4 - Dois segredos

            O paredão se erguia dez metros, cheio de concavidades e reentrâncias, como uma muralha de rocha sólida da qual brotavam inúmeros pequenos cristais de diversas cores. Dividindo-o ao meio, a queda d’água fazia um barulho ensurdecedor, que ecoava nas paredes e tornava quase impossível qualquer conversa que não fosse composta de palavras simples, curtas e gritadas. O riacho que ela abastecia era largo e raso, de água gelada e revigorante. Em seu fundo, assim como nas paredes, havia uma enorme variedade de cristais, cintilando à luz das tochas na superfície.

            Toda aquela maravilha estava alojada dentro de uma caverna enorme, como um grande domo subterrâneo. Aquele era o antigo marco divisório entre o território de Migdala e Neemya, no que dizia respeito à posse das cavernas. Tudo o que estivesse acima, e depois do paredão, pertencera à Neemya. Tudo que estivesse abaixo do paredão, e seguindo até a entrada ocidental da caverna pertencia à Migdala.

            Mas isso era no passado. No presente, as cavernas pertenciam exclusivamente à Migdala, devido a uma resolução arbitrária tomada pela capital depois da guerra civil. Desde então, qualquer pessoa que coletasse ervas, fungos ou cristais nas cavernas sem a devida autorização de Migdala estaria cometendo um crime.

            Sob esse aspecto, os dois viajantes que observavam o paredão, se refrescando com a umidade gerada pelo choque da água contra o chão eram criminosos. Por anos eles invadiram as cavernas e coletaram tudo o que podiam para seu sustento e o de sua família, se metendo em todo tipo de enrascadas e desventuras. Um deles até chegou a ser levado encarcerado, apesar de ser salvo pela compaixão do encarregado.

            Mas aqueles eram outros tempos. Hoje, eles não precisavam mais roubar ervas de cavernas. Haviam encontrado uma forma melhor e muito mais segura de levar a vida. Eram pessoas respeitadas. Eram ordenados, e serviam à base dos Égides em Migdala.

            Apesar disso, Abigail ainda achava muito estranho caminhar por aquelas cavernas sem ter de se preocupar com três milicianos em seus calcanhares. E apesar de nunca ter perguntado, sabia que Beni se sentia da mesma forma.

            – E então? – Beni perguntou, aos berros, depois de beber mais alguns goles da água do riacho. – Vamos começar a subir hoje?

            – Estou esperando você! – Abigail berrou de volta. – Suba, e eu irei logo atrás!

            – As damas primeiro! – Ele gritou de volta, apontando, com um gracejo, para o pé do paredão.

            – Quanto cavalheirismo, Beni! – Ela debochou. – Eu me emocionaria, se fosse um tantinho mais ingênua ou se não estivesse usando saias. Vamos, sem embromação. Você vai na frente.

            – Como se eu quisesse subir uma parede de pedra olhando para essas suas pernas de homem. – Beni, disse, mais baixo que o necessário para ser ouvido.

            – O quê? – Abigail perguntou, ciente de que ele havia dito uma grosseria, apesar de não ter entendido direito.

            – Nada! Vamos, vai ficar tarde! – Ele desconversou.

            Enquanto ele arregaçava as mangas da camisa, Abigail erguia a barra da saia e a prendia à altura das coxas, para dar às pernas mais liberdade de movimento. Apesar de ser treinada para vencer aquele tipo de obstáculo, o paredão ainda era desafiador, e a subida, cansativa. Depois de prenderem bem as bolsas às costas, começaram a escalada – Beni, evidentemente, à frente.

            Apesar de ter dezessete anos, quase nada mudara no jeito de Beni agir desde que tinha doze. Ela era o mesmo garoto inquieto, competitivo e moleque. Fisicamente, havia espichado – era um rapaz alto, magro mas muito resistente. Seu temperamento insistente lhe metia em confusões dia sim, dia não. E assim como Abigail, tão logo chegou na Ordem dos Égides fez questão de colecionar desafetos – em grande parte por causa dela.

            Assim que se alistou e ingressou na ordem, Abigail foi informada de suas responsabilidades, afazeres e, mais especificamente, de suas capacidades. Esse último fator contribuiria decisivamente para seu sucesso acadêmico e fracasso social nos dois anos de treinamento que passou em Zuria. O fato era que, diferente de todos os outros novatos, além dos veteranos não formados, ela era a única capaz de manifestar o Dom.

            O Dom, também chamado de teurgia, segundo aprendeu logo em seguida, era uma das formas mais poderosas de manifestação divina em um mortal. Através dele, os ordenados eram capazes de fazer coisas assombrosas, e ele se manifestava de formas diferentes em cada pessoa. Apesar disso, nem todos os ordenados o manifestavam, e definitivamente, nenhum deles em fase de treinamento.

            Ser capaz de um dom fazia com que Abigail se destacasse entre todos os escudeiros, novatos e veteranos. Evidentemente, ela não era do tipo que se gabasse, mas ainda assim, alguns mestres não escondiam seu desejo em tê-la sob tutoria.

            A hierarquia militar agnumiana funcionava de forma organizada e bem definida. Quando ingressava na ordem, cada novato precisava escolher um Mestre, que lhe ensinaria sua espacialização durante dois anos. Se o Mestre o aceitasse, o novato passaria a ser seu escudeiro, e lhe devia respeito e obediência. Passados os dois anos, o jovem precisaria escolher um segundo Mestre, deixando o primeiro e se discipulando com o segundo, por mais dois anos. Uma vez que o treinamento acabasse, ele se formaria, e deixaria de se categorizar escudeiro, para assumir a alcunha de ordenado. Como ordenado, ele poderia seguir o serviço regular, ou continuar treinando com um dos Mestres com quem se especializara, para no fim dessa segunda etapa, se fosse considerado suficientemente capaz, ser também consagrado a Mestre – adquirindo, entre outros privilégios, o de contrair escudeiros. A partir daí, o Mestre poderia batalhar algum tempo e atenção de um Guardião – o segundo posto mais alto na cadeia de comando. Apenas um mestre que tenha sido treinado por um Guardião pode discipular ordenados já formados. Normalmente, antes de morrer ou deixar o serviço, um Guardião escolhe, entre os mestres que discipulou, aquele que ocupará seu lugar. Acima do Guardião está o Ancião – a maior autoridade dentro de uma ordem. E na Ordem dos Égides, o Ancião era uma mulher chamada Asisa.

            Apesar de ser a Anciã, Asisa demonstrara, desde o começo, um notório interesse em Abigail – o que era incomum, uma vez que tinha sob sua supervisão quase mil e duzentos ordenados espalhados por todo o território agnumiano, e dificilmente teria condições de dedicar atenção a um novato. Ainda assim, nas poucas vezes em que as duas travaram contato, o comportamento dela sempre fora formal e indiferente.

            Por essa razão, Abigail demorou a entender o comportamento de alguns veteranos – em especial o de uma garota chamada Angele.  

            Tudo começou muito devagar, sem que ela se desse conta. Aparentemente, era comum que os veteranos aborrecessem os novatos, que por sua vez aborreceriam os novatos do ano seguinte, e assim sucessivamente. Brincadeiras maldosas, xingamentos esdrúxulos, e um ou outro encontrão no corredor faziam parte da rotina existente entre os veteranos, que faziam questão de mostrar sua superioridade, e os novatos, que em geral tentavam passar despercebidos e não questionavam a ordem natural das coisas. Por ser uma menina, os garotos maiores pegavam leve com Abigail, mas Beni não tinha tanta sorte, estômago, e principalmente bom senso, para ficar no seu lugar e esperar as coisas mudarem a seu tempo. Normalmente, ele partia para cima dos garotos maiores (e geralmente treinados em combate) ao menor sinal de provocação, e quase sempre apanhava feio. Quando Abigail o via nessas condições, costumava interferir, e em geral, os veteranos paravam de surrá-lo, depois de provocá-la e perceber que ela não se irritava com a mesma facilidade.

            O momento em que tudo mudou, porém, aconteceu no meio do primeiro ano de treinamento. Abigail voltava para o alojamento depois do jantar quando viu Beni apanhando de um garoto bem maior. Como de costume, aproximou-se para ver do que se tratava o problema, se enfiando no meio do punhado de adolescentes que rodeavam a confusão.

             – Pare com isso! – Ela havia dito, se voltando contra o garoto maior. Beni estava levantando do chão para tomar outro soco. Tinha o rosto cheio de manchas roxas, algumas de brigas anteriores.

            – Não se meta, Abigail. – Ele dissera, as palavras saindo fofas da boca inchada.

            – É, Abigail, não se meta. – O rapaz que batia dizia, em deboche. – Deixe o sangue-quente mostrar o que pode fazer.

            Ignorando os protestos de Beni e as provocações dos demais, Abigail fez o de costume: puxou o amigo por um dos braços e começou a abrir caminho no meio dos jovens ao redor.

            – Salvo pela namoradinha, hein Beni? – O rapaz provocava. Beni se agitava e Abigail continuava a puxá-lo para fora da confusão. – Vem aqui, lutar como um homem! Aposto que é você quem pendura as roupas no varal enquanto ela sai atrás do jantar.

            Os outros garotos e garotas na roda gargalhavam. Mas foi quando Beni balbuciou de volta alguma coisa que terminava em “...sua mãe” que as coisas ficaram realmente sérias. O rapaz veio com tudo para cima dos dois, de punho erguido, e só parou porque Abigail se colocou entre ele e Beni. Com o olhar duro e firme, ela disse:

            – Vai me bater?

            O rapaz hesitou. Mesmo para os padrões calhordas dos veteranos, bater em uma menina era feio.

            – Solte ele. – O rapaz disse, sibilando de raiva. Mas Abigail percebeu que ele não ia agredi-la fisicamente, e agradeceu aos céus por isso internamente. Beni parecia assustado ante a possibilidade de ela apanhar por sua causa, de forma que não disse mais nada. Então ela simplesmente virou-se, e certificando-se de que ainda bloqueava o acesso a Beni com as costas, continuou a empurrar o amigo para fora da rodinha.

            Até que uma mão a segurou com força e a fez virar-se. Por um instante Abigail temeu que a paciência do rapaz houvesse se esgotado, até perceber que quem a puxara era uma garota.

            – Marcus mandou você soltá-lo. – A garota disse, com os olhos transbordando ameaça.

            – Só porque você faz tudo o que ele manda como uma cadelinha não quer dizer que uma garota que se respeite vá fazer o mesmo.

            Até aquele momento, Abigail não tinha percebido que havia acumulado tanta raiva até escutar a própria boca dizer aquelas coisas. E não pôde pensar muito tempo no assunto – o punho fechado da outra garota acertou-lhe bem no meio do nariz. Ela cambaleou para trás, zonza do impacto, mas não caiu. A outra garota lhe atingiu de novo, na boca, e dessa vez ela sangrou, mas não caiu. O terceiro soco a atingiu no estômago, e além de doer a fez se dobrar sobre a barriga. Mas ela continuava erguida, os pés firmes plantados no chão. Quando Beni foi interferir, dois garotos maiores o impediram – aquela era uma briga de meninas.

            A outra garota deveria ter catorze ou quinze anos, e era mais alta e mais forte.  Ainda assim, ela não conseguiu fazê-la cair. Ela socou, chutou e empurrou, e por mais que cambaleasse e não revidasse, Abigail não caía. A situação, antes divertida para os demais, estava começando a ficar tensa.

            – Não consegue fazê-la sentir nada? – Alguém perguntou, jogando lenha na fogueira. – Desista, Angele. – Outro dizia.

            A garota, que se chamava Angele, enfureceu-se e atirou-se com tudo em cima de Abigail, que finalmente caiu de costas. No chão ela socou cada parte do corpo de Abigail que seus punhos cerrados conseguissem alcançar, com tanta brutalidade que mesmo os veteranos mais insensíveis começaram a se constranger. Somente quando os punhos machucados começaram a doer de verdade ela se levantou, ofegante.

            Do chão, Abigail mal conseguia diferenciar sangue e saliva dentro da boca. Nunca havia apanhado daquele jeito, e além da dor pelo corpo todo, havia a vergonha e a humilhação de uma surra pública. Mas também havia a raiva. Pensava que, se deixasse tudo como estava, passaria os próximos três anos e meio com medo de Angele. Imaginou-se se esgueirando pelos corredores, evitando-a a todo custo, como um rato. Pensou em Beni, e o quanto o achava imbecil por continuar levantando todas as vezes que caía no chão, até alguém vir salvá-lo. Só ali, no mesmo lugar que o amigo e com a cara em frangalhos, percebia que, se revidar era inútil, já que era péssima em bater, a única solução era lutar até o último instante para não dar o braço a torcer.

            Aliás, o que era um soco a mais ou a menos, comparado à mensagem que passaria se resistisse mais um pouco? Aquilo não era um combate mortal, era só uma briga de escola. Angele não ia matá-la. Se conseguisse voltar a ficar em pé, nem que fosse só mais uma vez, mostraria para todos os novatos que resistir aos abusos dos veteranos era possível. Não precisava vencer a briga. Só precisava se erguer mais uma vez. Movida por um calor estranho, no fundo do peito, em nada relacionado à raiva que a fez provocar Angele, começou seu penoso caminho para longe do chão. Sentia-se diferente. Também percebeu que toda a dor a havia abandonado.

            Quando finalmente levantou, trôpega, todos ficaram assustados. Angele deu meia volta, pisando forte, mas quando se aproximou o suficiente, hesitou a dois passos de distância.

            – Eu ainda estou em pé, Angele. – Abigail disse, mal sentindo a boca ao falar. Mas ainda assim, todos pareceram entender. – E vou continuar levantando, ainda que você e eu fiquemos aqui a noite toda.

Angele expressava algo entre o receio e o medo. Parecia irritada, mas incapaz de avançar além daquilo. Os outros adolescentes também pararam, e a olhavam espantados. Mesmo Beni parecia receoso de se aproximar.

            Abigail já ia perguntar o que havia de errado quando três ordenados passaram por aquele local e os jovens rapidamente se dispersaram – a maioria parecendo aliviada em poder sair dali. Ela ainda se certificou de que apenas Beni e os três homens estavam presentes quando finalmente rendeu-se ao cansaço, desabando em seguida e perdendo os sentidos.

            Quando acordou no dia seguinte, na enfermaria, Beni lhe explicou porque Angele e os outros ficaram tão surpresos – ela havia feito de novo. Assim como no final do exame para a Ordem dos Égides, seus olhos haviam emanado o brilho dourado. Os veteranos estavam com medo do que ela pudesse fazer contra eles.

            Naturalmente, a notícia da novata que havia manifestado um dom contra uma veterana se espalhou como fogo em palha, ganhado novos detalhes cada vez que alguém contava. Quando saiu da enfermaria, Abigail foi saudada pelos outros novatos como uma espécie de salvadora, e rapidamente vários deles começavam a acompanhá-la onde quer que fosse – apesar de sempre parecerem receosos em incomodá-la, por medo de que ela os atacasse. Apesar de ser incômodo andar por aí rodeada de gente, os veteranos pararam de perturbá-la, a Beni, e a qualquer um que estivesse perto dela. Pelo menos quase todos.

            Depois de algumas semanas se recuperando do susto, Angele voltou a incomodá-la. Apesar de nunca mais ter tentado agredi-la fisicamente, era evidente que as coisas haviam se tornado pessoais. Ela não perdia uma oportunidade de tentar prejudicar, humilhar ou dificultar a vida de Abigail – que só queria seguir sua vida e terminar o treinamento sem distrações. Quando Angele percebeu que ela não se abalava facilmente, passou a incomodar as meninas que a acompanhavam.

            Abigail descobriria mais tarde que Angele era escudeira de uma Mestre chamada Verona, que era por sua vez discípula de Hadar, o Guardião dos Aríetes, e até então o provável substituto de Asisa, no caso da morte ou abdicação da Anciã. A questão era que o interesse da Anciã em Abigail gerava preocupação e ciúmes em Verona, que acabava por influenciar seus escudeiros.

            A segunda vez que Abigail manifestou o dom diante de colegas aconteceu quando ela foi à defesa de uma menina que estava sendo perturbada pelo simples fato de acompanhá-la. Dessa vez, Angele nem mesmo precisou encostar nela. As duas começaram a discutir em voz alta, e no meio do bate-boca os olhos de Abigail voltaram a reluzir. Mas dessa vez quem as interrompeu não foram três ordenados que passavam ali desavisadamente. A discussão foi interrompida pela voz cortante e assertiva de Asisa:

            – Já basta. – Ela havia dito, ao que as duas imediatamente se calaram. – Abigail, quero você no meu gabinete agora. Angele, sua mestra a aguarda na sala dela.

            Quase era possível ver a fumaça saindo pelas orelhas de Abigail quando ela dirigiu-se à sala da Anciã, com os olhos já retomando a normalidade. Apesar de temer ser punida por causa dos boatos, a raiva que sentia da situação era maior.

            Quando chegou ao gabinete, mais alguém já a aguardava lá. Era seu mestre.

            Jetro tinha trinta e poucos anos, cabelos crespos, pele escura e dentes alvíssimos. Era um homem musculoso, magro e extremamente flexível. Abigail o escolhera como mestre devido à especialização que ensinava: resgate, salvamento e controle de catástrofes. Com ele, havia aprendido a mergulhar, a escalar, a resgatar pessoas em todo tipo de terreno e a proteger pequenos e grandes grupos de acidentes naturais. Em suma, todas as disciplinas necessárias para concorrer a uma vaga na Divisão de Resgates Arriscados, um grupo na Ordem dos Égides especializado em salvamentos difíceis – que, aliás, fora fundado com a ajuda de seu pai.

            Antes que Abigail pudesse perguntar a seu mentor o que fazia na sala da Anciã, Asisa se dirigiu a Jetro:

            – Jetro, preciso que encontre um espaço em sua rotina para dar atenção especial à Abigail.

            – Há algum problema? – Ele perguntou, parecendo intrigado.

            – Não, mas em breve haverá se as coisas seguirem como estão. – Foi a resposta. – Abigail consegue manifestar o Dom, mas não é capaz de operá-lo. Não temos certeza do que ela pode fazer, nem que risco pode oferecer aos demais, portanto, quero que a ensine.

            – Senhora... – Jetro argumentou – ...imagino que esteja ciente da violação...

            – Evidente que estou, Jetro. – Ela o cortou. – Se não estivesse, não seria eu a mandá-lo ensiná-la. Ensine-a, se achar que pode. Deixe o resto comigo.

            E então se voltou para Abigail:

            – Você está usando sua condição incomum para intimidar os colegas, Abigail?

            – Não, senhora. – Ela respondeu, prestamente. O pouco contato que tinha com Asisa já evidenciara que aquela era uma mulher que valorizava respostas rápidas e curtas.

            – Tem interesse em controlar sua condição? – Asisa tornou a perguntar.

            – Sim, senhora.

            – Então está tudo acertado. – Asisa disse, por fim. Depois, voltou-se para Jetro: – você e ela devem encontrar um horário e um método. Se surgirem quaisquer outros problemas, sintam-se livres para me procurar.

            E os mandou sair.

            Desse dia em diante, Abigail ficava três horas, depois de jantar, aprendendo sobre o Dom com seu mestre, que também o operava. Jetro a explicou que o Dom não era uma força inerente ao conjurador – como seriam o mentalismo e o elementalismo. O Dom, segundo suas palavras, funcionava como uma concessão divina, e portanto não estava limitado ao escopo de habilidades de quem o manifestava. Era uma força incontrolável de natureza ilimitada.

            Jetro também a explicou que, para operar um dom, o conjurador precisava primeiro limitá-lo, já que era impossível manejar uma força infinita usando meios finitos. Aquela era a parte mais importante do treinamento – aprender como “separar” uma parte da força divina infinita para poder manipulá-la e assim aplicá-la a um objetivo. Diferentes teurgos utilizavam métodos variados para chegar ao mesmo objetivo – mas a forma que Jetro conhecia era considerada a mais eficiente.

            Tendo explicado à Abigail os princípios envolvidos, ele a ensinou a fazer um voto.

            – Achei que ia ter de te esperar dormindo. – Beni disse enquanto oferecia a mão, de pé no topo do paredão.

            – Eu só estava três pedras atrás de você.

            Ela o permitiu ajudá-la a subir o último metro e meio, e quando os dois estavam já com os pés no chão, tornaram a seguir o caminho.

            Andaram ainda por algumas horas, às vezes seguindo as orientações que as placas e as lamparinas mostravam, mas também tomando atalhos e desvios oportunamente. Havia um caminho oficial, demarcado e iluminado, o qual dispunha inclusive um pequeno posto avançado, onde a guarda acolhia viajantes que porventura se perdessem pelos túneis. Mas Abigail conhecia bem aquelas passagens, e seguindo por cavernas paralelas era capaz de reduzir à metade o tempo de travessia. Às vezes se divertia perturbando Beni, ao deixá-lo para trás e ficar escondida, observando-o perambular sem saber exatamente para onde ia.

            O sol já estava se pondo quando os dois saíram da caverna, e o caminho dali à Neemya levava pouco mais que meia hora.

            A cidade havia mudado desde que Abigail havia voltado a visitá-la periodicamente. Apesar das mesmas ruas sem calçamento, as mesmas casas precisando de pintura e a mesma estrada vazia de viajantes, havia movimento agora. As pessoas mais velhas costumavam destacar a diferença entre a Neemya de agora e a de quatro anos atrás. Ela estava crescendo.

            A Casa das Viúvas tinha finalmente encontrado um equilíbrio. Desde que Aminadave e Aryah haviam passado por lá e as ajudado a comprar alguns animais, abrir uma pequena linha de crédito com a guilda de mercadores e uma barraca de produtos caseiros em Migdala, as viúvas estavam fazendo de tudo um pouco para se virarem – e iam muito bem. Vendendo os bolos, o leite, o queijo e a renda que faziam na casa, puderam comprar mais animais e reformar o lugar. Até o comércio morno da cidade aqueceu um pouco – logo as viúvas não eram suficientes para dar conta do trabalho, e assim alguns empregados foram contratados. Mais gente trabalhando significava mais gente comprando, e por consequência, mais movimento nos estabelecimentos. Logo, outras pessoas começaram a fazer o mesmo que as viúvas: colocar produtos em carroças e dirigirem-se à Migdala. Talvez porque ninguém antes havia tentado vencer a distância entre as duas cidades, todos achassem inviável. Mas não era. As viúvas abriram um precedente e a cidade as seguiu. Logo, as carroças partiam em comboio – dez ou doze de cada vez, para intimidar salteadores. Alguns comerciantes que tinham dificuldade de vender em Tsione começaram a frequentar a cidade, e a troca de serviços e produtos favoreceu uma maior variedade no comércio.

            Mas foi quando Abigail precisou ser transferida em função de seu treinamento como médica que tudo ficou realmente diferente. Depois de dois anos em Zuria, seu treinamento com Jetro havia acabado, e sua nova mentora a esperava em Migdala. Para Abigail foi como um sonho – depois de dois anos se comunicando com a mãe e as viúvas através de cartas, poderia visitá-las com muito mais frequência.

            Como estava fazendo naquele dia.

            Os dois atravessaram parte da cidade, sendo saudados por praticamente todos que os viam. As pessoas se referiam a eles como os “ordenados de Neemya”. Entre apertos de mão, abraços, e moças agitando os lenços nas janelas para chamar a atenção de Beni, às quais ele retribuía com gracejos desajeitados, conseguiram finalmente chegar em casa.

            Abigail bateu à porta, e quem abriu foi uma menina que se atirou em seus braços assim que a viu.

            Rosalina tinha dez anos, e era órfã dos dois pais. Chegou à casa com pouco mais que quatro, e dividia o quarto com Abigail e sua mãe, Gilana, que a criava como faria a uma filha.

            – É Abigail, mamãe! – Ela gritou, de onde estava, em direção à porta da cozinha.

            – E Beni! – Beni gritou também, para deixar claro que Rosalina havia esquecido alguém.

            Rosalina largou Abigail e abraçou Beni, que a ergueu do chão ao som de gargalhadas.

            Logo as ocupantes da casa saíram todas da cozinha – que havia sido ampliada, para conter o forno dos bolos e uma mesa maior onde elas os preparavam. Uma a uma as senhoras – a mais nova tinha pouco mais de trinta, e a mais velha sequer lembrava a própria idade – saíram, a cumprimentaram e abraçaram, assim como a Beni. Junto delas, seis garotas e dois garotos, que tinham entre seis e treze, também foram cumprimentá-los. Por fim, o único homem que morava na casa veio até ela e beijou-lhe a testa, fazendo depois o mesmo a Beni. Ele carregava um bebê no colo.

            No começo, Abigail detestou a notícia de que sua mãe se casaria. Ela havia lhe contado por carta, cerca de dois meses antes da transferência para Migdala. Pelo que a carta dizia, o casamento havia sido marcado de forma a coincidir com sua chegada, para que assim ela pudesse participar também. Durante semanas, Abigail pensou em como argumentaria que era uma ideia ruim. Diria que a casa das viúvas estava bem só com elas, que ela morava com várias mulheres solteiras, e que não ficaria bem ter um homem morando junto a elas. Ela rascunhou diversas cartas, explicando ponto a ponto todos os motivos para que a mãe desistisse da ideia.

            Mas acabou por não enviar a carta, porque ela sabia que todas aquelas objeções tinham uma razão muito mais simples. Ela estava com ciúmes.

Não sabia dizer se eram ciúmes pelo seu pai ou por ela própria. Ou os dois, afinal. Nos meses que se seguiram à notícia, ela lutou com toda a determinação para resistir ao impulso de m****r uma carta malcriada. Mesmo seu desempenho nos treinos piorou um pouco, e sua paciência mais curta rendeu novos bate-bocas com Angele. Mas devagar, ela foi aprendendo a lidar com a ideia. Aliás, sempre imaginou que isso aconteceria um dia – quando seu pai falecera, sua mãe era jovem. Levando em consideração algumas viúvas que conhecia, ela até havia esperado muito – estava só já tinha dez anos.

            Por fim, em sua primeira visita à casa depois de dois anos fora, ela conheceu o padrasto. Ele era um homem alto, magro, razoavelmente bonito e muito bem-humorado. Sua mãe lhe contara que o havia conhecido em Migdala, e que ele era um alfaiate muito habilidoso. Era viúvo – havia perdido a mulher por culpa de uma doença respiratória, e tinha um filho mais velho que Abigail, que servia ao exército.

            A maior qualidade que Abigail viu nele, no entanto, foi o bom senso. Ele não tentou forçar mais intimidade que o necessário, e em momento algum pareceu interessado em substituir seu pai – de quem falava com naturalidade, aliás, quando o assunto porventura surgia em uma conversa. O único mimo que lhe fizera foi um vestido, muito bonito aliás, e isso dizia a Abigail que ele não iria tentar conquistá-la através de presentes, como faria a uma criança. Além disso, todas as viúvas pareciam gostar muito dele, e ele parecia respeitá-las.

            – Onde está a mamãe, Elron? – Abigail perguntou ao padrasto.

            – Foi resolver uma pequena emergência na casa de Magda. – Ele respondeu, aninhando o bebê. Depois o estendeu para ela. – Alguém aqui estava morrendo de saudades.

            Abigail segurou seu meio-irmão e o ergueu à altura do rosto, fazendo caretas enquanto ele gargalhava. Depois de devolvê-lo ao pai, seguiu preguntando:

            – Que tipo de emergência?

            – Ora, o mesmo tipo de emergência que a acomete uma vez por ano ultimamente. – Disse Maria, a mais velha das viúvas presentes. – Aquela mulher é um coelho, estou dizendo. Não para de colocar filhos no mundo. Logo os terá em maior quantidade que porcos no curral.

            – Falando em filhos, – Anete perguntou – quando teremos o seu engatinhando por aqui, Abigail?

            – Não acha que está trocando um pouco a ordem das coisas? – Abigail perguntou, se dirigindo a ela. – Antes do bebê, eu precisaria...

            – Se casar, claro! – Jerusa completou. – E é disso que estamos falando. Já faz um ano que você pode aceitar propostas de casamento. Não é possível que em uma cidade grande como Migdala você não tenha encontrado um rapaz que te agrade.

            – Não se preocupem. – Ela respondeu, se dirigindo a todas. – Se eu encontrar um bom rapaz vocês serão as primeiras a saber.

            – Ora, e Beni? – Anete perguntou. – Vocês se conhecem desde pequenos. Com certeza...

            –...o Beni tem pretendidas bem melhores que eu entre as dezenas de mocinhas bonitas que andam agitando lencinhos para ele. – Abigail cortou a conversa. Beni brincava com os outros meninos e pareceu não ouvir do que falavam. Ainda bem. Aquele era um assunto delicado.

            Como era natural que acontecesse, Abigail recebera algumas propostas de casamento nos últimos quatro anos. No começo ela as recusava de imediato, mas à medida que crescia, foi permitindo a alguns dos rapazes que lhe pareciam mais interessantes alguma aproximação. Conversou com alguns deles, conheceu suas pretensões, e em dois casos chegou mesmo a se sentir envolvida. Mas, no fim das contas, sempre havia algo que a impedia de firmar um compromisso. Eles eram em geral gentis e atenciosos, alguns, inclusive, muito bonitos, mas ainda lhe pareciam demasiadamente jovens para que ela sentisse segurança em ser desposada por um deles. Eles não estavam prontos. E ela também não se sentia pronta.

            Durante todos esses anos, Beni a acompanhara em todo o percurso. Ele também havia cortejado algumas moças em Migdala, mas era em Neemya que fazia verdadeiro sucesso – quando estava na cidade, era comum o prefeito convidá-lo para jantar em companhia de sua esposa e filha, uma mocinha delicada de catorze anos.

            Um dos dois segredos que nem ele e nem ela haviam contado a ninguém era o fato deles já terem, em um passado recente, cogitado a possibilidade de se casarem. Pouco depois que Abigail completara dezesseis anos, Beni a pediu em casamento, e apesar de estranhar muito, ela aceitou que ele a cortejasse. Por alguns meses, ele se esforçou em mostrar a ela que a conhecia melhor que qualquer pretendente, e por isso era ideal que se casassem. Abigail também fez o possível para vê-lo não como um irmão, ainda que de criação, mas como um homem com quem poderia se casar. Mesmo quando, em uma última tentativa de mudar o relacionamento entre eles, ela lhe cedeu a liberdade de acariciá-la e beijá-la, (algo que negara a todos os pretendentes anteriores) imaginando que talvez um pouco de contato físico fosse a solução para o problema, nada mudou. Ela simplesmente não conseguia se imaginar casada com ele. O amava, mas como a um irmão. Não como um futuro marido.

            O rompimento foi doloroso – especialmente porque ele, atipicamente, não demonstrou qualquer resistência quando ela lhe disse que não daria certo, apesar de visivelmente estar decepcionado. Levou algumas semanas até que os dois conseguissem conversar de novo, e foi com um alívio imenso que ela o viu voltar a cortejar outra moça, meses depois. Mas havia algo estranho – um constrangimento entre os dois. Abigail não sabia se ele ainda a desejava como esposa, e obviamente não tinha coragem de perguntar. O fato é que, desde o rompimento, ele cortejara algumas moças, porém sem firmar compromisso com nenhuma. E ela decidiu parar de receber pretendentes, pelo menos por um tempo.

            – Aliás – Abigail continuou – eu vou à casa de Magda. Se haverá um parto, talvez a mamãe precise de ajuda. – Você vem, Beni?

            – Não, eu dispenso. – Ele respondeu.

            Abigail deu sua bolsa à Rosalina, que a carregou correndo escada acima, e depois tornou a sair de casa.

            Enquanto seguia pela rua, pensava no quanto Beni realmente odiava partos e cirurgias. Ele havia sido treinado em combate, como sua disciplina primária, e em técnicas de resiliência – física, mental, emocional, como sua segunda disciplina. Lutando, ele era inquebrável. Tolerava uma quantidade absurda de castigo físico, mas se uma moça por perto machucasse o tornozelo subindo uma escada, ele desmoronava. Seu antigo mestre costumava dizer que ele seria um combatente incomparável se não tivesse que machucar o adversário.

            Abigail, por outro lado, havia se tornado médica, como segunda disciplina. Diferente de Beni, ela tinha muito sangue-frio para lidar com ferimentos alheios, e apesar de ser uma socorrista atenciosa e gentil, não se deixava abalar por um pouco de sangue.

            Quando chegou à casa de Magda, havia um pequeno agrupamento de mocinhas tensas do lado de fora. Abigail as cumprimentou e entrou na casa, sem bater na porta.

            Dentro, um corre-corre de mulheres indo e vindo da sala para o quarto: uma acalentava os outros filhos, mantendo-os calmos, outras duas cuidavam de manter a água das bacias aquecidas, e uma delas se encarregava de manter as meninas ansiosas da vizinhança do lado de fora. O único homem na sala era o marido de Magda, que estava sentado em uma cadeira com uma expressão amarelada de nervosismo no rosto.

            – Onde está Magda? – Abigail perguntou a uma das mulheres.

            – No quarto, com sua mãe e Zita. Estão lá desde a hora do almoço.

            Abigail lavou o rosto e as mãos, arregaçou as mangas do vestido e se dirigiu ao quarto.

            Quando entrou, Magda estava encostada à cabeceira da cama, completamente despida e muito suada, parecendo exausta. Sua mãe massageava a barriga enorme, preocupada.

            Abigail se aproximou.

            – Está tendo algum problema, mamãe? – Abigail falou baixinho.

            – Ele já teve três filhos. – Sua mãe respondeu. – Esse deveria sair andando. Mas não dá sinal de que vá sair, e já faz quase metade do dia que estamos aqui. Magda está exausta.

            – Certo. – Abigail respondeu. – Eu assumo agora.

            Enquanto realizava os procedimentos, Abigail repassava mentalmente tudo o que sabia sobre partos. Ao todo havia realizado dez deles, quatro acompanhada de perto por sua mestra, antes de poder começar a fazê-los por conta própria.

            Apesar de ter aprendido tudo sobre procedimentos de resgate durante os dois primeiros anos de sua formação em Zuria, foi em Migdala que Abigail encontrou sua verdadeira vocação. Tratar de pessoas era algo que lhe dava imenso prazer, e além disso ela era muito competente. O hospital da Ordem dos Canais, onde sua mestra servia, lhe fornecera a melhor coleção de livros e equipamentos disponíveis para a prática do ofício. Mas ainda que fosse muito habilidosae no trato de enfermos, a razão pela qual se tornou a escudeira mais procurada para tratar de ferimentos e doenças foi outra.

            – Eu já identifiquei o problema. – Abigail disse à mãe, depois de concluir a verificação tátil. – O bebê está invertido.

            – Isso é muito ruim? – Perguntou a mãe.

            – Seria melhor se estivéssemos em um hospital. – Abigail respondeu. – Eu poderia abrir a barriga e tirá-lo. Mas não temos as condições ideais aqui, e tirá-lo na posição em que está pode ser perigoso. Tenho uma ideia melhor.

            Abigail então se dirigiu à mulher que as acompanhava e a pediu que fosse à sua casa e lhe trouxesse um frasco de óleo perfumado. Mesmo sem entender no que um cosmético ajudaria a realizar o parto, ela obedeceu sem questionar. Enquanto a mulher ia, Abigail examinou o pulso de Magda, e percebeu que ela estava muito debilitada.

            – Ela foi anestesiada de alguma forma? – Abigail perguntou.

            – Nós demos um pouco daquele chá que me ensinou a fazer. Ela reclamou de muita dor.

            Não era uma boa notícia. O que Abigail ia tentar exigia que a mãe estivesse totalmente consciente para lhe alertar caso sentisse dores agudas durante o procedimento, o que indicaria excesso de força ou pressão, e isso a ajudaria a corrigir-se. No entanto, Magda estava sob efeito de tranquilizantes.

            Abigail suspirou. Precisaria recorrer a outros métodos se quisesse monitorar a mãe durante o procedimento, por mais desagradáveis que eles fossem.

            Uma das grandes razões pelas quais Abigail se tornara tão eficiente como aprendiz de médica era o fato de ser muito habilidosa no uso do Dom. Desde que começara a aprender como controlá-lo, ainda em Zuria, sua capacidade de operá-lo aumentou significativamente.

            Jetro a havia ensinado que, entre outras formas, um dom podia ser conjurado através da consagração de um voto. Um voto era basicamente uma obrigação, ou restrição, pela qual o teurgo voluntariamente aceitava passar. Era um tipo de sacrifício, que tinha como objetivo conquistar apoio divino para seus objetivos pessoais. Cada manifestação do Dom tinha votos específicos, e quanto mais diligentemente o teurgo os cumprisse, mais poderosos eram seus efeitos. Havia toda uma dimensão mística ao redor do funcionamento do Dom, da qual Abigail conhecia bem pouco, mas ao menos no que dizia respeito aos resultados, ela se saía muito bem.

            Abigail havia aprendido a entender a primeira Manifestação de seu Dom ao perceber que ele vinha à tona sempre que ela se arriscava partindo em defesa de alguém. Fora assim anos atrás, quanto prestava o exame para a Ordem dos Égides, fora assim quando ela se interpôs entre Marcus e Beni, e fora assim quando ela tentou defender uma menina que a acompanhava. Depois de muito treinamento e estudo, ela conseguiu compreender seus efeitos: enquanto estivesse determinada a defender alguém ou algum objetivo evidentemente justo, seu corpo seria capaz de tolerar castigos muito superiores às suas condições naturais. Em Migdala, descobriu que seu dom tinha um nome. Entre os estudiosos, ele era chamado de O Caminho dos Cravos, e o voto ligado a ele era óbvio – ele só se manifestaria quando ela arriscasse a própria segurança em defesa dos outros.

            Ainda em Migdala, através do treinamento como médica, aprendeu a manifestar um segundo dom, esse sim sua especialidade. Chamava-se O toque de piedade. Seu funcionamento era simples, e barbaramente poderoso. Abigail era capaz de curar ferimentos e doenças com o toque das mãos, desde que o enfermo ou ferido ainda estivesse vivo e que ela soubesse a origem do problema. O voto que fez para manifestá-lo era igualmente simples, porém perigosíssimo: ela jamais deveria recusar-se a curar alguém que lhe procurasse, ainda que isso ameaçasse sua vida.

            Porém, algo a incomodava: havia uma limitação. Nem sempre ela era capaz de saber a origem das enfermidades. O toque exigia uma prece curta, antes da imposição de mãos, na qual ela precisava explicitar exatamente o que estava pretendendo curar no paciente. Pensando nisso, ela desenvolveu uma perigosa (e controversa) forma de mentalismo da mente: o compartilhamento sensorial.

            Com muito treino e concentração extrema, Abigail se tornou capaz de compartilhar sensações físicas com outras pessoas. Frio, calor, fome, dor, prazer, sono, tudo o que afligia o paciente, ela também sentia. Bastava tocá-lo, sincronizar sua respiração com a dele, e então se concentrar. Quanto mais bem sucedido fosse o compartilhamento, mais intensa era a ligação.

            Evidentemente, esse método de detecção aliado aos conhecimentos que ela já tinha em medicina tornavam os diagnósticos extremamente precisos. E uma vez que ela sabia onde e como doía, saber porque era facílimo. O problema era que enquanto estava se concentrando na dor do paciente, ela também sofria. Se não fosse muito cuidadosa, a dor compartilhada podia atrapalhar seu raciocínio, e um erro podia acabar matando o enfermo. Por isso ela só usava essa habilidade em casos muito especiais – quando o paciente era incapaz de dizer onde doía, e preferencialmente quando havia mais alguém por perto para assumi-lo no caso dela perder o controle.

            A outra mulher voltou ao quarto, trazendo consigo o frasco de óleo aromático. Abigail respirou fundo. Estava na hora.

            – Mamãe, – ela disse, destampando o frasco e besuntando as próprias mãos, assim como a barriga de Magda – eu vou virar o bebê. E vou precisar da sua ajuda. Magda não está em condições de falar ou de dar atenção ao que estou dizendo, ela está muito cansada, e anestesiada. A senhora vai segurar as pernas e o quadril dela na posição que eu vou mostrar, e deve mantê-la assim até que eu termine.

            A mãe aquiesceu. Abigail mostrou a ela como deveria segurar Magda. Depois, se voltou para a outra mulher no quarto.

            – Eu provavelmente vou sentir dor. Quero que fique atrás de mim, e me segure caso veja que estou prestes a cair. É muito importante. Você entendeu?

            A mulher confirmou, apesar de parecer confusa. Abigail então pousou uma das mãos sobre o ventre de Magda, e pousou a outra sobre o peito dela.

            Concentrou-se. Sentiu a respiração. Esvaziou a mente.

            Ela respirava devagar, apesar das contrações no ventre. Abigail tentou acompanhar o ritmo da respiração. Inspire. Expire. Inspire.

            Uma pontada de dor. Foi aumentando. Depois, o enjôo. Sentiu-se pesada. As costas também doíam. E a cabeça. A dor aumentou ainda mais. Era como se alguma coisa dura estivesse expandindo e contraindo, abaixo de seu umbigo, e machucando muito os quadris e as costelas a cada nova pulsação. O coração estava acelerado. A respiração estava irregular. Céus, como estava doendo! Será que tinham mesmo dado analgésicos a ela?

            Então sentiu. Identificou alguma coisa, um volume, que se mexia em seu interior. Se esforçou para ignorar a dor, e se concentrar no volume que se debatia, devagar. Abriu os olhos.

            Havia encontrado.

            Abigail começou a massagear a barriga de Magda, fazendo movimentos circulares. Se tudo saísse como deveria, em poucos minutos o bebê estaria na posição correta. Enquanto suas mãos deslizavam por causa do óleo, sua mãe segurava a grávida na posição correta, e a outra mulher seguia atenta e nervosa. Por mais que fosse difícil trabalhar de pé enquanto sentia um volume pulsando dolorosamente em seu abdômen, o mais complicado no processo era conseguir entender as dores para poder separar quais delas eram decorrentes das contrações e quais delas apontavam erros de procedimento.

            Na primeira vez que Abigail tentou usar o compartilhamento sensorial em um parto, a dor que sentiu foi tão intensa que ela desabou do lado da cama, tendo de ser carregada para fora da sala. Sua mestra lhe dissera, depois, que mesmo os mentalistas mais cuidadosos evitavam o compartilhamento, e entre os que o praticavam, menos ainda se atreviam a aplicá-lo a certas situações, como partos ou amputações. No entanto, Abigail insistiu, e com o tempo aprendeu a medir e controlar a intensidade da conexão, podendo assim decidir o quanto de dor ela compartilharia com o paciente.

            No caso de Magda, os anestésicos que ela tinha ingerido exigiam uma conexão mais profunda. Ela seguia massageando, manipulando o bebê dentro da barriga enquanto seu coração acelerado e sua respiração ofegante se mantinham no mesmo ritmo da gestante. Mais um pouco. Suas pernas estavam bambas. Estava suando, e agora que a conexão atingira seu limite, a sensação de torpor começava a prejudicar sua atenção.

            – Agulha. – Ela pediu à mulher encarregada de vigiá-la. A mulher se afastou rapidamente, e depois de remexer em uma gaveta, trouxe uma agulha de costura. Abigail seguiu instruindo. – Espete com um pouco de força. Não, não a Magda! – Ela se apressou, vendo que a coitada, nervosa, se preparava para furar a barriga da grávida. – Em mim, espete em mim. No ombro.

            A pressão da agulha e a dor aguda no ombro direito diminuiu a sonolência. Quando se sentiu desperta, pediu para a mulher parar de pressionar, ao que ela voltou a guardar a agulha. Mais um minuto ou dois e sentiu que havia conseguido. O bebê estava na posição correta.

            – Agora ela precisa empurrar. – Abigail disse. – Vamos estimular as contrações. Tragam água fria e uma toalha, para despertar Magda. Ela precisa colaborar agora.

            A mulher saiu do quarto, para buscar o que fora pedido, e enquanto a mãe ajudava a massagear a barriga para estimular o bebê a sair, Abigail tentava finalizar o compartilhamento. Romper a conexão era exatamente igual a estabelecê-la. Tocou o peito de Magda, sentindo sua respiração agitada, e esforçou-se para manter a própria cada vez mais calma. Aquele momento era muito importante. Se a conexão fosse rompida da forma errada, Abigail corria o risco de passar as próximas horas gemendo de dor e sentindo contrações causadas por um bebê que só existia em sua mente. Já acontecera com ela algumas vezes, quando ainda era inexperiente e usava o mentalismo mesmo em casos simples, para praticá-lo: certa vez ficara uma semana sentindo uma farpa de madeira embaixo da unha, porque o menino que havia pedido sua ajuda tinha saído correndo logo depois de se ver livre do incômodo, interrompendo o contato físico bruscamente antes que ela encerrasse a conexão.

            À medida que sua respiração se acalmava, a dor ia diminuindo. Ela passou também a massagear, junto com a mãe, e logo a mulher com a água fria chegou.

            Antes que Abigail se desse conta, estava entregando uma menininha que se agitava, aos berros, a uma mãe cansada, pouco antes de se largar em uma poltrona próxima, exausta. Suas pernas moles lhe davam a sensação de que correra por horas seguidas. Mesmo que o rompimento da conexão houvesse sido satisfatório, um desconforto residual, como uma pequena cãibra no pé da barriga, ainda a incomodava. Mas acima de tudo estava feliz, porque era aquilo que gostava de fazer. Por mais cansada que estivesse, aproveitou cada segundo do enjoo, do suor na testa e das contrações no abdômen, já que aquele talvez fosse o último parto que realizaria em anos. O choro da criança seria uma excelente recordação.

            – Magda me disse que ia colocar o nome de Abigail na menina. – Gilana disse ao entrar no quarto, trazendo alguns morangos frescos, um pouco de leite e algumas fatias de bolo.

            Abigail recolheu a bandeja das mãos da mãe e a pousou na penteadeira situada logo ao lado da cama. Rosalina estava sentada diante do delicado espelho redondo, penteando os cabelos enquanto fantasiava ser seis ou sete anos mais velha. Abigail já estava vestida para dormir.

            O quarto fazia parte de uma casa construída recentemente, ao lado da Casa das Viúvas. Depois de casar-se com Elron, a mãe decidira que não era de bom tom continuar morando na mesma casa que as viúvas – já que agora havia um homem dividindo o espaço. Assim, eles construíram uma casa ao lado. O Quarto feito para Abigail era bonito e espaçoso – decorado com cortinas azuladas e um grande baú onde ela guardava suas roupas, além de uma estante com alguns de seus livros.

            – Diga a ela que não precisa, mamãe. – Abigail pediu. – Se toda menina que nascer de um parto que eu fizer for batizada com o meu nome, dentro de poucos anos não haverá meninas com outros nomes aqui na cidade.

            – Vai ser uma confusão. – Brincou Rosalina. – A gente vai sair na rua e chamar: “Abigail!” e todas as meninas vão olhar ao mesmo tempo. A gente vai ter que criar um jeito de diferenciar, tipo, Abigail de cachinhos, ou Abigail de nariz grande.

             As três riram um pouco, e enquanto Abigail comia, Rosalina fazia-lhe trancinhas nos cabelos. A mãe esperou a filha mais velha terminar de comer, e pediu à mais nova que levasse a bandeja e o copo para o tanque. Quando ela saiu, perguntou:

            – Quanto tempo ainda falta para você se formar?

            – Algumas semanas, para ser exata. – Abigail respondeu. – Três, eu acho. Mas são só formalidades. Minha mestra já me disse que não tenho mais o que aprender dela, pelo menos no nível em que estou.

            – Você pretende continuar a servir depois da formatura?

            A pergunta da mãe soou despreocupada, mas Abigail sabia que não era uma questão sem importância.

            – Tenho três anos de serviço obrigatório depois que me formar, mamãe. – Abigail desconversou. – Mas acho que os passarei em Migdala, de forma que estarei bem ali ao lado.

            – Estou perguntando sobre depois desses três anos. – Gilana evitou a esquiva. – Vai continuar servido?

            – Depende de muita coisa, mãe.

            Por um momento breve, a mãe organizou a penteadeira desarrumada, e Abigail ficou quieta. Todas as vezes que as duas se encontravam, falavam sobre isso.

            A questão era que a mãe não queria que Abigail servisse mais que o necessário. E já havia deixado isso claro. Como o argumento original para ingressar na Ordem dos Égides – a situação de pobreza pela qual elas passaram – já não fazia mais sentido, Abigail vinha pensando em uma forma de convencer a mãe a parar de insistir que ela deixasse o serviço militar.

            – Depende de que coisas? – A mãe perguntou.

            – Eu não sei bem ainda. Estou juntando dinheiro... para uma coisa que quero fazer.

            – O Hospital? – A mãe perguntou.

            Gilana se referia a uma ideia que as duas tinham discutido dois anos antes, quando Abigail acabara de se transferir para Migdala. Abigail teve a ideia de abrir um hospital em Neemya, onde poderia tratar as pessoas da cidade. Quando se tornasse mais experiente, poderia tentar se consagrar a Mestre, e assim receber permissão para ensinar o ofício médico em sua cidade, formando gente que pudesse cuidar das pessoas. A ideia era excelente, mas carecia de recursos que a tornassem realizável.

            – Sim, mamãe, o hospital é um bom exemplo.

            –Os negócios da família estão prosperando. – A mãe retrucou. – Logo teremos ouro o suficiente para realizar essa ideia.

            – Mas só o dinheiro não basta. Eu preciso estar capacitada a ensinar, mãe. Caso contrário não vai dar certo. Eu não tenho como cuidar de todas as pessoas na cidade sozinha.

            Mais um momento de silêncio breve. As duas estavam tensas – quase tanto quanto ficavam nas vezes que discutiam sobre as visitas que Abigail fazia às cavernas, no passado.

            – Quanto tempo, mais ou menos? –A mãe perguntou, ao fim de mais uma pequena pausa.

            – Eu não sei, mamãe. Tem muitas coisas envolvidas. Preciso achar um Mestre, convencê-lo a me aceitar, acompanhá-lo... essas coisas levam tempo.

            – Existem rumores de um conflito. No norte. – A mãe finalmente desabafou. – Eu ouvi que muitos ordenados estão sendo transferidos para Ataya.

            Abigail gelou por dentro. Então a mãe já sabia sobre o conflito.

            – Eu também ouvi algo a respeito, mãe, mas não é nada conclusivo. – Abigail tentou desconversar. – Além do mais, ainda que seja, apenas ordenados que tenham concluído os anos de serviço militar obrigatório podem ser convocados para conflitos. Pelos próximos três anos, no mínimo, a senhora não precisa se preocupar comigo na fronteira.

            – Exatamente. – A mãe insistiu. – Mas depois desses três anos, você ficará a mercê de ser convocada. É um risco grande demais a correr. E se eu tivesse de escolher entre dez hospitais aqui em Neemya e minha filha em segurança perto de mim, escolheria sem pensar na última opção.

            – É um caso a se pensar, mãe. – Abigail disse, em tom definitivo. – Me dê um tempo para pensar.

            – Na última vez que alguém que eu amava me pediu tempo para pensar, voltou para casa em um esquife. Sei onde isso vai dar. E não quero que aconteça com você.

             Abigail sentiu a garganta embrulhar. A mãe estava usando o pai para convencê-la de novo. Detestava quando ela fazia isso – era um golpe baixíssimo. Mas não podia culpá-la – era evidente que estava seguindo um caminho muito semelhante ao do pai. E para ser honesta, também temia terminar como ele.

            – Mamãe, não se preocupe tanto. – Abigail a acalmou. – Três anos é muito tempo. Conflitos começam e se resolvem em intervalos como esse. Se eu perceber que há risco real em ser convocada para uma guerra, eu saio.

           

Gilana abraçou Abigail, com força e ternura, como se tentasse retê-la em seus braços. Em suas memórias, as palavras de seu antigo esposo reverberavam idênticas às da filha cá agora. Eram as mesmas garantias vazias. A mesma ideia ingênua de que não havia nada com que se preocupar. Quando a soltou, reconheceu no rosto da mulher à sua frente os olhos de uma menina – em nada diferentes do que eram quando ela deixou sua casa acompanhada de um oficial do exército, que a guardaria em uma longa viagem.

Ela não desistiria. Gilana sabia que a filha não ia desistir, assim como soube, desde o começo, que ela iria querer se tornar uma ordenada, e que passaria nos exames. Abigail era gentil e paciente, qualidades herdadas de sua mãe, mas também era teimosa e determinada – com certeza características de seu pai.

Tudo o que Gilana pôde fazer foi, ao beijá-la a testa, desejar que sua filha ficasse bem e em segurança, esperando que a intensidade de seu sentimento a protegesse. Com certeza elas ainda conversariam muitas vezes sobre o assunto, e em todas, a mãe tentaria convencer a filha a mudar de ideia.

Mas por hora, tratou de desfrutar da presença dela em casa.

– Boa noite, minha filha.

– Boa noite, mamãe.

Gilana saiu do quarto, apagando a lamparina ao sair.

Apesar do aposento mergulhado na escuridão, Abigail demorava a dormir.

Estava pensando. No pai. Nas palavras da mãe. Nas mentiras que dissera. E no segundo segredo que dividia com Beni: as convocações que haviam recebido, uma semana antes, marcando a data de sua transferência para Ataya, tão logo terminassem os procedimentos da formatura, em função de seu serviço militar obrigatório.

Serviriam três anos. Na fronteira.

Apertou o travesseiro com força contra o rosto, para que ninguém a ouvisse chorar, e pensou se Beni não estava fazendo a mesma coisa em seu quarto, na Casa das Viúvas.

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