06: Garçom! Encha o meu copo de fantasias!

O meu despertador tocou e, preguiçosamente, acertei-o com um soco para desliga-lo. Tudo o que eu queria era poder ficar em casa, assistir algum filme, escrever letras de músicas ou novos poemas. Eu não queria ir a um funeral, muito menos com os meus pais. Eu me levantei e rastejei o meu corpo para o banheiro, liguei o chuveiro e deixei cair à água quente no meu corpo. Era sábado, eu estava me preparando para um funeral, em certas partes, nada é tão ruim quanto ter que sair do carro com nós três dentro dele. Sempre quando saímos, o papai e a mamãe discutem, eles também discutem em casa, mas quando saímos de carro é muito pior. O papai fala no telefone, a minha mãe tenta fazê-lo prestar atenção no volante, ele diz que são negócios e que não pode simplesmente desligar, a minha mãe responde que se ele quiser permanecer vivo precisa desligar o telefone quando está dirigindo, eles param de discutir, depois voltam ao começo e eu sempre acabo por ter que ouvir o meu pai dizer que somos duas tolas. Então, eu odeio as nossas viagens de carro.

Abri o meu guarda-roupa e peguei o vestido preto que minha mãe passou na noite anterior. Depois de me vestir, soltei o meu cabelo e fiquei segura de que ninguém notaria nos meus ouvidos. Passei um dia inteiro com eles vermelhos e os meus pais não perceberam, mas isso não significa que outras pessoas não notariam. Por ainda sentia dor, não coloquei meus brincos de pérola, meus cabelos cobriam metade do meu rosto, então ninguém notaria o que eu tinha feito.

O cheiro de panquecas era tentador, fui à cozinha e encontrei minha mãe ao pé do fogão.

“Bom dia, filha”, ela disse calmamente. A mamãe nem sempre é calma, na maioria das vezes, não.

“Bom dia, mãe.” Respondi e sentei-me à mesa.

“O seu pai está lá em cima, ele está vestindo o paletó”. Ela também usava um vestido preto, o seu cabelo apanhado e eu percebi a quantidade de maquiagem ao redor de seus olhos. Era óbvio que meu pai havia batido nela de novo, por isso o exagero no pó.

Eu a encarei e a mamãe virou o rosto.

“Estou muito feliz por você estar indo com a gente, quer dizer, não há como estar feliz porque é um velório, mas fiquei contente em ter aceitado ir, isso é importante para o seu pai.”

Uau... Superimportante. Aposto dez dólares que ele nem conhecia a falecida e que muito menos se preocupa com o luto da família, papai está realmente interessado em se tornar um amigo com um rosto importante de seu trabalho. No Alabama, mamãe e eu fomos obrigadas a ir às festas dos amigos sofisticados para sermos reconhecidas, mas quando chegamos em casa, ele reclamava da comida e do espaço e usava a palavra com P para falar sobre as pessoas.

Em suma, ninguém além de si mesmo é importante para ele.

“Aqueles filhos da P... (a palavra feia com P) ganham o dobro do que comem e servem salgadinhos baratos nas festas?” Ele ria enquanto bebia seu uísque e minha mãe ficava ao redor dele como a submissa que sempre foi.

A minha mãe sempre usou a desculpa que ela aprendeu na igreja para defender as coisas que o meu pai cometeu, sempre me disse que uma boa esposa é submissa ao marido e que tudo o que acontece com ela é porque ela mereceu. Sinceramente, não consigo imaginar que Jesus aplaude as mãos por uma mulher que é espancada e diz estar bem, só porque ela é obediente ao seu amado marido.

Dois minutos depois, o meu pai desceu as escadas em seu paletó  preto e um cigarro entre os dentes. Eu nunca o vi fumando até a noite anterior, eles discutiram então papai entrou no quintal e começou a fumar como louco, ele também bebia, então minha mãe acordou com mais um olho negro. Papai disse que apenas os idiotas fumavam, talvez tenha percebido que ele também é um idiota e decidiu aderir ao vício.

“Querido, por favor, não fume aqui dentro.” Mamãe pediu.

“Deixa de ser histérica, Rebecca.” Ele disse grosso, ajeitando sua gravata vermelha. “Como estou? Hã?”

“Está bem, querido. Você está bem.” Mamãe respondeu.

“Só bem?” Papai retrucou.

“Por Deus querido, é um velório, você está bem prum velório.” Ela se explica.

O silêncio nos encontrou.

Ele puxou uma cadeira e sentou-se.

“Coma, eu fiz panquecas.” Mamãe quebrou o gelo, colocando o café à mesa.

“Eu já as vi, não precisa me dizer.” Ele é grosso e curto. “O carteiro já entregou o jornal?”

“Sim, vou pegar para você.” Mamãe retira o avental e sai da cozinha.

Papai e eu não conversamos muito, nunca falamos sobre nada, desde aquela noite em que ele rasgou o meu livro, uma parede foi erguida entre nós e nunca temos nada para falar um com o outro. Toda vez que eu encaro, a voz dele ecoa na minha mente e as mãos congelam.

“Como anda a escola?” Ele me perguntou.

Senti as minhas pernas tremerem debaixo da mesa.

“Bebebem.” Respondi com dificuldade.

“Semana que vem, lá na empresa, terá um especial pai e filha, fiz a inscrição para a gente. O que acha?”

Que? 

Eu me perguntei. 

“Você não vai precisar falar, eu até prefiro que não fale, só vamos passar um dia juntos e dizer para os outros como é aqui em casa.” Papai corta sua panqueca e espera a minha resposta.

Como é na nossa casa... Será que eu devo contar que ele bate na esposa e chama a filha de vadia por trás?

“Tu-Tudo bem.” Acabei concordando.

Mamãe voltou com o jornal nas mãos e reparou no relógio acima da geladeira.

“Vamos?” Ela perguntou. “Temos que chegar cedo, o seu pai disse que o funeral será breve.”

“Não será breve, eu é que não quero ficar muito tempo, detesto velórios.” O papai dobrou o jornal e levantou-se da mesa.

Mamãe e eu fomos para o carro, eu me sentei no banco traseiro e coloquei o cinto de segurança, o papai também dirigia super mal, então era bom prevenir que o cinto estaria preso o bastante para me impedir de saltar para fora da janela.

“Por favor, não falem nada, isso é muito importante para os meus negócios na empresa.” Meu pai disse ao colocar o sinto.

“Nós sabemos querido, vamos fazer tudo conforme nos disser.” Mamãe respondeu calma, encarando-me pelo espelho do carro.

“Enquanto a você Kristen, só tente se manter com os pés no chão, nada de livros de contos ou falar sobre fadas com os outros. Quero que vejam em mim a imagem de uma família conservadora e mentalmente bem, não estrague tudo.”

“Querido, ela não vai falar nada.” A minha mãe sorriu para mim do banco da frente. Às vezes eu odeio a forma como ela concorda com tudo o que o marido diz.

“Eu sei, ela nunca fala.” Ele dá partida no carro. “Mas esse é o problema, ela não precisa nem falar, é só olharem para sua filha e verão o quão você a estragou.”

A mamãe e o papai se beijaram e depois o meu pai ligou a rádio na estação de músicas dos anos 90. Enquanto eles trocavam olhares, eu abri um pouco da janela do carro e deixei com que o ar entrasse no interior. Aspirei e espirei. Uma fantasia assumiu a minha cabeça, às vezes eu gosto de pensar que estou em uma espécie de sonho mau e infinito e que um dia, eu simplesmente não sei quando, vou acordar e talvez viver de verdade.

Eu consigo me concentrar em algo aleatório enquanto os meus pais se encaram como se fossem perfeitos um para o outro, nas minhas fantasias o meu pai é o cavaleiro e a minha mãe a princesa, os dois se amam. Ou deveriam ser amar. Por que conto de fadas tem finais felizes? Os meus contos não são perfeitos como os que eu lia quando era criança, o meu pai não é um cavaleiro que traz rosas vermelhas, mas deixa marcas vermelhas na minha mãe, e a minha mãe, não é a princesa independente que eu idealizei.

Se eu fechar os olhos consigo me lembrar do poema que eu escrevi no meu quarto na noite passada:

Você consegue me ver,

Mas prefere que eu fosse invisível.

Hei, eu sei que está olhando para mim agora.

Onde está o meu pedido, por favor?

Contanto que esteja fresco,

Encha o meu copo de fantasias.

Essa noite eu quero ser uma princesa perdida,

Então me deixe ser uma fantasia

Além da realidade que eu sou.

(...)

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo