregando um escudo enorme com o emblema de sua tribo num dos braços, no outro trazia uma garota, de cabelos longos, ocultando o rosto.

– Sinto-me lutando contra um bando de inimigos, todos loucos pra tirar um pedaço de mim e de uma jovem donzela… Mas vão ter que ser bem mais do que eu pra terem sucesso. A fúria que queima em mim não vai virar cinzas tão cedo – Os outros alunos urraram vivas e a professora suspirava, impressionada pela qualidade do desenho.

– Posso tirar uma cópia dele, senhor Pedro? Sei que não me daria o original, e eu nem pediria algo assim.

– Seria uma honra, professora – Ele respondeu, entregando o desenho e indo até sua mesa, com um sorriso de triunfo no rosto.

            Seus dois amigos ficaram dando tapas nas suas costas, e Vivi olhava para ele, e para Ana. Com certeza, a garota no desenho só podia ser Ana, mas ele preferiu ocultar seu rosto. “Interessante…”, pensaram ao mesmo tempo Heitor e Vivi. Entretanto, não tiveram mais tempo para pensar, pois o sinal tocou.

– Aula de educação física agora – Heitor anunciou aos outros dois.

– Beleza! Tô louco pra jogar bola queimada! – Disse o anão.

– E vocês duas? – Perguntou Pedro.

– Ah, não decidimos se vamos ter essa aula, mas vamos até lá assistir – Respondeu Vivi, que agarrava o braço de Ana e levava ela pelos corredores, seguindo os rapazes.

            A vulpe, por sua vez, estava assustada pela reação da amiga, e tratou de perguntar o que ela queria com aquilo.

– Você vai ver – Foi tudo o que pôde arrancar da felina.

– Ai, céus… Não é nada assustador ou violento, é?

– Bom, o primeiro dia é sempre de bola queimada, então vai ser bem violento e assustador, sim.

– Ah, que seja… – Ana bufou, resignada.

            E assim, foram seguindo os corredores até chegarem ao ginásio esportivo. Nada poderia prepará-las para o primeiro dia de bola queimada, nem tampouco os rapazes

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