Berço

DO balcão, meus olhos acompanham o vai e vem dos ônibus no terminal coletivo da rua Milton Ornelas. Corpos e mais corpos descem e sobem nos transportes coletivos. A maior parte deles completamente alheios ao mundo que os cercam. Parecem não enxergar o corpo que dorme sob o banco do ponto para o Jardim Petrolar com um pedaço ínfimo de papelão sobre o dorso. E os que enxergam o chamam de preto imundo, drogado… e chutam os pés que escapam para fora do banco, fazendo-o se encolher o máximo possível. 

— Violeta? — chama uma voz próxima a mim, trazendo-me para a realidade da Papelaria & Livraria Lucimar. 

— Bom dia. Em que posso... — começo a falar a frase de costume, mas me interrompo quando percebo de quem se trata. Vinícius. Ele amplia seu sorriso largo para mim e sinto minha face repetir o mesmo gesto de forma involuntária. 

Estudei com Vinícius durante todo o ensino fundamental e médio. Éramos muito próximos. Diferente dos outros rapazes, ele sabia respeitar o meu espaço; a minha recusa por qualquer forma de contato físico sem o meu consentimento. 

No segundo ano nós começamos a namorar, mas depois de quatro meses juntos, quando ele quis algo a mais da nossa relação, eu preferi terminar o nosso namoro. 

Por algum tempo nós mal nos falamos. O ensino médio terminou, ele passou em Medicina, na UFBA, e desde o ano passado não tínhamos nos visto. 

— Como você está, Vi? — pergunta analisando o meu rosto atentamente. 

— Bem, eu acho. E você? 

— Melhor agora — diz sorrindo de lado para mim, mesmo sabendo o quão desconfortável me sinto quando ele me olha desse jeito. 

Percorro meus olhos por alguns segundos pelo seu rosto. Ele está diferente. Os traços do rosto estão mais adultos; uma barba por fazer emoldura seu maxilar, envolvendo seus lábios escuros e carnudos, e o cabelo Black Power está maior agora do que antes do corte que ele foi obrigado a fazer. 

Nós já tínhamos terminado há alguns meses e não estávamos mais tão próximos como costumávamos ser, mas eu me lembro muito bem das mensagens que recebi dele durante a madrugada contando-me tudo o que tinha acontecido. Ele estava com dois amigos, na saída do shopping Laguna, após terem assistido a algum filme da Marvel. Não me recordo exatamente qual o filme, mas isso não importa. O que importa foi o que aconteceu na saída do shopping. Uma viatura da polícia parou bem próxima a Vinícius e seus amigos. Queriam saber o que eles estavam fazendo naquela hora ali. Os meninos explicaram que tinham acabado de assistir a um filme e estavam indo para o ponto de ônibus, mas os policiais não acreditaram. Eles revistaram os rapazes; as pessoas na rua olhavam a cena assustadas. Um dos policiais puxou o cabelo de Vinícius e o perguntou se ele não sabia como deveria andar pela rua. Nem Vinícius nem os outros dois rapazes tiveram ação para dizer ou fazer nada a respeito. 

Depois de liberados, os meninos foram para suas casas. Vinícius contou aos seus pais o que tinha acontecido e o seu pai o dissera que se ele estivesse com o cabelo curto, talvez isso não tivesse acontecido. 

No dia seguinte, Vinícius chegou atrasado no colégio, usando um boné que escondia o cabelo recém-cortado. Aquela foi a primeira vez que eu o abracei sem sentir medo do seu toque. Ele chorou em meus braços e sua dor me atingiu em cheio. 

Para mim às vezes não é fácil aturar os olhares dos outros sobre a textura e volume do meu cabelo, mas eu me mantenho firme. Para Vinícius não foi fácil ter sido enxergado como um bandido pelo simples fato de ser um jovem negro com um cabelo Black Power. E eu estava feliz por ver que apesar da sociedade de merda em que vivemos, ele se mantinha firme. — Bom, eu... — elucida quebrando o silêncio que se instalou entre nós. — Eu só passei aqui pra te ver mesmo. Você sumiu — diz dando de ombros. 

— Quem mudou de cidade foi você — observo. 

— Certo, você tem razão — concorda sorrindo para mim. Ele nota a chegada de uma senhora na Papelaria & Livraria e se apressa em dizer: —  Bom, eu vou indo. Preciso viajar pra Salvador ainda hoje. Até qualquer hora, Vi! 

— Até! 

— Quem é o rapaz? Namorado novo? — questiona Lucimar, aproximando-se de mim. Meus olhos acompanham o corpo que sai porta afora.

— Namorado antigo — explico voltando minha atenção para ela.

— Antigo que quer voltar a ser atual — brinca. As linhas ao redor dos olhos se enrugando. Sorrio de volta para ela porém não lhe digo nada. Ela me direciona seu olhar cúmplice e segue sem pressa para o seu lugar no caixa.

Fazia pouco mais de um ano que eu tinha começado a trabalhar na Papelaria & Livraria da dona Lucimar. Ou melhor, Luci, que era como ela gostava de ser chamada.

Eu tinha acabado de completar dezoito anos e queria de alguma forma não ser financeiramente dependente da minha mãe.

Entre um ônibus e outro, passei em frente à papelaria, e o que chamou minha atenção não foram os materiais escolares ou as lembranças confeccionadas para presente de aniversário, mas sim uma prateleira de livros com clássicos da literatura brasileira quase que escondida no lado esquerdo do ponto comercial. Quando percebeu para onde os meus olhos estavam sendo direcionados, Luci veio ao meu encontro e comentou que poucos eram os jovens que davam atenção àquela prateleira. Eu a respondi que nem todos os jovens se interessavam por Maria Lacerda de Moura, Carolina Maria de Jesus, Mario de Andrade ou Graciliano Ramos, mas que talvez se ela incluísse uma prateleira de literatura contemporânea, o interesse desses jovens poderia ser despertado. Ela me encarou como se eu tivesse lhe dito a coisa mais inteligente que já ouvira na vida, e logo depois me perguntou se eu não gostaria de trabalhar durante a manhã na sua Papelaria & Livraria. Aceitei sem nem pensar duas vezes e mais do que minha chefe, Lucimar se tornou uma segunda mãe para mim. Ou melhor, ela era a mãe que eu gostaria que a minha mãe biológica fosse.

Do outro lado da rua, quase que na mesma simetria, uma das filiais da farmácia Silva Rocha prendia a minha atenção. É quase cômico pensar que eu e minha mãe trabalhávamos tão próximas uma da outra e ao mesmo tempo tão distantes. 

Às vezes eu tinha a sensação de sentir seus olhos em mim, ou melhor, na Papelaria & Livraria, nos momentos em que acompanhava alguma idosa ou idoso até a saída da farmácia. Mas acredito que era só impressão, um desejo reprimido. Ela mal cruzava o seu olhar com o meu na nossa própria casa, imagina fora dela.

Em alguns momentos eu gostava de pensar que a nossa vida seria completamente diferente se meu pai não tivesse morrido e se minha mãe não tivesse se casado de novo. Mas este é o problema do condicional, há sempre um "se", nada é concreto. E me parecia tolice idealizar a minha vida sobre coisas que não dependiam de mim.

Eu não escolhi perder o meu pai aos três anos de idade. Eu não escolhi descobrir aos quatro anos o quanto um homem pode ser desprezível e cruel. Eu não escolhi parecer ser um fardo na vida da minha mãe. Eu não escolhi nada. 

O ônibus do Jardim Petrolar chega, e os corpos apressados sobre o banco adentram ao veículo. Busco mas não encontro o corpo sob o banco com um pedaço ínfimo de papelão em mãos.

— Desculpe não ter olhado por você como deveria — digo em voz alta para o corpo que perdi de vista ou para o pequeno corpo que deveria ter ouvido isso de sua mãe há quinze anos atrás. Não sabia ao certo.


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