Capítulo 03

Em Ascensor o consumo de álcool é restrito e para poucos. Beber é considerado um caso de autointoxicação e um crime contra a vida, mas existem locais mais ou menos liberados pela Uma só Lei, que é o único código de condutas de Ascensor.

Há alguns restaurantes que servem bebidas, é verdade, com baixo teor alcóolico e só abrem aos domingos, quando os padres mergulham a hóstia em vinho tinto. Mas, se você procurar bem, em pequenas portinholas entre comércios e becos sujos, pode encontrar locais como este: bares simples e escuros, no qual só é necessário assoprar um bafômetro para poder consumir. Vira e mexe o Exército fecha as portas de locais clandestinos, especialmente se eles servem além do álcool uma dose exagerada de sexo nas famosas red-rooms.

Deu para entender?!

Levo o rapaz até um desses locais. Logo na porta um rapaz de cabelos ruivos nos encara com um sorriso turvo, eu mostro meu crachá, provando que sou da área e ele não pergunta sobre meu acompanhante. Ele encosta um pendrive no dispositivo da porta, digita o número “2” e uma luz verde acende. Abro as portas de metal do estilo saloon para adentrar o ambiente e o rapaz me segue, mantendo a cabeça baixa. Aqui, ninguém vai perguntar sobre sua identidade.

Bom dia, senhores. Devo servir uma mesa reservada? — O barman de tatuagens no braço nos recebe.

Ahm… — Fico um tempo olhando para o monitor de televisão atrás do atendente, por cima de seus cabelos loiros.

Os repórteres estão falando de novo sobre o sumiço de Rosario Castilla, filha do Cardeal-Secretário Geral. Hoje faz cinco anos desde que ela sumiu do Andar Nobre. Ninguém nunca a encontrou ou a viu depois desse sumiço e Rosario permanece misteriosamente desaparecida, em um caso que nos enche de insegurança.

Se a filha do Cardeal Castilla foi levada de seu andar, sem pistas, imagine o que pode acontecer a qualquer um de nós?! Tudo o que eles possuem dela é um vídeo no elevador. Todo mundo sabe dessa história e as mães costumam usá-las para desencorajar os filhos a usarem as antigas instalações — os elevadores verdes, como chamam. Rosario pode ser vista apertando os botões como louca, tentando fugir do que imaginam seja seu algoz, e o elevador não funciona, fato este atribuído à falta de manutenção no local. Podemos ver uma sombra, um pé, que aparece perto da porta e Rosario conversa com essa pessoa até que deixa o elevador, seguindo-o.

Assim que ela sai, a porta do elevador fecha, o que dá margens para muita especulação, inclusive de que demônios a levaram.

Uma mesa reservada. — O rapaz se adianta, percebendo que parei no meio do caminho, intrigado com o monitor.

Tenho o lugar perfeito. — O barman abre um sorriso em que lhe faltam dentes e aponta para um canto, enquanto seca as mãos em uma toalha suja.

Ele nos guia até o fundo do pequeno bar, onde uma mesa nos aguarda. Há poucas mesas ocupadas, o balcão tem mais algumas pessoas bebendo e conversando por baixo da música eletrônica.

Ofereço cordialmente o lugar para o rapaz, que se senta em uma poltrona que imita o sofá e o garçom fica esperando nos sentarmos, lado a lado, para puxar um antiquado bloco de notas do bolso e pegar um lápis da orelha.

O que desejam.

Duas cervejas? — Olho para o rapaz que está tirando o capuz da cabeça, colocando as mãos juntas sobre a mesa.

Claro. Eu pago. — Ele concorda acenando que sim.

Não reclamo que ele pague. Certamente lá em cima eles ganham mais crédito de bebida do que aqui em baixo. Estico as costas no encosto nada confortável do pequeno sofá.

Ficamos em silêncio enquanto o garçom toma o crachá do rapaz e marca duas cervejas. Ele retorna para o bar, enche duas canecas de metal e espuma rala e traz para nós, colocando em cima da mesa.

Batemos em um brinde e tomamos um gole, eu espero com a caneca nos lábios, querendo ver a reação do rapaz ao sabor da cerveja. Ele dá um longo gole e demora um tempo olhando para o copo, é quando o solta em cima da mesa, com um estalido.

Tem razão. É muito pior. — E solta um suspiro chateado, desviando o rosto para a parede manchada, como quem acha interessante conferir a pintura malfeita.

Sério? — Abro bem os olhos, surpreso. — A cerveja de vocês é tão melhor assim?

Ele vira-se para me olhar e tem aquele sorriso de novo, agora contornado pelo cabelo que ousou escapar do capuz derrubado nas costas.

Estou brincando — revela. — Não temos cerveja, só vinho e espumante lá em cima.

Caramba. Então vocês estão perdendo muita coisa! — Dou uma risada e um gole na cerveja. Apoio o copo em cima da mesa e limpo o bigode com a mão. — E gostou?

É, gostei. — Ele concorda, acenando com a cabeça, ainda mantendo o sorriso.

Ainda não sei seu nome. — Arrisco.

Adrián. — Ele responde simplesmente, sem mais detalhes. Eu gosto do jeito que ele pronuncia seu nome, o sotaque carregado do Andar Nobre, das alas mais nobres. — E o seu?

Não olhou no cartão quando pegou? — pergunto intrigado, esparramando as mãos na mesa.

Não sei pronunciar. — Adrián admite, jogando as costas no assento metálico em forma de sofá.

O “a” é aberto, como o seu, mas o “r” é bem menos carregado, mais como o som das esteiras sobre os trilhos — explico.

Rrrr. — Adrián ronrona tentando achar o som perfeito e eu não consigo evitar de rir. — “Einár”. Einar… — Ele testa.

Aí está, você é bom nisso. — Pisco um olho.

Por um instante, o silêncio fica entre nós e é a primeira vez que sinto a atmosfera pesar ao nosso redor. Estou diante de um completo estranho, em um bar que serve bebidas ilícitas e que oferece outras coisas ilícitas também. É um pouco incômodo, e não apenas para mim; Adrián encara o seu copo por um bom tempo, que me faz duvidar se ele realmente gostou de provar cerveja. Ele arrisca dar mais um gole na bebida e eu fico bebericando, tentando distrair a mente.

Lembro como meu pai me ensinou a beber, eu ainda era criança e é um costume oferecer um copo para os meninos quando alcançam a puberdade. “Fica melhor com o tempo, acredite em mim”, ele me disse com sua barba loira trançada. Suspiro, olho para a decoração do bar que até então eu desconhecia: luzes avermelhadas, paredes com vitrais de desenhos abstratos apenas reaproveitando cacos de vidro e que geram uma iluminação engraçada.

Em Ascensor a luz é sempre a mesma no Andar Épsilon, brancas, artificiais. O local é imundo, precário, não sei o que alguém como Adrián teria interesse em um local como esse! Aqui, todos nós queremos sair e subir.

O que está fazendo no Andar Plebeu, Adrián? — Tomo coragem em perguntar, minha voz soa até incrivelmente mais alta naquele momento. Além do mais, não consigo pronunciar o nome dele como ele faz.

Ah, isso… — Ele gira o copo com as mãos e se aproxima mais da mesa, curvando um pouco o corpo. Tomo esse gesto como um convite de chegar mais perto também. — De vez em quando eu desço, principalmente aos domingos. É mais fácil porque tem a transição das capelas e eu apenas faço parecer que me interesso mais pelas Malgrandas — explica seu método de escape, porém, contornando seus motivos. — Gosto de vir ajudar as crianças, trazer doces. Chicletes. E é bom conhecer as necessidades mais de perto.

Não sei o que são chicletes. E você fala como se alguém lá de cima se importasse com os pisoteados! — Dou uma risada amarga.

Eu me importo. — Adrián franze a testa, sério, e fico com a impressão de que o ofendi. — E tudo bem, não espero que você entenda. — Ele coloca uma das mãos para trás, erguendo o quadril e pegando algo no bolso de trás. Eu realmente não revistei muito bem essa área, nem vi que ele tinha algo nos bolsos. Seu joelho se choca com o meu por baixo da mesa e não me afasto, porém, a sensação é quase um convite. — Se tem uma coisa que já descobri é que vocês têm muito ressentimento com a gente. E não os culpo. — Ele tira uma caixinha de metal, que logo abre. Vejo objetos retangulares e encapados em papel prateado, dentre eles, outros enrolados no formato de cilindros e brancos, ele pega um e coloca entre os lábios, falando meio torto enquanto pega uma caixa de fósforos simplória, dessas que vem na cesta para acender o fogão. — Pode parecer uma loucura para sua cabeça, mas alguns de nós realmente nos importamos e queremos distribuir melhor a renda, fazer alguma coisa pelos mais necessitados. — Ele solta a caixinha em cima da mesa e risca um fósforo, fazendo fogo e acendendo a borda do cilindro, então percebo que é um tipo diferente de tabaco, um bem elaborado. Ele puxa o ar, prende e depois solta fumaça pela boca. — É isso, basicamente.

Vocês inalam tabaco?

É um cigarro, espera que eu coma? — Adrián franze a testa. — Vocês fazem o quê?

Mascamos. Recebemos em pasta, como isso que você está mascando.

Tá falando do meu chiclete?

Chiclete? — Agora sou eu que franzo a testa, estranhando. — Você mencionou que trazia para as crianças, mas o que é chiclete? Droga?

É um doce. — Adrián coloca a língua para fora, mostrando uma massa cor-de-rosa. Esquisito! Ele guarda a língua e bate o fumo, livrando-se das cinzas. — Nunca viu? Tem aos montes lá em cima e eu trago para as crianças. Quer um?

Não sei, você vai me dar? Assim, simplesmente? — Estranho. — Deve ser caro!

É. — Adrián dá uma risada baixa e coloca o fumo cilíndrico novamente na boca, balançando a cabeça de um lado para o outro enquanto inala. — Deixa te fazer uma pergunta?

Manda. — Pego a caneca e dou um gole, me sentindo tenso por ele querer saber mais de mim.

Se você fosse o Grandapastor, o que faria para melhorar a vida aqui de baixo? — Ele pergunta com os olhos sérios cravados em mim.

Mais batata na sopa, com certeza. Não mandam o suficiente e a sopa rala acaba com a saúde das crianças, a maioria nem passa dos cinco anos de idade aqui em baixo — digo.

Sério? A solução do mundo, para você, são batatas?! — Ele ergue as sobrancelhas, incrédulo.

As crianças morreriam menos; com alimento suficiente as pessoas se preocupariam com outras coisas e logo o Andar Plebeu poderia ser melhor e, sendo melhor, aí as pessoas subiriam para o Andar Nobre, todas elas! — explano minha teoria e dou mais um gole para encerrar.

Ascensor foi projetada para dez milhões de pessoas. Atualmente somos doze milhões com uma taxa de nascimento superior a trezentas mil pessoas por ano. O sistema está em colapso. — Ele suspira, batendo o cigarro e dando mais uma inalada dolorida, puxando mais fumaça. Isso deve fazer tão mal para os pulmões como radiação! — O Andar Plebeu vai ruir, não cabe mais nem uma mosca aqui dentro, enquanto lá em cima tem bastante espaço. Mas o que aconteceria se os portões abrissem e todos fossem para lá?

Guerra e caos, certamente. Destruiriam um sistema ultrapassado e haveria a chance de construir um novo. Imagine como seria, todos com direito a tudo, acesso a tudo! — Na minha cabeça, não parece tão ruim.

Até uma pessoa muito gananciosa se apropriar dos insumos de todos, passar a regular o acesso, cobrar por ele… E então, todo o sistema começaria de novo. — Adrián diz. Eu paro para pensar em suas palavras um pouco. — Não estou dizendo que é sem saída, estou apenas dizendo que esse não me parece um bom caminho em longo prazo.

Então, em sua opinião, a solução é ir passando devagar o pessoal daqui para lá?! Construir mais espaço para cima?!

Seria apenas a perpetuação de um sistema que já sabemos que é injusto e que não funciona. — Adrián dá um sorriso de quem está sem saída nessa reflexão. Ele bate o cigarro mais uma vez, soltando as cinzas. — Mas, quem sabe, até lá já tenhamos instruído as próximas gerações para não serem gananciosas?

Soa bem utópico.

É um mundo em que La Liberdad acredita. — Ele diz, revelando finalmente porque ele desce para o Andar Épsilon.

Esse é o nome do grupo revolucionário que, de vez em quando, invade as transmissões de televisão.

Mais ou menos.

Eles são terroristas.

Ah, sim, claro. — Revira os olhos cansado.

É um pouco sonhador da parte de Adrián.

La Liberdad é como um dos muitos grupos de revolução que já existiram e não deram em nada; eles existem há cinco meses, dê uns dias e sumirão.

Eles já ajudaram a expor algumas coisas que a Sankta Capelo faz e são erradas.

Sim, acompanhei. Foi La Liberdad que causou a expulsão de um padre, supõe-se que abusava de crianças no Setor Ómicron do Andar Épsilon. — É um bairro a ermo, localizado não muito longe do rio Ró, o esgoto fétido que separa a parte boa da ruim, quase aos pés da muralha onde fica o Setor Ômega.

Não é suposição, é factível. — Àdrian defende. — Os Cardeais fingem que não se incomodam muito com La Liberdad, mas claro que incomoda um homem de máscara transmitindo mensagens reveladoras em sinais de rádio clandestinos.

Uma vez, transmitiu um comunicado para todos os rádios invadindo os sinais. Por enquanto, ninguém sabe o que La Liberdad realmente quer, mas a população do Andar Plebeu não liga; se for para ajudar, ótimo. Há coisas que o governo realmente faz muito errado, como desvio de verbas, e se La Liberdad ajuda-nos a manter a paz, por mim tudo bem.

Quem sabe um dia La Liberdad mude essas injustiças.

Quem sabe um dia. — Solto um suspiro. — Então, você desce para fazer parte da revolução?

Eu trago artigos para distribuir aqui em baixo, entre outras coisas. Vou me lembrar de incluir batatas na lista! — Ele sorri, brincando, e pega a caneca de metal, erguendo.

Claro. Batatas! — Bato a caneca com a dele e verto um largo gole. — Então? Vou ganhar o chiclete?

Ele sorri, acena que sim com a cabeça e se inclina novamente, dessa vez, chegando mais para perto de mim. Há algo incrível quando observo dentro de seus olhos castanhos, pois é como se pudesse ler seus pensamentos. Compreendo o convite.

Em resposta, me inclino um pouco também, nossas respirações se cruzam na mínima distância e vejo Adrián cerrar os olhos, seus cílios escuros em contraste com a pele branca. Por um instante, esqueço que estamos em um bar com pessoas ao nosso redor, mas é apenas um microssegundo. Logo me recordo desse detalhe e é como se uma âncora me puxasse para baixo.

Não posso fazer isso.

Somos ensinados do quanto é errado e de curso desviado da Lei, da “Uma só Verdade”. Qualquer ato sexual, inclusive um beijo na boca, só pode ser feito com o intuito de procriação entre casais formados por um homem e uma mulher, casados. Pessoas que pretendem ter filhos podem engajar em um namoro e se beijar. Hesito. Embora meu corpo inteiro só reaja ao fato de que quero me afogar em seus lábios cheios. Não pelo chiclete, mas apenas por ser um beijo, mesmo.

O sino preso à porta para espantar espíritos malignos e avisar de novos clientes tirilinta. O som que vibra por cima da música é o suficiente para me fazer retesar o corpo e me afastar dele. Adrián percebe a movimentação duvidosa, abre os olhos e se espanta com algo que vê por trás de mim.

É rápido. Sons ritmados de botas batendo contra o assoalho de cimento. Em segundos estamos cercados de soldados de armaduras pretas e capacetes, armados até os dentes.

Engulo em seco. Como eles são rápidos! Parece que adivinharam que estávamos aqui. Será que iremos presos? É um crime digno de sentença de morte e, naquele segundo, sou grato - com amargor - por não ter beijado Adrián.

O senhor precisa vir conosco agora. — Um soldado avisa.

Travo. Não sei o que fazer. Ao contrário de mim, inabalado, Adrián amassa o cigarro na mesa, apagando a ponta. Fica como uma escultura torta à minha frente.

Devem ter rastreado meu cartão quando comprei a cerveja. — Ele suspira, soltando a fumaça e se levanta. — Obrigado pela conversa.

Fico esperando pelo momento de violência que sempre acontece na presença de um batalhão: quando eles golpeiam a pessoa com um cassetete, mandam ajoelhar e levantar as mãos, mas, em vez disso, os soldados abrem um buraco, formando um casulo imaginário e escoltam Adrián para fora dali.

Sozinho, com duas canecas de cerveja, um cigarro amassado e a caixa metálica esquecida por Adrián em cima da mesa, sentindo um gosto ruim na minha boca, provo o sabor da ausência. Sei que nunca mais verei aquele rapaz e isso me entristece.

Suspiro chateado. Pego a caixa prateada, coloco-a no bolso da calça cinzenta e dou o fora dali, largando as bebidas quase cheias, para enfrentar a fúria de minha irmã que ficou sem os tickets de cinema.

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