03

(Dallas)

Eu não estava conseguindo dormir. Era capaz de ouvir o ronco de Siegfried cortando o vazio da noite, por cima do crepitar do fogo da lareira e o cheiro de lenha queimada. Jordan estava com as pernas trançadas com as minhas, com a bunda empinada para cima, nossos corpos por dentro de uma manta de peles que não dava para duas pessoas.

Eu a abracei com força, mas ela estava largada, dormindo tranquila depois de vários sedativos que tinha no porta-luvas do carro e do esgotamento de tanto chorar. A culpa era minha. Um maldito buraco negro para o qual eu a tinha atraído sem querer. Vai saber o que fizeram com ela antes de chegar no bordel, ou quando estava lá dentro? E droga, Jordan não merecia nada disso. Ela tinha cicatrizes de um ferimento nos punhos, desses de quem foi amarrada e torturada, acho que levou socos, talvez tenha sido estuprada.

Meu coração rasgava dentro do peito com a certeza de que eu tinha falhado. Fui incapaz de protegê-la e agora, mesmo que eu desse o meu máximo para consertar sua vida, eu nunca poderia devolver-lhe inocência.

Enquanto encarava o teto do chalé, lembrei-me de como conheci Jordan. Eu nunca tive interesse realmente em garotos, entende e sempre detestei a ideia de que um dia voltaria para a Ilha para me casar exatamente com um… Mas Jordan era diferente, suave, fofa, cheirosa e com a pele macia, além disso ela me ensinou muitas coisas sobre o universo e as pessoas.

A intolerância que o seu pai tinha com ela era o que me dava mais raiva e eu percebi que se quisesse ser alguém bom o suficiente, eu teria que me distanciar daquele tipo de homofóbico idiota… Conhecer Jordan tornou tudo mais fácil e eu não me sentia tão sozinha.

No começo, foi apenas amizade, entende? Trocávamos conhecimento, líamos livros, de vez em quando me deixavam sair e eu podia levá-la para passear um pouco pela cidade. Ela gostava de se voluntariar em Ongs e cuidar de animais, vegetariana, que gostava de analisar os signos das pessoas e falar sobre sobre filmes de terror. Aos poucos, fui me apaixonando eu acho, mas nunca me aproximei exatamente por saber que ela era um garoto e que eu iria me casar.

Então teve aquele Ano Novo que mudou tudo em nossas vidas. Como devem imaginar, eu não pude ir em festas e Jordan tinha essa fixação por ir a bares. Eu fugi de casa, saímos juntas pela garagem da casa dela e fomos para um lugar nos divertir. Não foi por causa do álcool no meu sangue, foi mais pela forma com que ela estava dançando, de olhos fechados, se entregando a música e porque um cara tentou por a mão nela. Afastei o indivíduo, fiquei louca de ciúmes. Comecei a beijá-la, quis tê-la.

Dormimos no hotel. No outro dia, tentamos fingir que nada tinha acontecido e voltar ao normal, mas nos tornamos mais íntimas. Em vez de passarmos horas vendo filmes de terror ou falando de signos, passamos a nos beijar em cima da cama, no chuveiro, onde imaginar. Jordan me fez esquecer que aquilo não era para sempre e eu nunca disse a ela que minha família era especialmente perigosa.

Houve um problema, um ataque perto de casa, meu pai ficou com medo que os malditos não fossem errar a casa da próxima vez e nos tirou de lá. Não tive tempo de me despedir, de dizer a ela a verdade… É culpa minha que Karvel tenha se aproximado, se aproveitado de sua inocência e claro, usou o que sabe sobre mim para convencê-la a viajar.

Deve ter sido horrível. Tento me colocar no lugar de Jordan: ia conseguir um emprego decente, viajar para Paris que era seu sonho, quem sabe me encontraria por acaso por lá… Ela poderia tirar a limpo as coisas, ou simplesmente recomeçar. Porém, em vez de ter acertado no bilhete dourado, ela estava sendo traficada, acorrentada, levada para um bordel, obrigada a se prostituir e apenas para ser assassinada como uma vingança de uma mente insana de um maldito imbecil que tinha algo contra mim.

Aquele ataque de Karvel era pessoal. Ele tinha mexido onde não devia e ia, claramente, pagar muito caro por isso. Questão de honra!

Percebi que eu não ia dormir. Levantei da cama, deixando Jordan bem coberta e vesti as calças tentando ignorar aquelas marcas em seu pulso, onde um dia, Karvel mandou colocar uma corrente enquanto ela era estuprada por alguém.

Não, nós não transamos, mas eu deveria ter transado com ela bem ali só para martirizar Siegfried um pouco, eu ainda estava irada por ele se sentir no direito de procurar uma prostituta porque não conseguia conter o que estava entre as calças. Porém, eu não queria usar minha amiga, minha ex. Sei como as coisas funcionam e sei como é difícil ignorar a vontade de transar quando ela bate forte. Mas eu não sou assim, tão lado animal, como Sieg. Eu sou simplesmente mais fria, mais frígida, mesmo.

Peguei o casaco. O maço de cigarros e fui para fora do chalé. A floresta estava especialmente escura e eu podia ouvir o silêncio, os animais certamente estavam se encolhendo.

Sentei-me na pedra e acendi o cigarro lutando contra o vento gélido. Sentia o meu corpo todo endurecer de frio, mas foi revigorante. A floresta estava escura, as sombras cobriam mais da metade dos troncos da árvore e apenas a luz de dentro da janela, da fogueira, fazia algum efeito.

As bochechas estavam congelando e minha mente estava vazia, sem conseguir se concentrar em nada. Só percebi que Siegfried tinha saído da cabana e vindo atrás de mim quando seus braços possessivos me envolveram, carentes.

— Eu sinto muito.

— Eu realmente não quero falar sobre isso agora.

— Dallas, você tem que me perdoar. — Ele beijou minha bochecha gélida com os lábios quentes da cabana.

— Somos casados por conveniência, então você faz a porra que quiser com o seu pau. — Tentei soar bem calma, mas foi impossível com tantos palavrões ardendo na minha língua.

— Está com ciúmes.

— Não.

— Claro que está. — Siegfried soltou os braços, sentou-se na mureta ao meu lado, uma perna para dentro e outra para fora do buraco de sua cabana de pedras. — Você tem que estar.

Ah, claro. Ele só queria que eu preenchesse aquilo, o maldito vazio em seu coração que insiste que sou eu que faço. Pisquei os olhos sem paciência. A verdade era que eu estava irritada, mas com ciúmes? Eu não estava. Me culpem, me julguem, foda-se. Eu não estava!

— Certo. — Cuspi com desgosto, só para vê-lo suspirar aliviado e passar as mãos nervosamente pelos cabelos quase brancos como a neve, pondo aqueles fios lisos no lugar. Vi o undercut por baixo, eu gostava daquele maldito corte. Bati o cigarro espalhando as cinzas, chupei o filtro. — Quero que Jordan vá para Paris e tenha uma audição para ser modelo, não me importa como, quanto custe, apenas faça. Devemos isso a ela.

— Claro. — Ele abriu bem os olhos azuis e frios, dessa vez com espanto gravado em suas órbitas.

— E quero Karvel pendurado de cabeça para baixo. Quero fazer um corte no pescoço daquele maldito.

— Dallas…

— Não quero desculpas. Ele mexeu comigo. — Exigi fazendo a voz fria. Siegfried engoliu seco, aquilo era difícil, eu sabia que ele estava em guerra com Karvel e que o puto estava protegido por sua mãe. — E em troca disso, fale para sua mãe que vamos aceitar ter um filho em um ano, você com alguma barriga de aluguel.

— Você não queria ter filhos. — Siegfried estranha. — Mas também seu pai nunca aceitaria que não fosse um filho de sua barriga!

— É um preço razoável pelo prazer de arrancar o coração de Karvel. — Dei de ombros.

— Por causa de Jordan. Uau… — Ele pareceu bem chateado. Não me importei, queria ver mais daquela dor na verdade. Era pouco pela humilhação que ele tinha me feito passar. — Eu não transei com ela, bem, só duas ou três vezes.

— Não estou te cobrando nada, Sieg. E nem vou. Aliás, eu vou te amaldiçoar um pouco… Dois meses sem sexo, absolutamente nada você vai conseguir de mim e vá por aí, vadiando com mulheres e outros homens, me desejando em todos eles. De mim, você não terá mais nada. — Joguei o cigarro no chão, pisei esmagando como se fosse sua loira cabeça. — Vou dormir.

Siegfried ainda ficou lá fora um pouco, sozinho e calado. Eu dormi pouco antes do dia clarear e ele ainda não havia entrado em casa, congelando os ossos lá fora, mas não tanto como tinha congelado meu coração.

 

❖❖❖

 

Voltamos para casa. Jordan ficou em um dos quartos de hóspedes e pudemos conversar rapidamente. Eu disse tudo a ela, absolutamente tudo, sem segredos. Como a pessoa maravilhosa que é, ela apenas concordou, chorou suas mágoas, chorou por mim e por ela e obviamente seguiu em frente. Nós a levamos para o aeroporto alguns dias depois, no todo, ela ficou uns quatro dias em casa e fizemos coisas de garotas, apenas o suficiente para que Pandora pudesse fazer a ela novos documentos.

— Não seja tão frio com seu homem, ele realmente sente sua falta. — Jordan me abraçou antes de entrar no avião. Siegfried estava mantendo distância de nós, esperando calado pelo momento em que ela fosse embora e eu voltasse a ser um prisioneira dentro de casa. — É sério, meu bem.

— Que se exploda.

— Você está com ciúmes. — Seus olhos verdes piscaram complacentes para mim. Fiz que não, mas ela segurou meu rosto com suas luvas pretas e sorriu. — Eu te conheço e já vi você com ciúmes antes para reconhecer. Escute, ou você aprende a se abrir mais para ele, em todos os aspectos, ou não importa o que faça, nada nunca será suficiente e você não pode culpá-lo por buscar o que não tem com você fora.

— Claro que posso.

— Se você pudesse se divorciar, claro que poderia, meu bem. É uma forma de entrar em um acordo quando as coisas estão tão incompatíveis. Obviamente o casamento não está funcionando e você tem que reconhecer sua derrota, ou ele será infeliz, e você também. — Ela falou séria. Tão madura e tão… ugh. Eu a odeio por estar tão certa. — Reverta as coisas a seu favor, pense nisso.

Ela me deu um selinho rápido de despedida, eu sorri e a vi entrar no avião. A ruivinha, como Siegfried a chamava, estava partindo e havia um buraco no meu coração. Voltei para o carro, meu marido se retesou, puxando a jaqueta de couro, ele abriu a porta para mim como o cavalheiro que foi educado a ser e contornou o carro, sentando-se ao volante.

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