Muita coisa acontecera naqueles últimos dez anos.
Havia se afastado completamente da família e dos amigos desde que se mudara para o interior de Minas Gerais.
No principio trocava cartas com seu pai, sua mãe e, principalmente com seu irmão gêmeo, Zeca.
Que seus pais nunca soubessem disso, mas, sem sombra de dúvidas seu mano era a pessoa mais querida do mundo para ele.
Mas mesmo de Zeca, com o passar do tempo, acabou se distanciando.
Vida corrida essa de trabalhador assalariado.
Não lhe sobrava muito tempo para as pessoas queridas que estavam distantes.
Saía de casa de madrugada e voltava à noite. Nesse momento o cansaço lhe vencia e aquela carta ou aquele telefonema acabava ficando pra amanhã.
Por esse motivo passaram a ser raros.
Toda a família reclamava do aparente abandono por parte dele.
-Você esqueceu sua família, Miguel! – queixava-se sua mãe nos raros telefonemas que ele podia atender.
Apenas Zeca compreendia sua situação.
-Preocupa não, mano. A mãe é assim mesmo. Cuida de tua vida por aí que eu cuido da mãe por aqui.
Coisa de irmão.
Depois veio o casamento com Helena.
Passou a dividir-se entre o trabalho e a esposa.
Os telefonemas e as cartas ficaram ainda mais escassos.
A mãe passou a culpar Helena.
-Depois que você arranjou essa mulher que eu só vi por foto, você esqueceu de vez sua família. Seu pai diz que agora só tem um filho.
Novamente apenas Zeca parecia entender seu problema.
Aí veio o acidente.
Ele no volante, Helena grávida e aquele motorista bêbado fechando seu caminho em alta velocidade.
Ao desviar-se do carro que lhe fechava, foi atingido por um caminhão de cerveja.
Seria engraçado se não fosse trágico: um motorista bêbado e um caminhão de cerveja.
Saiu da estrada. Capotou uma, duas, três vezes.
O cinto de segurança o salvou.
Helena retirou o seu porque lhe apertava a barriga.
Pôde ainda ver seus dois amores saírem de sua vida de forma trágica.
Helena morreu e o fruto do amor dos dois teve o mesmo destino.
Ele apenas sobreviveu após uma complicada cirurgia.
Por milagre, sem seqüelas aparentes.
Continuou afastado da família. Agora por causa do álcool.
Entregou-se ao vicio da bebida numa desesperada tentativa de aliviar a dor que sentia.
Passou anos vagando pela vida como um zumbi.
Um zumbi bêbado e amargo.
Os amigos que havia feito na cidadezinha que residia, preocupados, praticamente o obrigaram a lutar contra o vicio da bebida e contra a tristeza que o consumia e parecia eterna.
Agora estava completamente recuperado.
Porém muito tempo se passou.
Acabara de descer na rodoviária.
Estava de volta à sua terra natal. Voltaria a ver sua família.
E esse era o grande problema.
Não sabia como seria recebido por seus pais e, principalmente pelo seu irmão.
Aquele que mais o defendera perante a família fôra o mais esquecido.
Miguel apenas concordava com frases curtas.
Não conseguia pensar ou se concentrar em alguma outra coisa que não fosse o rosto e o corpo de Joelma.
Estava fascinado e maravilhado.
Era a primeira vez que se sentia daquele jeito desde o falecimento de sua esposa.
Foi tomado por um sentimento de carinho pela sua interlocutora. O carinho tornou-se desejo e este, tornou-se paixão.
Miguel fôra tomado de sentimentos num período incrivelmente curto de tempo.
-Talvez o destino esteja me compensando por todo aquele sofrimento que passei recentemente - pensou.
Não havia mais dúvidas em sua cabeça. Haveria de ter Joelma consigo. Namoraria com ela e, quem sabe, até casaria. Com ela encontraria a cura para sua tristeza e sua solidão. Decididamente, estava apaixonado. E iria até o final por aquele sentimento.
Suspirou. Já havia esquecido como aquela sensação era boa.
Agora só precisava conhecê-la melhor.
-Como você conheceu minha família, Joelma?
-Casando com seu irmão.
Nem seria necessário dizer que,naquele momento, Miguel sentiu-se um perfeito idiota.Preferiu então não tocar mais no assunto da união de seu irmão com aquela criatura fascinante.Desviou o assunto, deixando para mais tarde o inevitável.Enquanto isso, Joelma falava e falava deixando-o cada vez mais extasiado com o delicioso som de sua voz.A rota do ônibus agora entrava na pequena cidade tão familiar.O chão já não era de barro indicando que o progresso, de alguma forma, havia chegado ali.Mas a sorveteria, a escola de ensino fundamental e o mercadinho da praça central continuavam lá.A igreja lembrou-o das divertidas manhãs de domingo e daquele tormento para que todos estivessem pontualmente no local antes da última badalada do sino.O desespero de sua mãe para que os dois estivessem devidamente apresentáveis ou pelo menos com os cabelos penteados e os pés calçados.Isso sem contar o trabalho para os tirarem das camas.Tu
Zeca mirou-se no espelho.-Acha ele parecido comigo?Joelma ficou tentada a não responder. Fingiu estar concentrada em sua tarefa habitual, mas por fim suspirou cansada ao comentar:-Todos nós trazemos conosco marcas por dentro e por fora. O tempo passou para os dois.-Não queria vê-lo.-Mas, por quê? Sempre falam dele pra mim com tanto carinho, tanta admiração... Tenho certeza que Miguel vai ficar muito feliz ao revê-lo.-É... Talvez tenha razão...Contemplou o rosto pálido novamente no espelho.Miguel já sentia os efeitos da viagem longa e cansativa: a cabeça latejava e estava um pouco impaciente.Suas respostas tornaram-se monossilábicas e ficara muito difícil fingir o entusiasmo inicial.Sentiu uma grande vontade de beber algo mais forte que água ou refrigerante.O cheiro da cerveja, da caipirinha e do licor estava o deixando louco por um gole.Começou a suar.Pediu licença a uma prima que contava entu
MIguel aspirou o delicioso aroma de alfazema. Era o que mais lhe lembrava sua cidadezinha durante o tempo em que morou em Minas.Ao deixar a pequena cidade anos atrás, levara lembranças de rostos molhados, olhos marejados e sorrisos já cheios de sauda-des.E também aquela indefinida sensação de esperança carregada de sonhos.Agora sabia que era uma necessidade de se libertar.Mas nunca quis esquecer-se da única coisa que o ligava a terra natal: a doce fragrância das arvores frondosas de sua querida ci-dadezinha.Balançou a cabeça afastando os pensamentos.Tinha que voltar para a festa.Afinal, não poderia passar tanto tempo fora. Seria uma indelicadeza.-Miguel.Não ouvira sua aproximação, mas... Aquela voz após tantos anos ele ainda guardava nitidamente na memória.Sentiu um conforto no coração. Algo que a muito não sentia.Virou-se rapidamente para abraçar seu irmão e redimir-se de todo o tempo em que fora tão egoís
Foi o abraço mais demorado que já tinham dado. Os dois estavam ofegantes e choravam copiosamente. A saudade sufocante pôde, enfim, ser aliviada. Porém, a magia da troca de olhares em consonância com o furor daquele tórrido abraço era suficiente para entender que ambos escondiam no disfarce sombrio daquele instante, algo de misterioso.Ficaram em silêncio contemplativo por um bom tempo. A emoção falava por si só.À volta para casa foi rodeada de novidades: Miguel contava a seu irmão sobre a vida no interior de Minas, sobre as mudanças ocorridas ao longo do tempo e sobre como tinha sido a viagem de volta à velha cidade de Folhagem.- Mano você ainda não me contou exatamente o que te motivou a sair daqui, há dez anos – indagou Zeca, curioso.- Oh Zeca, tenho muita coisa para te contar. Muita coisa mesmo.- Desde que você partiu, nosso pai mudou muito. Passa a maior parte do tempo sozinho. Trabalha incansavelmente, como se tentasse fugir da realidade ou com
Anoiteceu. As poucas estrelas riscavam suavemente a escuridão do céu. Entre o silêncio estridente das poucas palavras, os dois irmãos caminhavam de volta para casa. Ao chegarem, perceberam a movimentação das pessoas. Enquanto uns iam saindo, outros vinham cumprimen-tar Miguel, desejando-lhe boas vindas. Entretanto, eis que ao longe, Zeca avista uma pessoa correndo, num frenesi tal, que aos olhos de um policial, parecia que acabara de matar alguém. Estava num ritmo tão alucinante – com duração de alguns ínfimos segundos – que Zeca não conseguiu enxergar o que na mão ela segurava, ao embrenhar-se pelas espessas árvores daquele bosque inóspito e sinistramente encoberto pela opacidade daquela noite sem luar.Zeca não se atentou para o fato. A alegria estampada no rosto das pessoas - em especial, no de Miguel – era o que interessava agora.
A essa altura, Miguel já mirava – de longe – aquele rosto velho e cansado que vinha em sua direção. Era seu pai, Germano, que de tão distante e introspectivo não havia dado um abraço no filho.- O bom filho a casa torna – disse ele, profuso no sarcasmo na-tural do seu humor negro.- Oh pai, dá-me um abraço – suplicou Miguel, já com os olhos i-nundados pelas lágrimas que, teimosas, já caiam.Os vizinhos já se despediam, e a velha cidade de Folhagem, podia agora, dormir sem a euforia inicial da chegada de Miguel.Dona Beatriz, cansada, já fazia a cama para dormir. Sentia em si, um acréscimo radiante de felicidade, pois seu filho estava, enfim, nos seus braços novamente.Miguel dirigiu-se a seu quarto, exausto. Ao adentrar, acometeu-se de uma forte emoção ao ver a exatidão dos objetos, minima-mente alocados do mesmo jeito que deixara. Aquela velha cama o fez lembrar-se do tempo em que ainda sonhava e das maravilhosas noites, que há muito, não ti
No quarto ao lado, a aflição de Miguel destruía-lhe os nervos.Lembrava – com saudade – do seu tempo de infância, quando ainda brincava de gude com os primos e onde a inocência reinava no coração e nas lembranças daquela felicidade pueril. Até que, por força natural – porém, incompreendida – da vida, foi obrigado a crescer. Tornar-se homem e ser massacrado por um insólito desastre, ao qual se viu perdido e inconformado. Seu pai – única pessoa que sabia de tudo – o aconselhou a deixar a cidade.Os anos se passaram, a cidade esqueceu – pelo menos aparen-temente – da tragédia e Miguel ganhara uma nova vida no local onde se instalara, porém perdeu duas num trágico acidente.Soluçava muito. As lágrimas caiam incessantemente por seu rosto cansado e apático. Contudo, precisava dormir. As surpresas do amanhã – tão incertas e intensas – o aguardavam. Porém, antes de mergulhar na inconsciência de um sono profundo, conseguiu pensar em algo que pudesse acalentar aquele momento
A escuridão daquela inenarrável noite estava sendo rasgada, pouco a pouco, pelos primeiros raios de sol que emanavam do horizonte.Miguel acordara cedo. Foi contemplar a aurora. Quem sabe aquela não seria a última vez que iria ver o nascer do sol.Entre diálogos secos, olhares furtivos e uma fina névoa de contentamento espalhada pela casa, todos sentaram à mesa. Dona Beatriz, contente, fazia mimos ao filho regresso.- Hum, que café gostoso! – disse Miguel.- Fiz especialmente para você, filho.A mesa do café da manhã rodeava-se, agora, de alegria.Senhor Germano, como sempre, permanecia seriamente calado.Já eram oito horas da manhã quando Zeca propôs:- Vamos mano?- Sim, vamos lá. – respondeu Miguel.Já estavam longe quando D. Beatriz perguntou:- Vão aonde?- Vamos andar por ai, conversar, caminhar pelo bosque. O dia está tão lindo - respondeu Miguel, gritando.- Cuidado! – disse ela.Como caminha