A voz de Danu
A voz de Danu
Por: Yaskara Bohr
I - Dia Zero: parte 1

Os primeiros raios de sol invadiram o quarto e iluminaram a coleção de troféus ordenados sobre as prateleiras presas nas paredes acima da cama. Logo abaixo está um colorido mural de cortiça, e nele, presas por alfinetes coloridos, inúmeras fotos remetem à amizade entre um grupo de amigos, sobretudo entre duas garotas de marcada diferença em altura, cujas fotos juntas retratavam uma forte relação afetiva desde a infância. Junto a um calendário, destacado em vermelho a data 13 de uma sexta de dezembro com o desenho de um bolo enfeitado com estrelas e velas. Por cima de tudo, em um riscado nervoso, se via a curta frase dizendo: “data m*****a”.

Enrolada entre as cobertas, respira fundo e se vira para a janela. O dia já aponta afora enquanto a escuridão reina em casa. Revira os tristes olhos cansados e, com ar de desânimo, levanta da cama expondo parte do seu esquálido corpo.

A madrugada foi um desafio. Antes mesmo do raiar, despertou com um inseto negro, que, para ela, tinha o tamanho de um melão, que insistiu em ultrapassar através da entreaberta janela corrediça do seu quarto. E, nessa hora, levantou-se assustada, num pulo, a fechou de vez e, com isso, prendeu alguma parte do animal. Bem a tempo para observá-lo por alguns segundos, porém, não conseguiu identificar a espécie, sabia possuir grandes asas, era ruidoso e jamais vira nada tão amedrontador, nem recordara de seus joelhos tremerem tanto e sem parar.

Por bem ou por mal, iniciaria o dia com um café da manhã solitário. Ao entrar na cozinha, testa o interruptor em vão. Voltou-se ao lado e, com uma mão, afasta a cortina de renda branca; e, com a outra, abre a janela. Percebendo que logo abaixo crianças já cantarolavam brincando de pular corda, voltou a fechá-la.

Caminha se espreguiçando até a geladeira vermelha, cuja porta tinha uma foto presa por ímãs com temática em crochê, onde um homem de meia-idade, vestido de uniforme policial, abraçava uma senhora elegante, com a inscrição feita à mão: “Papai e vovó te amam! Feliz 22 anos, Danu!”, com a data do ano anterior.

Abre a porta da geladeira e imediatamente franze o nariz ao sentir o terrível cheiro de azedo. Voltou a atenção para o interior do dispositivo, sua face expressava insatisfação com a situação adentro e se pôs apreensiva ao encarar a porta do freezer acima. Verifica a parte de congelados e suspira desanimada por perceber que tudo estava descongelado, inclusive os grossos blocos de carne marmorizada que a avó lhe havia presenteado no dia anterior. Então, num reflexo, ergue o pé esquerdo, e logo se apoia sobre o calcanhar. Nota que um insistente gotejar rubro pálido forma um ralo e contínuo fluxo ao longo do chão da cozinha ao ponto de surgir uma poça ao lado da pia, empapando de tom rosa desbotado o tapete de crochê elaborado em barbante. Manca de um lado ao outro até encontrar um pano de chão, seca os pés e, em seguida, o j**a sobre a poça.

Acende o fogão, enche o bule com água e a coloca a ferver, pega o pote prateado escrito “Café”, e constata estar vazio. Por mais que busque no armário, não encontra nem mesmo um sachê de chá para aproveitar a água quente. Olha para a pia apinhada de louças sujas e, dentro de uma das xícaras, está o sachê do chá do dia anterior. Ergue os lábios em um bico arqueado para baixo, pega o sachê e põe dentro da xícara do dia atual.

Senta-se à mesa e bebe seu chá vaporoso de segunda coada.

*Sussurros incompreensíveis*

Focou a atenção sobre a pasta com a carteira de trabalho e inúmeras folhas de currículos aberta sobre a mesa e, ao visualizá-la, imagens das situações desconcertantes que passara durante as entrevistas em busca das vagas para seu ofício lhe veio à cabeça. Solta os ombros e suspira fundo. Revolve o abarrotado cesto de notas e boletos, encontra a folha do extrato bancário e faz as contas, chega à conclusão de que não resta muito de seu saldo para ir ao supermercado reabastecer a cozinha.

Sentada na cadeira do jogo de cozinha, feita em madeira rústica, obra do pai, verifica o celular. As mensagens não visualizadas de “Psiquiatra Eva” seguia em sequência ao longo da rolagem. Por sorte, ainda restava em 76% da bateria. Coloca o aparelho desligado sobre os inúmeros mapas abertos com demarcações em círculos vermelhos sobre áreas de mata mais próximas. Encara toda a papelada que abunda sobre a mesa, suspira fundo e, sem pressa, termina de beber o chá.

Ao se levantar, leva a mão sobre a têmpora, como se tivera uma tontura, apoia com as mãos sobre os joelhos e logo apanha um pote com tarja negra sobre a bancada, e dele traga duas pastilhas azuis e, assim, seu mundo fica em silêncio, feito isso, começa a aparentar estar cheia de energia. Ao repor o frasco ao seu lugar, olha com desprezo para outro, este era transparente, ainda lacrado, cheio de pequenos comprimidos verdes.

Aparentemente, escuta o som do leve deslizar do papel por baixo da porta da cozinha. Tratava-se de uma carta, e nela a inconfundível caligrafia apressada. Era da vizinha ao lado, apartamento n.º 159. Dentro, lhe felicita a data com um grande “Parabéns pelos seus 22 anos”, além de aconselhar que deveria ir à padaria de seu pai e voltar com dois sonhos de creme extragrandes, e terminou a mensagem desenhando uma carinha feliz. Ao fim da leitura, tapa a boca retendo um pranto, mas acaba por transbordar em lágrimas.

Coloca a carta sobre a bancada, entre receitas médicas, e, ao abrir a torneira para limpar as vasilhas, um jorro barroso sai e a vazão reduz até gotejar. Bufa irritada, agarra a fatura do mês de dentro do cesto, segue até a luminosidade da janela e, ao ler, comprova para si mesma que as contas estavam debitadas. Desde a vista da janela, mais pessoas que carros circundam a rua.

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