A Clínica
A Clínica
Por: Rafaela Fonseca
A Clínica

A cidade ainda dormia tranquilamente e os primeiros raios de sol surgiam no horizonte iluminando a, já desativada, Clínica Psiquiátrica. As paredes de tijolo colonial já haviam perdido parte do reboco deixando vários dos tijolos expostos, parte do teto também já tinha se deteriorado com o tempo e desabado, ou as telhas haviam escorregado e espatifado no chão. Durante décadas aquele lugar tinha sido o responsável por movimentar todo o capital da comunidade ao seu redor, mas tudo mudou depois do incidente em setenta e cinco, naquela época os internos se rebelaram matando vários dos funcionários do lugar, além de muitos dos pacientes. Depois do ocorrido a clínica fechou suas portas e a cidade ao redor tornou-se uma sombra do que era, constantemente assombrada com os acontecimentos daquele local. A perda da clínica fez a cidade tornar-se uma pequena comunidade sem muitas expectativas para o futuro, e a maioria dos jovens deixavam o lugar para procurar uma vida com mais possibilidades em outras cidades.

Tânia olhou pela janela do quarto, o sol ainda não havia dissipado toda a neblina, que vinha com o tempo frio, deixando o prédio da clínica abandonada ainda mais aterrorizante. A jovem de pouco mais de quinze anos desviou o olhar enquanto colocava a camiseta da escola onde estudava. Sua mente divagava sobre os planos que seus amigos estavam bolando, precisava arrumar uma forma de convencê-los de que invadir aquele prédio não era uma boa ideia. Não por causa das histórias sobre fantasmas que contavam, aquilo não a assustava, não o suficiente para ser seu motivo. Tinha medo de animais que poderiam viver naquele lugar, não queria nem imaginar ser picada por uma aranha ou coisa do tipo. A garota prendeu o cabelo castanho em um rabo de cavalo, precisava ser rápida, pois os amigos tinham planejado tudo para aquela noite.

***

É sério, Sabrina? — Tânia perguntou enquanto assoprava as mãos na tentativa de aquecê-las.

O dia era sem dúvida um dos mais frios do ano, e a garota só conseguia pensar em qual temperatura chegaria durante a noite. As duas amigas aproveitavam o intervalo entre as aulas para discutir sobre o plano de invasão da clínica durante aquela noite. Por um lado Tânia tentava ser racional enquanto a amiga ria dela ao ponto de seus olhos claros lacrimejarem de rir.

Não consigo acreditar que você tem medo dessas coisas! Fantasmas não existem. — Sabrina retomou o fôlego, secando as lágrimas no canto dos olhos. — Eu te protejo!

Não é medo — a garota revirou os olhos —, é receio, lá pode ter muitos animais peçonhentos, é disso que tenho medo. Tenho medo de coisas reais, que podem me machucar de verdade. E também por aquele lugar me provocar arrepios!

A garota falou desviando sua atenção para o prédio onde um dia tinha sido a clínica, mesmo do pátio da escola era possível ver a antiga construção imponente sobre a colina. Na verdade, não havia um único lugar da cidade, de pouco mais de dez mil habitantes, que não desse vista direta para a construção, era como se aquele lugar fosse o rei que todos deveriam adorar e que os vigiava a todo momento. Era praticamente o motivo da existência daquela cidade e não havia uma pessoa que não tivesse um familiar que já trabalhou naquele lugar no passado.

Conseguiu convencer a medrosa? — Luiz perguntou para Sabrina sentando-se junto das garotas na escadaria acompanhado por Jonathan.

O dia que alguém me convencer a ser imprudente, dou meus parabéns! — Tânia levantou. — Podem ir sozinhos, prefiro ficar no conforto da minha casa onde nada de ruim vai acontecer comigo.

Que seja! — O rapaz, de cabelos encaracolados, falou rispidamente dando de ombros. — Ninguém vai sentir sua falta lá mesmo.

Jonathan e Sabrina se entreolharam, os quatro eram amigos desde a infância e em todos esses anos já havia se tornado habitual Tânia e Luiz baterem de frente um com o outro. A garota não entendia como os outros amigos conseguiam ser levados pelas ideias imprudentes que ele propunha e nem conseguia acreditar que uma pessoa com a idade dele ainda tinha aquelas ideias infantis.

Não vamos brigar — Jonathan levantou abraçando Tânia. —, somos melhores amigos e vamos respeitar a escolha dela de não ir! Se não fosse nossa aposta — olhou para Luiz — eu ficaria em casa também, tá muito frio e de noite vai ficar congelante.

Isso mesmo, somos todos amigos! — Sabrina acenou com a cabeça. — Nada de briga boba.

***

Tânia entrou em casa trancando a porta, depois das aulas na sexta-feira, ia direto para as aulas de inglês e depois para o jiu-jitsu. Aquele também era o dia em que os pais sempre iam para algum bar com seus amigos, deixando a garota sozinha até tarde da noite. Ela pendurou o casaco atrás da porta e subiu para o quarto. Estava com frio e precisava de um banho quente para superar aquele dia agitado. A garota olhou para o notebook sobre a cama, não estava disposta a se arriscar indo até a clínica desativada, mas, por outro lado, estava muito curiosa sobre a história do lugar. Era como se aquela construção tivesse algum tipo de magnetismo que atraía a atenção das pessoas e não era diferente com a garota, que estava parada observando a clínica.

Tânia ligou o computador indo para o site da biblioteca da cidade, não havia muitos anos que tinham instalado internet no local e as bibliotecárias tinham disponibilizado on-line os jornais antigos da cidade. Não demorou até a garota encontrar algumas reportagens sobre a clínica. Não haviam registros de jornais da época em que ela havia sido fundada, por volta de mil e novecentos, mas haviam várias coisas a partir da década de sessenta. Os jornais sempre afirmavam que o lugar era um dos mais importantes do estado quando estava em funcionamento, tendo profissionais renomados trabalhando lá. Porém, o número de pacientes mortos crescia ano após ano, em consequência dos testes realizados. Pessoas eram encontradas sem membros ou até mesmo com seus crânios abertos para serem examinados ou para serem submetidas a Lobotomias.

A garota respirou fundo evitando olhar pela janela, sentia que a construção a observava, na tela do notebook a foto antiga de um interno da clínica mostrava a realidade daquele lugar. O homem jovem parecia rosnar para a câmera, lhe faltava alguns dentes e o rosto era sulcado pela desnutrição, a pele clara apresentava hematomas arredondados principalmente na cabeça. Era Maximiliano Torres, conhecido por ser o responsável pelo início do incidente de setenta e cinco. Segundo o jornal, ele havia sido preso depois de ser condenado por cometer vários estupros e por canibalismo. Foi alegado que ele não possuía capacidade mental para responder judicialmente pelos seus crimes, sendo então encaminhado para a clínica.

Tânia olhou para outra foto que seguia o texto, nela Maximiliano estava preso em uma cama e amordaçado, mas mantinha um sorriso medonho em seu rosto. A garota sentiu um frio na espinha ao ver a imagem, o homem agora tinha tomado um semblante ainda mais assustador. Segundo os registros da época, não era a primeira vez que tinham problemas com o paciente. Naquela noite, Maximiliano tinha conseguido se livrar das amarras durante uma sessão de Eletroconvulsoterapia, estuprou e se alimentou do médico e da enfermeira que estavam na sala. Depois disso ele saiu pelos corredores libertando os pacientes, o caos logo tomou conta do lugar. E ainda pior, Maximiliano não foi encontrado nem entre os vivos nem com os mortos, sendo, seu paradeiro, um mistério.

Tânia saltou sobre a cama escutando o celular tocar, o coração da jovem disparou com o susto e ela começou a rir de si mesma. Já haviam passado das dez da noite, provavelmente seus amigos já estavam na clínica abandonada. Na tela do aparelho aparecia o nome de Sabrina que estava ligando para a garota.

Amiga! Socorro, aconteceu alguma coisa com o Jonathan! — Tânia nem ao menos teve tempo de responder e a ligação caiu.

Ela levantou da cama, suas mãos tremiam enquanto tentava retornar a chamada que apenas caia na caixa postal. Ainda com medo a garota desviou o olhar para a janela, na penumbra da noite era possível ver as janelas quebradas e o telhado já apodrecido da clínica. Seus amigos estavam lá e precisavam de ajuda. A garota desceu as escadas perguntando a si mesma o motivo de Sabrina não ter ligado para a polícia, enquanto isso tentava ligar para Jonathan ou para Luiz, porém, o telefone de ambos também estavam desligados ou fora de área. A garota olhou pela casa, mas não encontrava nada que pudesse ser útil para levar até a clínica. Tânia deixou a casa colando um recado sobre a mesa falando que havia ido encontrar Sabrina e que provavelmente passaria a noite na casa da amiga.

***

Uma coruja piava preguiçosa por entre as árvores que circundavam o velho prédio. Tânia desceu da bicicleta olhando para os enormes portões de ferro que haviam sobrevivido ao tempo. A jovem procurou na mochila por seu cadeado, mas ele não estava lá, ela bufou frustrada, aquele não era o tipo de coisa que poderia ter esquecido.

Merda! — murmurou olhando ao redor tentando encontrar um lugar para deixar a bicicleta escondida.

Depois de conseguir encobrir a bicicleta sob um arbusto, ela voltou para o portão, teria de escalá-lo. A garota segurou a grade de ferro que estava tão gelada quanto o ar noturno. Perguntava a si mesma o motivo dos amigos não estarem lá por perto, mas agora começava a suspeitar de que tudo não havia passado de uma brincadeira de mal gosto da parte deles. Tânia impulsionou o corpo começando a escalar, mataria os três se aquilo fosse uma piada. Logo ela estava no topo do portão e saltou para o chão caindo agachada, agora ainda mais perto da construção sentia mais frio, era como se aquele frio fosse exalado pelas paredes antigas. Tânia abraçou-se tentando tirar da mente as fotos de Maximiliano e seu sorriso apavorante, precisava encontrar os amigos o mais rápido possível para poderem deixar aquele lugar.

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