Prólogo

Lá estava seu corpo; mais um entre o mar de cadáveres que teimavam em duplicar-se, como os próprios ratos que habitavam a escuridão sórdida daqueles túneis. Não parecia se importar com o sangue que manchava sua pele e tingia sua camisa de carmim, tampouco com o fato de que havia acabado de matar uma moça inocente. Na verdade, nada parecia importar para Jacob. Absolutamente nada. "Per signum Sanctae crucis, de inimicis nostris liberanos, Domine Deus noster. In nonime Patris et Filii et Spiritus Sancti", sussurrava em meio à sua própria confusão. "Amem", finalizou, traçando o sinal da cruz por seu corpo. Seus dedos deixavam um rastro de sangue desde a testa até os ombros. Retirou de seu bolso sua velha garrafa de absinto, marcando o corpo despido da jovem pelo líquido esverdeado. Retirou suas vestes, lançando-as sobre o tal. Fechou os olhos por um instante, sussurrando suas preces em latim e logo lançando a lamparina que se encontrava em sua mão esquerda sobre o cadáver pálido da menina. Entretanto, sua expressão não se modificou durante ou após a queima do cadáver, na verdade seu olhar inerte e apatia demonstrava seu mais profundo tédio com tudo aquilo. Retornou para à igreja e após trocar-se rumou para casa. Um sorriso fora esboçado ao encontrar-se com sua mãe e dar-lhe um beijo de boa noite.

Quando a luz do sol atingiu o primeiro pilar da Abadia de Westminster, metade da população já se encontrava nas ruas, uns trabalhando, outros se aglomerando frente à praça pública para ouvir o mensageiro real transmitir o anúncio tão aguardado pelo povo. Uns se cutucavam e questionavam uns aos outros se finalmente o rei daria ouvidos aos pedidos de mais segurança e ajuda. Afinal, o que fariam por nossas filhas desaparecidas? Por nossos comércios saqueados? A resposta final foi apenas um aviso curto e breve para não se importarem, afinal, "tudo está sob controle, Deus protegerá seu povo e o rei tomará conta de todos". Um camponês de estatura média bufou dentre a multidão, em seguida praguejou o rei, enquanto marchava para longe da balbúrdia. O povo estava decepcionado, no entanto, o medo era palpável o suficiente para não ousarem se voltar contra seu rei, além do mais, o que poderiam fazer?

Inconformados, os cidadãos voltaram a sua rotina, enquanto um rapaz cruzava a rua desesperado. De porta em porta ele abordava os vizinhos, questionando quem houvera visto sua pequena irmã. Nenhum parecia se importar ou ao menos tê-la visto durante os últimos quinze dias em que esteve desaparecida. Uma senhora rechonchuda ainda esbravejou, enxotando o moreno para fora de sua taverna. O rapaz limpou a lagrima, que insistiu em rolar, com sua manga da blusa já aos farrapos. O aperto em seu peito logo sufocou a angustia que sentia e ele continuou sua busca.

Não muito mais tarde, quando a luz do sol refletia em um intenso laranja nas paredes da Abadia, Simon saiu de casa após deixar seu irmão com a velha vizinha Mathilde, que os conhecia desde tão pequenos. Engoliu seco e saiu a caminho da floresta que cercava a cidade, a caminho da estrada principal que levava para longe de Londres. Seu caminho fora longo e por todo ele o rapaz gritava por Elize com anseio. As folhas e galhos secos quebrando sob a sola de seus sapatos furados, causou uma sensação de vazio profundo, que Simon não conseguiu reprimir. Sim, ele estava desesperado. Não entendia como diabos sua irmã havia desaparecido tão de repente. Seria possível que havia deixando-o junto de seu irmão caçula por desgosto e raiva? Não. Simon sacudiu a cabeça a cabeça, como que na tentativa de jogar estas ideias podres para fora de sua cabeça. Inútil. Ele não conseguia se prevenir de se torturar com as piores ideias possíveis.

Cruzou um conjunto de finas árvores, deixando para trás pedras pequenas enterradas sob a poeira. Somente o som dos pássaros compunham uma melodia suave, em conjunto da leve ventania que sacudia as folhas das árvores. No entanto, poucos metros à frente, sob a penumbra da neblina noturna, Simon viu uma carruagem tombada, rodas quebradas e cavalos agitados. O que poderia ser aquilo? Ladrões? Os pensamentos se aglomeravam em sua mente, soterrando suas preocupações com Elize por um breve momento. Logo, o jovem saiu ansioso, caminhando cautelosamente dentre as árvores que ladeavam a estrada. Com seu punhal em mãos, Simon se aproximou cuidadosamente da porta arrebentada da luxuosa carruagem. Dentro dela, a cena mais pavorosa e assustadora que Simon já vira antes. Um homem com a garganta totalmente destroçada, encoberto em seu próprio sangue. Logo a frente dele um outro homem, com roupas menos luxuosas, no entanto, sua cabeça estava pendurada somente por pedaços de sua pele que ainda prendiam sua cabeça ao corpo. Dois passos à frente e Simon por pouco não pisaria num colchoeiro que estava completamente ensanguentado, com facadas e cortes abertos pelas costas. Ao redor da carruagem, entre ela e as árvores, diversos baús, uns ainda trancados com grossos cadeados, outros abertos com roupas, sapatos e livros, pouco do que havia restado do saque que fizeram.

— Que horror...

Um murmúrio baixo, dito pouco antes dele retirar duas peças de dentro do baú. Encarou as peças em sua mão, com cuidado e receio. Seria errado demais que ele pegasse apenas algumas peças para trocar estas podres e rasgadas em seu corpo? Simon pensava com cautela, sentindo remorso por revirar as coisas de um homem morto. Deixou as coisas no baú, olhou para trás e viu o rosto, agora com mais clareza, do homem que havia perdido a vida por tão pouco.

— Pobre homem, morreu tão jovem! — resmungou Simon, franzindo o cenho.

Depois de se virar para o baú, pegou uma blusa, calças, um par de sapatos novos e um colete de seda bordado. Arrancou um casaco longo bordado com um brasão chamativo, e claro, pegou um dos livros mais chamativos do baú, um com uma amarração de couro, com letras bonitas bordadas em dourado. Certamente um livro chique, poderia ler para seu irmãozinho Robert, antes de ir dormir. Escondeu a brochura no meio das roupas e seguiu seu caminho, depois de retirar os casacos dos homens e cobrir suas cabeças com roupas e tecidos largos. Enquanto jogava os casacos dentro do baú aberto, Simon vê algo que lhe chamava a atenção, mesmo não lhe sendo nada útil; Um par de chaves de ferro e um anel robusto. Colocou tudo no bolso, antes de sair dali.

A corte estava atônita. Os corredores do palácio pareciam pistas de equitação, com pessoas correndo para todos os lados. Janelas eram lavadas, lustres e candelabros eram polidos, em conjunto de imensos quadros e tapeçarias, que eram limpos com diligência. Os nobres no salão da corte cochicham uns com os outros sobre as novidades. Risadas altas, suspiros e expressões de surpresa, desprezo, nojo, inveja, todas compondo um ambiente intenso e agitado.

— Não seja tão invejosa, teme que a princesa roube sua chance de cair nas graças do príncipe Henry? — murmura uma mulher de cabelos loiros e pele pálida como neve.

— Deixe de ser venenosa, sabe bem que sua presença não impedirá que o príncipe continue cortejando outras. — Contrapõe a morena, seus lábios se delineando em um sorriso presunçoso.

— Bom, ela é sua noiva afinal de contas... — diz a loira, com um sorriso sarcástico.

— Souberam da novidade? O duque de Devonshire não chegou à corte. Toda a guarda real saiu à sua procura. Parece que ele pode ter sido atacado!

O homem que chegara trazendo a notícia às damas demonstrava um sorriso surpreso e não se conteve em seguir para um próximo grupo de nobres para espalhar a fofoca. Toda a corte não tardou em descobrir sobre os mais novos nobres a residirem na corte inglesa. Mas, o que era para ser uma chegada festejada, começava a criar tensão e suspense. A pergunta que ficava era... O que havia acontecido com o duque?

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