Danu acreditava no que podia ver e tocar, não se apegava a crenças e a coisas fantásticas, sempre buscando respostas racionais sobre tudo que ocorria com ela e com o mundo. Estava no meio de uma fase de muita falta de sorte, mas seguia firme porque sabia que ficar parada esperando milagres acontecerem não a levaria a lugar algum. Até que após um desastre marcante em sua vida, suas forças seriam levadas a prova, quando uma sequência de desventuras culminaria em um evento inimaginável. Alerta de gatilho! Esta obra trata de temas como depressão, suicídio e violência. Caso seja sensível a esses conteúdos, leia com cautela, e se sentir algum incômodo, interrompa a leitura e busque ajuda.
Leer másOs primeiros raios de sol invadiram o quarto e iluminaram a coleção de troféus ordenados sobre as prateleiras presas nas paredes acima da cama. Logo abaixo está um colorido mural de cortiça, e nele, presas por alfinetes coloridos, inúmeras fotos remetem à amizade entre um grupo de amigos, sobretudo entre duas garotas de marcada diferença em altura, cujas fotos juntas retratavam uma forte relação afetiva desde a infância. Junto a um calendário, destacado em vermelho a data 13 de uma sexta de dezembro com o desenho de um bolo enfeitado com estrelas e velas. Por cima de tudo, em um riscado nervoso, se via a curta frase dizendo: “data m*****a”.
Enrolada entre as cobertas, respira fundo e se vira para a janela. O dia já aponta afora enquanto a escuridão reina em casa. Revira os tristes olhos cansados e, com ar de desânimo, levanta da cama expondo parte do seu esquálido corpo.
A madrugada foi um desafio. Antes mesmo do raiar, despertou com um inseto negro, que, para ela, tinha o tamanho de um melão, que insistiu em ultrapassar através da entreaberta janela corrediça do seu quarto. E, nessa hora, levantou-se assustada, num pulo, a fechou de vez e, com isso, prendeu alguma parte do animal. Bem a tempo para observá-lo por alguns segundos, porém, não conseguiu identificar a espécie, sabia possuir grandes asas, era ruidoso e jamais vira nada tão amedrontador, nem recordara de seus joelhos tremerem tanto e sem parar.
Por bem ou por mal, iniciaria o dia com um café da manhã solitário. Ao entrar na cozinha, testa o interruptor em vão. Voltou-se ao lado e, com uma mão, afasta a cortina de renda branca; e, com a outra, abre a janela. Percebendo que logo abaixo crianças já cantarolavam brincando de pular corda, voltou a fechá-la.
Caminha se espreguiçando até a geladeira vermelha, cuja porta tinha uma foto presa por ímãs com temática em crochê, onde um homem de meia-idade, vestido de uniforme policial, abraçava uma senhora elegante, com a inscrição feita à mão: “Papai e vovó te amam! Feliz 22 anos, Danu!”, com a data do ano anterior.
Abre a porta da geladeira e imediatamente franze o nariz ao sentir o terrível cheiro de azedo. Voltou a atenção para o interior do dispositivo, sua face expressava insatisfação com a situação adentro e se pôs apreensiva ao encarar a porta do freezer acima. Verifica a parte de congelados e suspira desanimada por perceber que tudo estava descongelado, inclusive os grossos blocos de carne marmorizada que a avó lhe havia presenteado no dia anterior. Então, num reflexo, ergue o pé esquerdo, e logo se apoia sobre o calcanhar. Nota que um insistente gotejar rubro pálido forma um ralo e contínuo fluxo ao longo do chão da cozinha ao ponto de surgir uma poça ao lado da pia, empapando de tom rosa desbotado o tapete de crochê elaborado em barbante. Manca de um lado ao outro até encontrar um pano de chão, seca os pés e, em seguida, o j**a sobre a poça.
Acende o fogão, enche o bule com água e a coloca a ferver, pega o pote prateado escrito “Café”, e constata estar vazio. Por mais que busque no armário, não encontra nem mesmo um sachê de chá para aproveitar a água quente. Olha para a pia apinhada de louças sujas e, dentro de uma das xícaras, está o sachê do chá do dia anterior. Ergue os lábios em um bico arqueado para baixo, pega o sachê e põe dentro da xícara do dia atual.
Senta-se à mesa e bebe seu chá vaporoso de segunda coada.
*Sussurros incompreensíveis*
Focou a atenção sobre a pasta com a carteira de trabalho e inúmeras folhas de currículos aberta sobre a mesa e, ao visualizá-la, imagens das situações desconcertantes que passara durante as entrevistas em busca das vagas para seu ofício lhe veio à cabeça. Solta os ombros e suspira fundo. Revolve o abarrotado cesto de notas e boletos, encontra a folha do extrato bancário e faz as contas, chega à conclusão de que não resta muito de seu saldo para ir ao supermercado reabastecer a cozinha.
Sentada na cadeira do jogo de cozinha, feita em madeira rústica, obra do pai, verifica o celular. As mensagens não visualizadas de “Psiquiatra Eva” seguia em sequência ao longo da rolagem. Por sorte, ainda restava em 76% da bateria. Coloca o aparelho desligado sobre os inúmeros mapas abertos com demarcações em círculos vermelhos sobre áreas de mata mais próximas. Encara toda a papelada que abunda sobre a mesa, suspira fundo e, sem pressa, termina de beber o chá.
Ao se levantar, leva a mão sobre a têmpora, como se tivera uma tontura, apoia com as mãos sobre os joelhos e logo apanha um pote com tarja negra sobre a bancada, e dele traga duas pastilhas azuis e, assim, seu mundo fica em silêncio, feito isso, começa a aparentar estar cheia de energia. Ao repor o frasco ao seu lugar, olha com desprezo para outro, este era transparente, ainda lacrado, cheio de pequenos comprimidos verdes.
Aparentemente, escuta o som do leve deslizar do papel por baixo da porta da cozinha. Tratava-se de uma carta, e nela a inconfundível caligrafia apressada. Era da vizinha ao lado, apartamento n.º 159. Dentro, lhe felicita a data com um grande “Parabéns pelos seus 22 anos”, além de aconselhar que deveria ir à padaria de seu pai e voltar com dois sonhos de creme extragrandes, e terminou a mensagem desenhando uma carinha feliz. Ao fim da leitura, tapa a boca retendo um pranto, mas acaba por transbordar em lágrimas.
Coloca a carta sobre a bancada, entre receitas médicas, e, ao abrir a torneira para limpar as vasilhas, um jorro barroso sai e a vazão reduz até gotejar. Bufa irritada, agarra a fatura do mês de dentro do cesto, segue até a luminosidade da janela e, ao ler, comprova para si mesma que as contas estavam debitadas. Desde a vista da janela, mais pessoas que carros circundam a rua.
Meses atrás, quando o caso de desaparecimento dos conhecidos jovens esportistas repercutiu, chocou a cidade do interior e ninguém sabia mais do que o (não) dito por Danu. O mistério é o suficiente para motivar as crianças a criarem uma canção: “Danu, Danu, com eles, partiu. Danu, Danu, com eles, seguiu. E um dia, sozinha, surgiu. Danu, Danu, onde estão? Danu, Danu, perdida do rio. Comeu suas palavras? Comeu suas almas? Danu, Danu? Onde estão? Sua cuca, o rio levou!” Só escutara essa canção infantil uma vez, o suficiente pa
Sem dizer uma palavra, ela sorri, vira e segue para dentro da gruta. Danu grita seu nome repetidas vezes, mas o som já não sai de sua boca. Por mais rápido que a persiga, mais rápido ela se distancia. Estende a mão várias vezes para a agarrar, sempre a um fio de alcançá-la. Em um dado momento, tropeça, caindo em meio ao pó e ali permanece. De onde está, ergue a cabeça e arregala os olhos, o que enxerga abaixo é um círculo perfeito de pedras arredondadas, tendo ao centro uma larga e plana com a superfície preenchida de inscrições talhadas. Pressiona o ferimento no braço, abaixa a cabeça e se põe de pé. Ao olhar novamente para o monumento, assusta-se de tal forma que a faz desequilibrar e deslizar abaixo. Quando seus pés tocam o fundo, aperta os olhos, como se estivesse tentando concentrar-se no que era real. Ao olhar novamente, sua boca abre em espanto. Parado ao lado da pedra com inscrições, há a figura em negro do homem alto, trajando chapéu, o mesmo ser que a perseguia em seus pes
Aproveita a recém-calmaria e, em um passo de cada vez, segue para fora do refeitório quando então um borbulhar inquieto de pura escuridão toma a luz ao fim do túnel — outra revoada retornava. Quase não teve tempo de abaixar e se proteger atrás da mochila. Enquanto passavam, perde as contas de quantos trombam contra seu capacete e, ao dar a volta, dá de cara com um deles pousados ao chão. O reconhece de imediato — é o batedor —, ele está em busca das manchas rubras e frescas, concentrado demais em drená-las para notar a presença da mulher. Foi então que as sobrancelhas de Danu erguem-se ao perceber tratar de seu próprio sangue quando finalmente se dá conta do ferimento no braço. Agachada, recua até bater com a mochila na parede, rasga uma tira da blusa e a amarra sobre o corte vívido. O animal insidioso agita as asas e, com suas longas patas, começa a se aproximar. Nesse mesmo tempo, Danu, cautelosa e sem desviar a atenção dele, se afasta caminho acima. Nesse hiato, um fio de água at
Como se estivesse preso sob pressão, uma espécie de gás marrom escapa de dentro, contorce o nariz e se põe apreensiva. Escolhe um longo pavio de cipó ceroso e o pôs no orifício por onde o projétil atravessara e, então, o acende. Afastada e aguarda o fogo consumir lentamente o cipó. Espera por quase meia hora, quando, por fim, lentamente adquire coragem para voltar e empurrar uma abertura na porta. O ar do lugar a faz tossir e tapar o nariz. Se afasta, retira a blusa regata e a faz de meia máscara que cobre nariz e boca. Agora, com toda a força, termina de abrir a porta emperrada a pontapés. Com a entrada escancarada, o restante de uma névoa café escapa sem pressa. Cautelosa, ilumina o local. Logo na entrada, desbaratadas latas e caixas de papelão vazias preenchem velhas prateleiras de madeira. Então segue para o outro extremo do recinto, onde encontra empilhados uns sobre os outros pacotes e mais pacotes do mesmo pó branco espalhado afora, suficiente para construir uma parede. Então,
Amanhece, Danu ainda balbucia, observando o monte ordenado de pedras. Perdida em sua mente, recordações desdobram uma de cima de outras mais profundas como a casca de cebola. Inflama uma versão dela mesma eternamente escondida em um pequeno armário apertado, tendo como única visão a proporcionada por uma fresta entre as portas, e de dali observa o vulto do homem alto buscando-a. Somado a isso, havia uma Danu mais crescida e se apresenta em outra realidade ajoelhada, cercada de memórias estilhaçadas, como o vidro da janela às margens da consciência. Peça por peça, junta os cacos, a dor ao tocar as pontas afiadas se faz presentes a cada instante. São as recordações que lhe deformam a face: revive a continuação do dia da caminhada na floresta. Oculta na vegetação da mata, de uma forma covarde, segue até onde os captores levam seus amigos. Vê que entram em uma caverna, cuja localização busca relembrar há meses e demarcara um sem-número de possibilidades em todos os mapas sobre a mesa da
E ali, por várias vezes, tenta escalar de volta, mas tudo que consegue é retornar abaixo, por mais que tente se agarrar, a subida íngreme e o peso extra a fazem deslizar. Pensativa, roda em círculos, até que para e começa a juntar pedregulhos sobre a base, pedra sobre pedra, as apoia sobre o declive côncavo até criar uma improvisada escada tombada. De frente para a “3bD”, decide seguir pelo outro caminho, o marca como “3bE” e prossegue para o túnel até que o espaço se torna tão estreito que se vê obrigada a caminhar de lado. Em um ponto, a passagem enfunila de tal modo que só a permite seguir a espessura do corpo, deixa a mochila ao chão e derruba vigas de madeira para conseguir espaço para prosseguir. Então, mais à frente, repetiu o processo outra vez mais, indo para a direita, onde anotou “4bD”. Com a tocha, ilumina uma grande abertura, ao chão, há velhos uniformes laranjas espalhados, tais como a do invasor devorado. Verifica o lugar, e não encontra nada útil, segue adiante até ch
Último capítulo