Capítulo V

- Sabe, eu queria mesmo aprender a voar, mas eu não levo jeito pra coisa – eu disse, tentando desesperadamente fazer com que Dan parasse de me jogar do céu ao chão. Melhor dizendo, do céu à água, no meu segundo dia de treinamento.

Nenhuma desculpa adiantava. Eu tentei dizer que ficaria gripada ou que poderia romper algum órgão interno no impacto com a água, mas não consegui tocar o coração daqueles anjos, que agora eram demônios para mim. Quando eu disse pela milésima vez que eu estava cansada, eles ficaram atentos a algo que eu não consegui saber o que era.

- Temos que ir – disse Dan, em tom de urgência, me carregando para longe.

- Já não era sem tempo – eu não fiz mais perguntas: estava cansada demais para querer saber sobre o estranho comportamento deles de pararem o treino duas horas antes do que combinamos.

Finalmente eu tive um pouco de paz à noite em casa e fui olhar meus e-mails. Após passar pelos SPAMs, notei um e-mail em particular que me chamou a atenção. Era sobre o show do Palante em Seattle. Após ler algumas informações, vi a foto de um vídeo do Jayden chegando no porto da cidade. Eu tive um pressentimento esquisito ao vê-lo de óculos escuros e com o rosto bem travado, seus longos cabelos ao vento. Clicando no ícone do vídeo, percebi que ele estava normal porque, após descer do navio onde eles fizeram um show no “Cruzeiro com o Palante”, ele desfez o rosto sério, deu um sorriso e acenou para os fãs. Era só coisa da minha cabeça.

De repente, escutei um barulho estranho no telhado. Pensei ser um gato, mas se fosse mesmo um gato ele devia pesar uns cinquenta quilos para fazer uma barulheira daquela. De repente, vi a luz colorida do giroflex batendo na parede do meu quarto. Fui correndo para a varanda e vi várias pessoas tensas olhando acima de mim. Olhei para o alto e todo mundo gritou. Era o imbecil do meu meio-irmão dizendo que ia se matar. Eles gritaram porque acharam que eu ia me jogar também devido ao meu histórico recente e à curvatura do meu corpo quando sentei na grade da varanda pra olhar lá em cima.

- Desce daí, Carl! – gritei.

Meu irmão se assustou comigo e tudo pareceu acontecer em câmera lenta. Ele tropeçou na calha ao olhar para mim e eu terminei de me curvar para trás, para fora da varanda. Eu estava com as asas abertas, sem ter feito nada para que elas saíssem das minhas costas. Ele caiu sobre mim. Abracei Carl no ar e, de repente, quando eu percebi, eu tinha caído no chão com ele por sobre mim. Habilmente, minhas asas bateram e amorteceram a queda. Ele não se machucou. Ninguém me viu e o pessoal que se amontoava em cima do meu meio-irmão bloqueou minha passagem. Miah e Daniel olharam para mim lá de cima.

- Agora sabe voar, né? – disse Daniel, num raro sorriso.

- Eu te mato, Daniel! Você que planejou isso tudo né? – eu gritava lá de baixo tentando passar por entre as vizinhas velhas e pelancudas que puxavam saco do meu irmão.

- Claro que não, seu irmão é idiota o suficiente para fazer esse tipo de coisa sozinho – ele me respondeu lá de cima.

- Está tudo bem com Carl, posso assegurar – disse Miah, que também estava lá em cima – Agora, veja se consegue subir aqui!

Não, não estava nada bem com Carl. Eu tinha conhecimento de causa: não está nada bem com quem tenta suicídio.

Consegui sair do amontoado de velhotas que cercavam meu irmão por ali. Bati minhas asas cinzentas com força, repeti o movimento que elas fizeram quando segurei meu irmão caindo e, finalmente, acertei como cortar o ar corretamente. Meu corpo foi subindo e eu não estava acreditando: eu estava voando! Eu ri como uma louca desvairada e fui subindo mais e mais. Voei por sobre toda a cidade com Elemiah e Daniel ao meu lado, mas talvez eu estivesse um pouco tonta por causa da altitude: pensei ter visto Justin voando ao lado dos anjos dele, mas bem nesse momento Daniel entrou na minha frente e apontou lá em baixo.

- Agora é o treinamento de pouso! Vai! – Daniel puxou uma pena da minha asa cinzenta e doeu pra caramba, isso desestabilizou meu voo: ele segurou meu braço e me puxou para baixo.

Eu parecia uma bala descendo do céu e abri as asas de modo a pousar. Fui cortando o ar sei lá como. A sensação parecia com andar em duas pernas ao invés de engatinhar como um bebê. Você não sabe exatamente como ou quando aprendeu a andar, mas faz aquilo com maestria como se tivesse nascido sabendo. Desci num beco ao lado da padaria do centro.

- Ótimo, agora vamos para casa... – disse Miah, que ia começar a andar e eu bati minhas asas. Ela riu.

Segui para casa voando, numa gostosa sensação de liberdade. Pousei e voltei à minha forma humana. Quando eu passei na rua, todos olharam estranho para mim. Minha blusa estava rasgada nas costas. Pelo menos dessa vez, ainda bem, estava rasgada só nas costas!

Minha mãe estava chegando do trabalho. Falava com a polícia e com uma mulher do conselho tutelar. Meu pai estava na porta de casa.

- Pai? – eu disse, surpresa.

- Filha! – ele me abraçou e pegou nos meus braços. – Mas você está na rua a essa hora? Você está gelada!

Deu vontade de falar que eu estava gelada porque eu dei o voo mais surpreendente da minha vida. Optei por ficar em silêncio sobre isso. Meu pai continuou falando:

- Seu irmão acabou de tentar suicídio! Você vai para casa comigo agora mesmo!

- Pai, Carl é um desmiolado. Não liga pra isso – eu disse, tentando diminuir a importância da coisa. E meu pai não tinha mesmo nada a ver com isso, Carl não era filho dele.

- É ela! – a vizinha gorda me apontou.

- Eu?

- Filha! – minha mãe correu até mim, ela estava longe e de costas conversando com a assistente social, por isso não tinha me visto ainda. – Eu não vi você saindo, onde você estava? Seu irmão pulou do telhado! Você não pode me ajudar e olhar ele por um minuto!?

Ela mal sabia que eu estava olhando ele e muito bem olhado. É alguma convenção das mães pensarem que os irmãos mais velhos necessariamente devem cuidar dos mais novos? Qualquer coisa que acontecia a Carl, minha mãe jogava a culpa em mim, como se eu não estivesse cuidando dele.

- Eu vi! Eu vi tudo! – gritava a vizinha que me apontava. – Ele pulou, ela tentou segurar ele no ar e simplesmente sumiu! Ela estava falando para ele pular!

“O quê?” – pensei. Fiquei branca na hora. Olhei para Daniel.

- Ah, você espera mesmo que eu te dê uma ideia de alguma explicação? Se vira... – ele disse.

- Diga que você não estava em casa – disse Miah.

- Eu nem estava em casa! Ok, mãe, eu confesso... – me deu vontade de falar que eu tinha fugido para usar drogas, mas a mulher do conselho tutelar estava atrás da minha mãe e eu tive que improvisar algo mais convincente – eu saí de casa sem você deixar. Mas eu me arrependi e estava voltando. Eu nem sabia que o Carl queria pular.

- Filha, todo mundo disse que te viu na varanda do seu quarto!

- É, Elvis também não morreu... – eu ri, dando de ombros. Não teve graça. – Eu não estava em casa, já disse! Cadê o Carl? Quero ver meu irmão!

- Ele está bem, está no quarto dele.

Entrei correndo em casa e deixei meus pais lá fora discutindo com a polícia e a assistente social. Cheguei perto do meu irmão. Ele estava ileso deitado na cama.

- E aí, doido?

- Você é que tentou se matar me dando aquele susto e me fazendo tropeçar, nem vem inventar história... eu só queria um pouco de atenção – falou Carl, cínico. – Ou pelo menos foi isso que a assistente social disse. Na verdade eu só estava vendo as estrelas...

- Você disse a alguém que me viu?

- Não, eu não disse. O que aconteceu?

- Não conte – disse Daniel, interrompendo. Eu levei um susto.

- O que foi? – perguntou Carl, que viu meu susto repentino teoricamente sem motivo aparente.

- Eu não sei o que aconteceu, foi estranho, eu entrei, desci e saí pela porta de trás desesperada pra procurar ajuda.

- Ah, sim... entendi. Eu caí na hora que você saiu, então.

- Porque você estava no telhado?

- Eu só estava de bobeira em casa, já disse. Vendo as estrelas.

- Carl!

- Tá... tá bom... eu tava fumando um cigarro... Mamãe não sabe. Daí eu lembrei de você e a primeira coisa que passou na minha cabeça para disfarçar era fingir que eu estava tentando me matar.

- Uma péssima ideia, você sabe que agora eles estão lá fora conversando com a assistente social se eu vou morar na Califórnia com o meu pai.

- O problema é seu.

- Carl, você se desequilibrou mesmo?

- Já falei, me desequilibrei, assustei com você gritando comigo...

Peguei as mãos dele e cheirei. Era o cheiro específico dos drogados do grupo de teatro da escola.

- Você estava na viagem né! Pare de fumar essa coisa!

- Não vou parar.

- Ou você me diz que vai parar ou vou fazer algo contra sua vontade, para o seu próprio bem.

- Não vou parar, já disse...

Desci as escadas correndo e falei com a polícia sobre o que Carl estava realmente fazendo no telhado. Os policiais subiram com os paramédicos e tiraram sangue do meu meio-irmão.

- Isso é uma acusação muito grave, mocinha! – minha mãe dizia para mim.

- É, eu sei, assim como é grave a acusação de que eu estava na varanda chamando meu próprio irmão para pular... eu falei para ele descer, mas pelas vias normais e não pra pular que nem um desmiolado! Ele estava viajando na droga, pode ter certeza... ele precisa se tratar!

- Vocês que se resolvam por aí, eu só sei que vou levar minha filha pra Califórnia! – disse meu pai, me puxando para o lado dele.

- No momento não é uma boa ideia, senhor. Esta família ficará desestruturada sem os filhos, o garoto provavelmente irá para tratamento e a mãe... – dizia a assistente social, quando meu pai a interrompeu.

- Eu não estou nem aí! Nos vemos na justiça! – disse meu pai, para minha mãe, e saiu me puxando como se eu fosse uma bolsa de notebook.

- Hey, pai, espera! Eu quero ficar! – eu disse e me soltei dele. – E a minha escola? – dei uma desculpa esfarrapada. Na realidade o que eu precisava era continuar meu treinamento angelical para poder ir cuidar do Jayden no sábado. Meu pai estava prestes a estragar tudo! Ele respirou fundo e disse:

- Tudo bem. Vamos ficar, mas você ficará em um hotel até essa desmiolada da sua mãe resolver a vida dela!

A ideia do hotel pareceu tentadora demais para mim. Seria mais ou menos viver como Jayden vivia!

- Pode ir, filha. Eu resolverei as coisas aqui – disse minha mãe. Ela parecia exausta.

Meu pai foi me puxando para um táxi e eu vi minha mãe indo em direção aos braços de Andrew, chorando. Aquilo tudo bateu forte no meu peito.

- Pai, eu quero ficar – eu disse.

- Não, você não vai ficar. É para o seu próprio bem! – disse meu pai, jogando minha mochila no carro e entrando no veículo junto comigo. Depois, falou a direção que deveria ser tomada pelo motorista.

Rapidamente chegamos ao hotel da cidade. Meu pai pagou tudo para mim por uma semana e me deu um cartão de crédito – mais um cartão.

- Este cartão é para você se manter até resolvermos tudo.

- Pai, eles não aceitam menores desacompanhados no hotel e...

- Eu mandarei alguém.

- Mandará alguém? – perguntei, perplexa. – Quer dizer, como uma babá?

- Algo assim – ele falou e eu quase dei um grito de ódio no meio do saguão do hotel. Tomei o cartão da mão dele e subi irritada. Eu só queria um tempo a sós com meus anjos.

- Ok, eu não posso ficar com minha amável mãe, mas eu sou obrigada a ficar num hotel com uma babá desconhecida. Onde, me digam, onde que isso é melhor para mim? Agora não tenho contato com minha família. Ótimo. Dr. Austin vai amar saber que estou desobedecendo o tratamento que ele me passou...

- Acalme-se, Kate – disse Elemiah e eu quase a estrangulei. – Dias melhores virão.

Dias melhores virão. Que coisa boa pra um anjo da guarda falar. Andei no corredor carpetado do hotel e abri a porta do meu quarto. Era grande, tinha uma cama de casal para mim e outra de solteiro num outro recinto, para a babá. Babá. Por favor, eu já sei dirigir um carro e preciso mesmo de uma babá? A mulher provavelmente vai ficar aqui o dia inteiro dependurada no telefone...

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No outro dia, pela manhã, lá estava meu pai na porta do meu quarto tocando a campainha insistentemente. Uma mulher novíssima e bela estava ao lado dele, cheia de cachos no cabelo preto. Parecia que ela tinha saído de uma revista. Eu a cumprimentei vagamente enquanto meu pai dizia que explicaria tudo no café da manhã.

- Pai, eu ainda estou com as roupas de ontem se você não percebeu – eu disse, com a cara mais amassada do mundo.

- E porque não foi a uma loja comprar umas roupas novas!? Por acaso te dei aquele cartão à toa? – brigou comigo.

- Já era quase meia-noite ontem! – protestei.

- Acalmem-se – disse a mulher. A voz dela era tão bonita que parecia um violino tocando afinadamente. – Venha no meu quarto, eu te empresto umas roupas... encontramos você lá em baixo.

Meu pai concordou a contragosto e ela me encaminhou até o tal quarto. Eu ergui uma sobrancelha. Estávamos na porta do quarto onde geralmente meu pai ficava. Parei em frente à mulher.

- Espera, você... – eu não queria parecer rude, então inventei algo na hora – é a secretária do meu pai?

- Não, querida – ela deu uma risadinha e eu consegui ler que dentro da cabeça dela o que ela ia dizer na sequência.

- Ok, sem mais detalhes, já entendi – eu entrei no quarto do meu pai e ela me mostrou o armário.

Roupas do meu pai estavam ao lado de roupas femininas dela. Ela tinha uma enorme quantidade de calcinhas fio dental, algo que me causou arrepios horrorosos. Meu pai estava namorando com uma modelo-capa-de-revista que nem tinha me dito o próprio nome. Agora pelo menos eu sabia que eu não ia ficar com uma babá, mas que eu ia ter uma madrasta.

Eu coloquei aquele vestido de marca que mais parecia uma blusa social masculina gigante e uns saltinhos que ela me emprestou. Não fiquei bem naquelas coisas. Desci e todos olharam para mim como se eu fosse alguém de bom gosto. Sorrisos e portas se abriram para mim até que encontrei meu pai, que estava assentado olhando a mesa de café da manhã enquanto nos esperava.

- Nossa, filha, que vestido lindo!

- Parece uma blusa grande demais para mim – eu disse, carrancuda.

Peguei um prato sobre a mesa e logo fui me servindo do café da manhã. Enquanto eu colocava o bacon no prato, tentei não ouvir eles dizendo “ela desconfia”. Eu não desconfiava mais, agora eu sabia do namorico deles. Inocentes...

Ao longe, vi Elemiah e Daniel lá fora, trocando figurinhas com um outro anjo. Imaginei o que eles estariam conversando quando uma patricinha olhou para mim cheia de sorrisos esperando que nos tornássemos amigas inseparáveis e disse:

- Adorei seu vestido.

Ela com certeza era de Manhattan e parecia estar de férias aqui.

- Não é um vestido, é uma blusa velha do meu padrasto – eu disse e joguei o prato com bacon e ovos sobre a garota. – Oh! Me desculpe...

Eu sempre quis encenar isso!

Enfim... nem tomei café da manhã. Fui logo pro quarto do meu pai, vesti minha jeans que eu tinha deixado lá e coloquei a parte de baixo do vestido pra dentro da calça. Virou mesmo uma blusa social que parecia ser do meu padrasto. Reparei que eu estava sem material para estudar. Saí do hotel, peguei um taxi e parei em uma papelaria perto da escola. Comprei algumas coisas. Tinha uns lápis, uma borracha, umas canetas e um bloco de folhas, era o suficiente. Segui para a escola, mesmo com atestado médico.

Chegando lá, começou tudo de novo. O professor de matemática ainda não tinha voltado e todos estavam do lado de fora da escola batendo papo. Não vi meu irmão. Jason estava sem seus anjos o ladeando e me evitava como todos os outros alunos o faziam. Eu estava faminta e a hora não passava de jeito nenhum. Fui até o Dr. Austin.

- Kate! Não esperava por você!

- Ah, aula de matemática – eu disse e me deitei no divã antes mesmo que ele falasse mais alguma coisa. – Notícias dele?

- Nenhuma – ele se colocou na posição para prestar atenção em meu novo relato.

- Que pena... – eu disse.

- Então, como estamos? Você não estava de atestado médico até semana que vem?

- Sim, estou. Mas eu precisava vir. Todos acham que meu irmão estava tentando se matar ontem, mas ele se desequilibrou porque estava de onda.

- Como assim?

- É, ele estava fumando maconha no telhado de casa, ele me disse. Ele se desequilibrou e caiu. Não aconteceu nada com ele, mas todo mundo falou que eu que gritei para ele se assustar e cair.

- E você fez isso?

- Não!

- Então...?

- Pois é – silêncio se seguiu. Continuei depois de um tempo – Eu o denunciei. Me sinto mal por isso.

- Ia acobertar seu irmão?

- Supostamente... – me lembrei de quando eu caí junto com ele. – Eu teria que protegê-lo. Por ser meu irmão.

- Nem sempre podemos proteger alguém que gostamos. Especialmente deles mesmos.

- Concordo...

O silêncio se seguiu.

- Tomou os remédios?

- Nossa, nem comprei – me sentei rapidamente, desesperada. – Aliás, você poderia me dar outra receita? Meu pai me levou para um hotel depois dos acontecimentos e agora estou sem minhas coisas. A receita ficou na minha casa!

- Kate, estes remédios são controlados, não posso ficar te dando essas receitas todos os dias. Pegue a receita na sua casa e compre o ansiolítico ainda hoje. Aliás... Kate, que roupa é essa? Resolveu vestir roupas velhas do seu pai?

Não consegui segurar o riso.

- Na verdade... – deitei novamente no divã e fechei os olhos. – Eu não posso voltar em casa. O conselho tutelar apareceu novamente por causa do acontecido. Meu pai os levou lá. Eu estava só com a roupa do corpo quando ele me enfiou dentro de um táxi, por isso nem lembrei do remédio. Meu pai está com outra mulher. Ela é linda e me emprestou esse vestido horrível que só fica bom nela.

- Ah, é um vestido, me desculpe, não tenho tato para moda.

- Não, não tem problema. Eu achei horrível também – eu ri. Ele não. Respirei fundo. – Ele quer que eu more no hotel até que ele resolva essa pendência com minha mãe. O pior é que todos pensam que eu também vou querer saltar do telhado, mas ninguém sabe que ele estava drogado e caiu.

- Você usa drogas, Kate?

- Claro que não Dr. Austin! Longe de mim!

- E o show do Palante?

- Ah, está chegando! Vou pedir dinheiro pro meu pai pra viagem pra Seattle. Tenho o ingresso e as passagens de ônibus, mas seria bom ter uma grana extra para comprar comida e tudo o mais quando eu estiver por lá.

- Kate, você tem muitas coisas que a fazem feliz. Enumere-as para mim.

- Ah, isso é fácil! Jayden e as músicas dele do Palante!

- O que mais?

- Ah... tem... minha mãe quando faz algo gostoso pra comer.

- Só quando ela faz algo gostoso para comer?

- Não! Ela também conta piadas. Ah, ela é minha mãe afinal de contas!

- Agora que vocês estão afastadas por causa da justiça, talvez seria legal vocês conversarem um pouco mais. A família é algo muito importante na vida e você precisa de afeto.

- Eu estou tentando me aproximar, mas tudo que acontece só me afasta mais e mais da minha família..., mas, sim. Vou ligar para ela e saber do meu irmão.

- Pronto, terminamos por aqui hoje. Pode ir.

- Obrigada, Dr. Austin... – apertei as mãos frias dele.

Segui pelo corredor para a próxima aula. Como de costume, as pessoas começaram a olhar para mim no corredor. Fiquei pensando: para quem será que eles olham quando eu não estou aqui?

Na saída da escola, eu já estava morrendo de fome e como o treinamento de voo tinha acabado, fui direto para o hotel. Meu pai estava sentado na cama esperando por mim.

- Minha filha, como você pôde fazer uma coisa dessas?

- Que coisa? Eu estou com muita fome, podemos conversar sobre isso no jantar?

- É, você não estaria com fome se não tivesse jogado seu bacon com ovos na filha do meu sócio! Ele está furioso!

- Eu sabia que eu devia ter continuado na casa da mamãe – eu disse. – Você sabe como eu não tenho jeito para essas coisas que levam trato social.

Meu pai respirou fundo e ficou corado. Mudou de assunto.

- Olha, eu queria ter te apresentado de forma apropriada para a Debbie hoje de manhã, mas não consegui porque você foi embora. A Debbie é minha nova namorada.

- Ela já se apresentou. Vamos acabar com as formalidades. Vou pegar um táxi e buscar umas coisas na casa da mamãe, eu preciso das minhas coisas pra sobreviver e não estou falando de um monte de calcinha fio dental que nem as que estão no seu armário.

Meu pai ficou irritado e me pegou pelo braço, me sacudindo.

- Olha aqui, eu faço tudo para o seu próprio bem, então deixe a Debbie em paz, certo?

- Papai, você ainda ama a mamãe! Se vocês não se amassem, não estariam brigando tanto! Nem se importariam um com o outro!

- Eu só me importo com você – ele disse, mas mais vagamente. Meu comentário mexeu com ele. Senti também que, por um momento breve, ele quase disse que eles só brigavam por minha causa.

- Então se você se importa comigo, me deixe ficar com minha mãe. Ela está sozinha em casa chorando porque meu irmão usa drogas. Se você não vai estar lá por ela, eu estarei.

Desvencilhei-me, virei as costas e fui embora. Eu sabia que ele não viria atrás de mim.

- Que show de amadurecimento, hein... – disse Daniel, que estava pairando ao meu lado o tempo todo.

- Olha aqui, vá alugar outra pessoa. Eu tenho mais o que fazer e estou com fome, vou desmaiar aqui mesmo.

Entrei no táxi e indiquei ao motorista a casa da minha mãe.

- Agora quero ver como você vai fazer para pedir grana pro seu pai pra viagem de Seattle – disse Daniel, e eu não podia responder nada pro taxista não achar que eu era louca.

Eu estava ferrada, como eu iria para Seattle só com o ingresso pro show e as passagens? Era uma longa viagem de mais de seis horas, talvez eu precisasse ficar em um hotel também... E com certeza eu precisaria de grana pra comer por lá... e comprar mais camisetas oficiais da banda, é claro. Imaginei se talvez eu pudesse ficar no mesmo hotel que Jayden... Ainda mais agora, com o trabalho que eu tinha que realizar e tudo o mais.

Já era quinta-feira, o show estava se aproximando e eu não tinha um centavo no bolso. Nesse momento, o rádio do taxista tocou a vinheta sobre o show do Palante. Havia uma promoção da rádio para um sorteio do Meet and Greet com a banda. Obviamente eu já tinha me inscrito nesse sorteio e esperava ansiosa pelo resultado!

Em pouco tempo, desci do táxi. Minha mãe estava chegando do trabalho e me deu um abraço longo e quente.

- Eu voltei para ficar...! – eu disse. Eu estava feliz.

Olhamos uma para a outra. Sabíamos que aquilo era mentira, mas não nos importávamos: iríamos ficar juntas só até a assistente social nos separar novamente. O que provavelmente seria amanhã à noite, quando meu pai ia finalmente dar falta de mim.

- Que bom minha filha! Vamos entrar... – ela estava chorando de felicidade. Enquanto entrávamos em casa, disse com cara ruim – Que blusa horrorosa é essa?

- Ah, papai me emprestou – eu disse vagamente.

Entramos. Sentei-me no lugar de costume.

- Eu estou morrendo de fome, o que tem aí?

- Eu vou pedir comida chinesa – ela disse.

- Onde o Andy está?

- Ele foi levar seu irmão pra terapia. Mas ele quis levá-lo para fora da cidade. Ele acha que em um local mais movimentado o Carl teria mais em que pensar. Você estava certa, filha. Nem precisou de exames, o próprio Carl confessou para o policial que ele estava usando drogas... Como você sabia?

- Eu o pressionei e ele me contou... eu desconfiei pelo cheiro dos dedos dele...

- E como você sabe desse cheiro?

- Tem mais gente drogada naquela escola do que você imagina...

Ela pareceu fazer um rosto triste. Fiquei brincando com os palitos de dente que estavam sobre a mesa quando vi que ela estava parada, apoiando os quadris no fogão e com uma mão na testa.

- Sabe, filha... eu acho que o Andy não vai voltar...

- Ele volta sim, ele te ama.

- Eu também usei drogas, filha. Quando eu e seu pai nos separamos. Algo está errado com o Carl para ele ter feito isso e eu não sei o que é.

Aquilo sim era uma novidade para mim. A falta de alguém para conversar fez com que minha mãe se abrisse comigo.

- Ã... não era para você estar falando isso comigo, era? – eu me senti completamente fora de contexto.

- Ã... – minha mãe se sentiu fora do contexto também. – Você está certa, me desculpe. Eu... eu vou ligar pro restaurante.

- Certo, vou na padaria comprar suco... – peguei a grana do suco, a receita do Dr. Austin, o cartão de crédito que meu pai me dera e saí de casa.

Aquilo não estava certo. Minha mãe perdendo tudo o que ela tinha de mais precioso enquanto meu pai dormia com a modelo. Se tem algo injusto nesse mundo, esse algo era essa situação. Minha própria mãe tinha usado drogas... isso não é coisa que se compartilhe! Fiquei completamente sem ação!

- O que você vai fazer agora? – perguntou Daniel, que se materializou ao meu lado – ao meu lado esquerdo, como sempre.

- Como assim? Estou confusa, me dá um tempo... – eu disse e uma mulher me olhou como se eu fosse uma aberração falando sozinha na rua. Deu vontade de fazer uma careta e erguer os braços pra assustá-la e ver se ela saía correndo.

- Você nem precisava comprar suco, o restaurante entrega refrigerante ou suco se você quiser – disse Daniel.

- Olha, eu só quero ficar sozinha, me deixa em paz...

Foi quando eu vi Justin atravessando a rua. Ele estava segurando a mão de uma outra garota da escola, Jess, toda arrumada e bonita, com brincos dourados de argola e um vestido daqueles da Debbie. Aquilo era um encontro. Ele passou na minha frente e me ignorou. A garota me lançou um olhar fatal enquanto passava grudada no braço de Justin e eu ignorei. Virei no primeiro beco que encontrei. Tornei-me anjo.

- Achei que você queria ficar sozinha – disse Daniel, que já tinha entendido o que eu estava prestes a fazer.

- Ah, cala a boca – e eu fui seguindo Justin a pé, ao lado dele e da garota. Eu estava invisível.

Ver aquele sorriso estampado no rosto de Jess me dava vontade de quebrar-lhe os dentes.

- E então – Jess disse –, me conte aonde vai me levar!

- Já disse que é surpresa, docinho – disse Justin.

Docinho. Docinho. Meus dentes rangeram.

- Eu já sei aonde eles vão – eu disse para Daniel.

- Eu também sei.

- Onde? – perguntei, surpresa.

- Ao cinema, é claro. Ele fala que é uma surpresa, então a garota nunca vai pensar que é um lugar comum como o cinema. Então, ela vai ficar pensando em vários lugares e realmente será uma surpresa quando chegarem ao cinema, porque é um lugar tão comum que ela nunca pensaria nisso para uma surpresa. Eu fazia isso. Só que era com um parque. Esqueceu que já fui mortal um dia?

Agora eu lembrava... Jason também me dissera que havia preparado uma surpresa no nosso primeiro encontro. Inclusive, eles estavam indo no mesmo cinema que ele me levou quando tivemos nosso primeiro encontro no ano passado. Como as mulheres não desconfiavam dos planos macabros dos homens!? Daniel estava certo.

Eu e Daniel entramos no cinema e nos sentamos numa cadeira atrás deles.

- Eu nunca fui ao cinema depois de me tornar um anjo. Deve ser bom poder comentar do filme sem ninguém reclamar que você está falando alto...

Eu estava tão concentrada no que Justin e Jess estavam falando que nem prestei atenção em Daniel.

- Que rasgação de seda! Acredita que ele está elogiando esse vestido horrível dela? – eu disse pro Daniel, que não estava nem aí.

- Eu queria poder comer pipoca... – murmurou o anjo negro, olhando para uma mulher que comia pipoca ao lado dele.

As luzes se apagaram e o filme começou: era uma comédia romântica idiota que Daniel assistia atentamente enquanto eu olhava Justin e Jess interagindo. As cabeças dos dois estavam longe o suficiente até a metade do filme, quando eles se aproximaram um pouco. Eu ouvi perfeitamente: ele cantou baixinho e sussurrante uma música do Palante no ouvido dela.

E quando eu deixar de existir,

Mesmo que você se desespere,

Saiba que sempre estarei ao seu lado.

Foi a mesma coisa que ele falou para mim quando saí com ele. A mesma estrofe. Eles se beijaram e eu tive vontade de gritar, tamanho era o meu ódio por ele. Nessa hora, Daniel segurou minha mão e me puxou para fora do cinema.

- Já vi a parte do filme que eu queria ver – ele disse.

- Não! Eu tenho que ver isso, eu preciso ver isso!

Daniel puxou meu braço e me colocou contra a parede do cinema. O rosto dele estava tão sombrio na escuridão da sala que me deu medo.

- Você não precisa ver isso. Se você não pudesse ficar invisível você não estaria vendo isso, logo você não precisa ver isso – ele disse, determinado, e me segurou pelos ombros. – Você é mais do que isso. Vamos, sua mãe está te esperando.

Eu não consegui me segurar e as lágrimas caíram. Como Justin já poderia estar com outra? Ele havia terminado comigo no domingo e na quinta já estava se declarando para outra! Daniel me envolveu mais forte em seus braços e eu fiquei abraçada com ele até as luzes do cinema se acenderem novamente. Levantei o rosto num assomo e olhei para onde Justin estava antes.

- Eles saíram no meio do filme – disse Daniel.

Fiquei chateada. Daniel e eu saímos da sala de cinema e fomos até a padaria. Eu fui voando mesmo, pois precisava de um pouco de ar, e depois voltei para a forma humana. Comprei o suco, passei na farmácia para comprar o remédio que Dr. Austin havia me receitado e voltei para casa. Minha mãe já estava comendo do pedido que ela fez, vendo televisão, sentada no sofá, com as pernas cobertas e apoiando nos joelhos a caixinha de comida chinesa. Ela me olhou e eu senti uma inocência ímpar no olhar dela. Terminando de sugar o macarrão, ela disse:

- Ainda bem que você chegou, está bem apimentado...

Eu não disse nada. Servi dois copos de suco e peguei minha caixa de comida. Sentei-me ao lado dela.

- Obrigada – ela disse e tomou o suco com vontade.

Assistimos TV o resto da noite. O noticiário estava completamente desinteressante. Naquele dia não dissemos nada além de “boa noite”. Antes de dormir, tomei o remédio do Dr. Austin, seguindo a prescrição.

O show do Palante se aproximava e meu ânimo começava a voltar...

Amanhã a escola iria fazer um lava-jato para arrecadar dinheiro. Mesmo com atestado, eu fui. Afinal de contas, valia pontos para todas as matérias. Eu estava lavando o carro do dono da padaria quando o Dr. Austin estacionou ao meu lado.

- Olá, Kate! – ele disse.

- Oi, Dr. Austin!

Ele desceu do carro e foi até mim. Tirei as luvas emborrachadas para cumprimentá-lo.

- Está tudo bem? – ele perguntou, mais reservadamente.

- Sim, está tudo ótimo.

- E seu irmão?

- Ele foi se tratar fora da cidade.

- Ah, sim, entendo. Bom, aí estão as chaves do carro. Se puderem, façam uma limpeza do lado de dentro também, certo?

- Ok, Dr. Austin! – eu disse e olhei para a chave com vontade de morrer: a equipe de limpeza do lado de dentro dos veículos era liderada por Justin e eu tinha que entregar as chaves para ele.

Fui caminhando devagar até o cara mais popular da escola, que estava abaixado limpando o painel da parte de dentro de uma porta enquanto várias garotas dentro do carro iam se aquecendo com os secadores usados para limpeza interna.

- Justin? – eu disse, mas ele tinha olhado para mim antes que eu falasse, como se ele tivesse sentido minha presença enquanto eu me aproximava.

- Sim, Kate? – ele disse, educado.

- Estas são as chaves do carro do Dr. Austin. Ele pediu limpeza por dentro – apontei o carro.

- Ok – ele pegou a chave.

Eu senti por alguns segundos que nossos dedos se tocaram enquanto eu lhe entregava a chave. Ele olhou para mim. Fiquei tonta e pareceu que o mundo ia acabar. Eu lembrei da cena dele beijando outra garota no cinema. Rapidamente, virei-me e só deu tempo de eu segurar os cabelos: vomitei nos meus próprios sapatos e desmaiei.

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