Benito: Marcados
Benito: Marcados
Por: QiShuang
• • •「 Prólogo」• • •

A solidão pode ser a companhia perfeita para um homem de coração amargurado e eu não me importava. A garrafa de Jack Daniels estava pela metade na mão esquerda. Puxei o gargalo e levei até a boca, deixando o líquido amargo escorrer.

A lápide estava na minha frente, fechada, cimentada, contendo roupas sujas, um drone e um maldito rifle que custava uma fortuna.

— Droga, Daniel. — A língua enrolou, mas eu não me importei que estava bêbado e me deitei sobre o túmulo retangular de cimento simples. Era o mais perto que eu conseguia chegar daquelas memórias. — Se você estivesse aqui, seria tão mais fácil.

— Decadência, hein, Benito. — Ouvi uma voz conhecida. — Bêbado, se esfregando numa lápide... Acho que essa história é pior que a das meias vermelhas!

— Liam, me deixe.

— Não, não deixo.

— Volta pro seu noivo, vai!

— Aff! Venha, vamos para casa, caspita. — Senti o puxão no meu braço e quando dei por mim a garrafa tombou.

O líquido verteu forte, escorrendo pelas minhas roupas e lembrei da sensação que tive quando o sangue de Daniel lavou minhas roupas no tiroteio em Nápoles.

— Fica comigo, Dani... eu te amo... — murmurei em prantos.

  • • •「◆」• • •

— Benito, venha rápido, atacaram Matt em Perugia! — Duas horas da manhã e o telefone tocou com vozes desesperadas, fazendo meu coração pular. Que droga.

Levantei da cama deixando Anna adormecida ao meu lado, ela faria perguntas demais se eu a acordasse. Seus cabelos tingidos com luzes estavam esparramados no macio travesseiro e não deixei um beijo de lembrança. A tarefa de sair do cobertor aos 15 º C foi árdua, porém necessária. Marino já estava me esperando no lobby do prédio em que morávamos.

— Foi um tiroteio? — Vesti a jaqueta às pressas enquanto seguia para o estacionamento na direção da SUV blindada. — Matt está vivo?

— Foi algo do tipo — Marino fez mistério, o que foi capaz de acelerar meu coração. O homem careca e de músculos potentes tinha um sorriso pequeno nos lábios finos, ele estava debochando, eu acho. — Matt está em Siena, com o Sr. Venanzio Mazzarello e a garota, que também é um clone...

— Cassidy — lembrei-o do nome. — Supostamente, ela é irmã de Daniel, ou um clone da irmã dele. Ainda é um mistério como essa garota se encaixa.

— De qualquer forma, senhor, ainda é de madrugada.

— Se for ele, Marino, você vai me pagar uma bolada, fique sabendo!

— Vejamos se vai ser dessa vez, já houve inúmeros alarmes falsos antes, meu amigo, e você pagou caro por todos eles.

Resmunguei. Não queria admitir aquelas palavras como verdade.

Segui com o itinerário de sempre: viagem de carro em velocidade absurda, helicóptero e mais um transporte térreo para chegar ao local. A polícia não havia sido acionada. Nem seria. Na Sociedade Giostra tudo ocorre em sigilo, por fora das margens da sociedade comum. Desci do carro fechando o zíper da jaqueta e me aproximei dos dois agentes que já estavam no local. Estava tomando o vento frio da madrugada apenas para investigar como o incidente tinha acontecido.

— Ah, que bom você chegou, Ben! — A voz de minha meia-irmã Bella ressoou por entre os barulhos da movimentação de pessoas. Ela veio sobre os saltos baixos, elegantemente vestida com um sobretudo creme e um lenço cor-de-rosa no pescoço, que lhe dava um ar vintage. Os soldados colhiam provas, fechavam a rua, desviavam os veículos e fingiam que estávamos gravando uma novela ou coisa do tipo.

— Qual o relatório? — perguntei deslizando nervosamente a mão na barba loira.

A rua estava basicamente desértica naquela hora e os soldados tinham feito um bom trabalho. A garoa caía fina, apagando os rastros. Olhei para o apartamento, a janela apagada, e notei as cortinas balançando.

— A janela foi quebrada a tiro, coisa de quem sabe o que faz. — Bella percebeu que eu estava olhando para cima, para as janelas, buscando marcas de invasão.

— Eram blindadas.

— Mas possuem falhas como tudo na vida. Atirando na posição certa, racham. Quem invadiu deve ter escalado pela parede, há poucas marcas na parede. Chegam até o terceiro andar. Aparentemente houve uma batalha.

— Deixe-me adivinhar: tudo o que precisou foi um tiro — constatei.

— Com silenciador. — Bella fez um aceno de cabeça balançando os fios lisos de seus cabelos curtos, abaixo da orelha. — A vizinhança não ouviu nada.

— Projéteis? — quis saber.

— Há estilhaços pelo chão, mas não chegou a entrar. — Meu irmão, Benício, estendeu um saco plástico pequeno e transparente, uma única e solitária cápsula de munição dourada. Ele tem os cabelos raspados, com topete e os olhos azuis. Posso dizer que estava se divertindo com a situação. Concordo com ele, poucos homens são treinados desse jeito e são tão eficientes. — Encontrei do outro lado da rua. Dê uma olhada, Ben, você vai adorar.

Bella e Benício são gêmeos, como meus pais, e a maior e mais importante aquisição nos últimos meses. Nossa relação cresceu bastante, eles se tornaram valiosos aliados na minha vida e me dão um pouco de força nesses momentos difíceis. Bella é uma garota radical, esportista, mas muito tímida, anda sempre com a cabeça baixa e usa roupas discretas. Já Benício é do tipo encrenqueiro e mal-humorado, que prefere se trancar em um quarto escuro cheio de telas de computador que servem ou para jogar videogame ou para hackear sistemas de investigação.

Peguei o saco e encarei aquele projétil. O prédio atacado ficava em uma esquina, em uma praça, fiz questão de não colocar aquele apartamento onde tiros comuns pudessem alcançar, mas aqueles não eram tiros comuns e sim de um assassino malditamente bem treinado.

E pior.

Eu conhecia o estilo.

— A cápsula foi marcada, é isso? — Percebi uma elevação na lateral, não dava para ver se era um X ou dois acentos circunflexos. Demônios!

— Sabe o que isso significa? — Com um quase sorriso no rosto, Benício brincou com as sobrancelhas, deslumbrado. Quem é que se diverte diante do fato concreto de que sua segurança é completamente falha com o tipo de inimigo que estamos lidando? Meu irmão é um insano, claro. — Agentes desse tipo deixam suas marcas para receber a autoria do crime, é um caso encomendado!

— Ou alguém chamando nossa atenção. Fora isso, é uma cena limpa, não é? — Rangi os dentes.

Matadores de aluguel estão muito frequentes atualmente na Giostra, atacando minha família e pessoas próximas a mim, mas essa cápsula era diferente, e o incidente... Era muita coincidência para ignorar.

— Nenhuma digital, nenhum rastro, exceto de que o atirador vasculhou o apartamento, mas não levou nada, fugiu pelo telhado como um gato. — Bella abaixou seu relatório escrito à mão em um bloquinho de notas coloridas, desses de crianças. — Matt está em Siena, não se preocupe. Provavelmente quem atirou não sabia desse detalhe.

— Ou não tinha alvo. — Devolvi o saco para Benício com brusquidão. — Esse tipo de agente é um fantasma, não é avistado, não deixa rastros, simplesmente cumpre sua missão como um vento frio de inverno. Passa pelo local, devasta, vai embora como se nunca tivesse existido. Eu sei disso, conheço o tipo de treinamento.

— E o que isso quer dizer na prática? — Bella perguntou.

— A balística será irrastreável, mas quero saber os tipos de rifles que podem ter sido usados. Foi um único tiro, para abrir a janela e entrar no apartamento. Não foi uma tentativa de assassinato, foi um roubo de informação! Se esse cara quisesse matar Matt, bem, teria feito. Acredite, não é de errar o alvo.

— Caramba, Benito, como você faz isso? É tipo um dom! — Benício ficou estático, como se eu tivesse desvendado o caso inteiro com dois elementos. E eu tinha, a verdade era essa.

— Conheço o modus operandi — admiti com um estalar da língua bem no céu da boca. — Já vi em ação.

— Acha que foi ele? — Bella abriu bem os olhos, um dos poucos momentos em que minha irmã de olhos cor de mel demonstrava emoções. — O Gato Preto? Ou Daniel?

— Shh, Bella — pedi, segurando em seu cotovelo. Com a outra mão cocei a barba. Não contava com isso, não assim. — Mantenha sigilo, sim?

— Foi ele! — deslumbrou-se fazendo cara de surpresa e cobrindo os lábios com uma das mãos.

— Ou alguém se passando por ele — Benício disse.

Resfoleguei. Observei os arredores, procurando entender como ele tinha conseguido chegar até aqui com toda a segurança pesada que eu coloquei ao redor de Matthieu desde o instante em que consegui convencê-lo a vir para a Itália. Escolhi Perugia por ser território de Nero Mascherini. O único ponto que temos em comum é o desejo de compreender mais sobre os clones... Mas cada um com seu motivo.

Poucas semanas antes eu estava na Espanha indo atrás do homem que usava o nome de Matthew Clark, mas, na verdade, eu estava em busca de Daniel Kovaliev, o homem que eu conheci no Navio.

Patinei muito para encontrar essa identidade e paguei caro por essa informação. O homem que eu encontrei com o ex-marido de Daniel foi Matthieu Kadernard, um clone. Sua mente está quebrada, como a de Daniele Di Mallo, outro clone. É, são três. Na verdade, são centenas! Vou poupar vocês dos detalhes.

Além disso, até onde eu sabia, Daniel estava morto. Algo fodidamente errado estava acontecendo.

— Peça para Marino liberar a cena para aquele maldito do Hunter, eu quero que ele saiba — exigi.

— É pra já. — Bella pegou o celular e digitou depressa com as unhas pintadas de cor-de-rosa uma mensagem.

— E que bem isso vai te fazer, Ben? — Benício perguntou franzindo a testa, a animação que ele tinha escorreu. — Acha que Camilo pode rastreá-lo?

— Certamente, se tem alguém que pode rastreá-lo é Hunter. — Tive que admitir a minha limitação. Mas Camilo era um ex-agente da AEES, um supersoldado, e certamente conhecia muito sobre o Projeto Gato Preto e, especialmente, sobre Daniel, já que eles viveram juntos. — Voltem para a agência e descubram mais informações, analisem câmeras, tudo. Apaguem quaisquer indícios, se tiver.

— E você, aonde vai? — Bella perguntou.

— Quero estar na cena quando Camilo souber. — Dei um sorriso sarcástico, uma vitória amarga, por assim dizer. — Quero ver bem a cara daquele maldito e comparar se, por acaso, foi a mesma que eu fiz quando eu descobri. — Bati a mão no ombro de Benício, indicando para ele escoltar nossa irmã em segurança.

Andei até a recepção do prédio, Marino já estava saindo, guardando seu celular no paletó, e me encarou firme.

— Você me deve mil pratas.

— Pagarei com prazer. — Sorri e passei para dentro do apartamento.

Subi as escadas e não pelo elevador, ainda nem estava ali dentro e já era possível distinguir o aroma de canela de todos os outros no ar. Inspirei fundo, fechando os olhos, lembrando da sensação da barba por nascer arranhando minhas bochechas. Que droga, que droga, que droga.

Abri o armário da cozinha, desci o Jack Daniels. É sempre o mesmo uísque, algo que nos une para sempre e que pode ser considerado uma piada pessoal. Sabe, "Daniels", "Daniel"... Puxei o copo bico de jaca, enchi de uísque e dei um largo gole, passeando pelos estilhaços. Havia um aroma indecifrável no ar, um que eu esperei muito para sentir. Fui seguindo o cheiro até o segundo quarto, onde havia um mapa de crime, que Mathieu estava construindo. Tudo aquilo estava rasgado, destruído, uma pilha de cinzas queimando as informações mais valiosas.

Fiquei imaginando o que tinha acontecido. Daniel estava vivo e havia invadido a cena para queimar aquelas informações quando foi atacado por outro agente, um clone seu? Ou eram apenas clones, em crise de identidade, batalhando entre si? O cheiro no ar me condenava. Ah, não, ele estava mesmo vivo.

Há um tempo, Mathieu recuperou um pendrive com imagens da AEES. Assistimos juntos ao conteúdo da fita e era uma gravação de um treinamento com os clones: um homem sentado com uma camisa de força, olhos cansados, repetindo roboticamente uma serialização de palavras-códigos que ativavam a programação mental. O homem que vi preso com uma camisa de força e correntes de bronze sendo reprogramado para se comportar como um robô, estava sofrendo o que eles chamam de recall: quando um agente do Projeto Gato Preto é recuperado e sua memória é apagada. Eu me culpava por aquilo. Talvez o vídeo fosse fodidamente recente. Talvez o vídeo fosse de Daniel. E estavam falando em francês.

Pouco antes de eu ir à Espanha teve esse episódio em que o clone de Daniel, conhecido como Daniele e que se envolveu romanticamente com Nero, me ligou de um telefone da França; brigamos, deu para ver que ele estava confuso com o tempo, sem memórias… E agora fico imaginando, será que foi mesmo Daniele? Ou será que era o maldito do Daniel pedindo ajuda e, mais uma vez, eu o ignorei?

Sentei no sofá e fiquei contemplando o USB do receptor de vídeos vazio. O invasor levou. Mordi os lábios e dei mais um gole no uísque.

— Porra, Daniel.

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