Após perder seu pai ainda criança e sob os cuidados de uma mãe ausente, Violeta, aos quatro anos de idade, se viu refém dos abusos do seu padrasto. Abuso esse que a deixou marcas com as quais ela teve que lidar até então sozinha. Aos 19 anos, num país em colapso e quase na metade do seu curso superior, ela recebe o que menos esperava: alguém que a possa ouvir.
Leer másPASSADO. Palavra confusa. Não é que eu desconheça o seu significado. É que apenas não faz muito sentido pra mim. Porque não é como se fosse realmente "algo que se passou". Ele vive. Faz parte do que sou, da mulher que me tornei. E apesar de em alguns momentos eu conseguir encará-lo de cabeça erguida, durante madrugadas como essa eu volto a me sentir indefesa, frágil, um lixo.
Deslizo minhas mãos frias mais uma vez pelo meu rosto pegajoso. O suor recobre a minha pele. A vontade de entrar debaixo do chuveiro me consome, mas eu resisto. — Apenas respire, Violeta — digo mentalmente. Penso em voltar a dormir, mas o medo de tornar a sentir suas mãos ásperas em meu corpo faz a bile subir à minha garganta. Salto da cama, abro a porta do quarto e corro para o banheiro. Ponho todo o meu jantar para fora e dou descarga, com um leve receio de que minha mãe acorde. Retiro a camisa larga e ligo o chuveiro. Esfrego a minha pele com força, acompanhada pelas gotas mornas, incessantes, que recaem sobre mim, me afogando. — Não foi sua culpa, Violeta — repito uma e outra vez na tentativa de me convencer disso, sem sucesso. Quero gritar, mas quem me ouviria? Por mais que eu me esforce, ele quase sempre vence.Marcelo é como um maremoto do qual às vezes eu consigo me afastar da onda e outras que simplesmente eu o deixo me afogar.Pelo reflexo da janela do ônibus eu vislumbro os meus olhos cansados. Uma consequência da noite mal dormida e da manhã agitada na Papelaria & Livraria. Janela afora, a cidade de Alagoinhas quase me sufoca, aprisiona-me. As ruas mal planejadas se confundem. E pensar que Ruy Barbosa um dia a nomeou de Pórtico de Ouro do Sertão Baiano. Ouro que desde 1964, sob a forma de petróleo e gás natural, enriquece os bolsos dos burgueses e marginaliza a massa trabalhadora que compõe os bairros reconhecidos e desconhecidos dessa cidade confusa.
— Iai — cumprimenta Cleo, sentando-se ao meu lado.
— Oi — respondo quase num sussurro.
— Oxente, não dormiu não, foi? Ansiosa por causa do primeiro dia de aula?
— Na verdade, não. Tô de boa quanto a isso. É outra coisa — desconverso.
— Tá bom. Eu já sei que você não vai me contar mesmo... Será que Luzia vai dar aula hoje? A gente só tem aula com ela na segunda.
— E tu acha que ela vai faltar? — ironizo. Cleo assente com um sorriso e seguimos em silêncio pelo restante do trajeto.
O ônibus para em frente à Universidade do Estado da Bahia, e, sem pressa, um a um faz seu caminho para o portão de entrada. É estranho estar aqui de novo. Depois de três semanas de recesso eu quase me esqueci que estudava aqui. Não que eu desgoste da universidade, mas o verbo gostar me parece muito forte para empregar a esse espaço acadêmico. Quarto semestre. Metade do curso, em tese. A área de Letras sempre me seduziu. Queria me graduar em outra cidade, mas não tinha dinheiro pra isso. E como apesar de tudo a UNEB ainda era uma boa universidade, escolhi cursar Letras – Língua Portuguesa e Literaturas aqui mesmo. Alguém passa por mim às pressas, me empurrando para a frente, e eu quase perco o equilíbrio.— Merda! — exclamo, apoiando-me em Cleo.
— Pardon, mademoiselle — pede o rapaz, constrangido. Ele faz menção de estender sua mão para mim, mas eu o detenho.
— Não encosta em mim — digo, irritada.
— Vamos, Filipe. Nós já estamos atrasados — chama a moça a alguns centímetros dele. Ele me encara por alguns segundos e segue com passos rápidos para a sala 13.
— Você tá bem? — questiona Cleo. Aceno em afirmativa. — Essa mania deles de ficar falando francês me irrita.
— Disse a mulher que no semestre passado vivia falando uma palavra ou outra em latim — brinco.
— É diferente, Vi — protesta.
— É diferente por quê? Se eles estudam francês é natural que o falem, né? — replico.
Letras com habilitação em Língua Francesa era a minha primeira opção, mas quando eu vi que na grade do curso não se estudava a literatura brasileira, eu preferi me matricular no curso de Vernáculas.— Tá bom. E por que você não deixou o cara te tocar?
— Eu não gosto de estranhos me tocando. Você sabe disso.
— É, eu sei. Vamos logo porque senão quem vai chegar atrasada é a gente — Seguimos pelo pátio e passamos pela sala 13, com sua porta entreaberta. Visualizo o rapaz e a moça sentados lado a lado, seus olhos fixos na professora à suas frentes. Devem ser namorados, imagino.
Continuo andando logo atrás de Cleo e adentramos juntamente com mais cinco colegas de classe à sala 5.— Gostaria de lembrar-lhes que a nossa aula começa às 13h30 e não às 13h38. Não é porque é nosso primeiro dia de aula que vou tolerar a irresponsabilidade de vocês.
— O ônibus atrasou, professora — ouço alguém argumentar.
— Eu não quero desculpas, Márcia, quero que estejam aqui no horário — Eu ignoro o permanente estado de mau humor da professora Luzia e sigo com Cleo para o canto da sala, tomando os nossos lugares.
Ela exibe em formato de slide a ementa da disciplina de Diversidade Linguística e explica que vamos estudar as variantes do português brasileiro, fundamentando-se na Sociolinguística e na Dialetologia. Seriam aulas maravilhosas se não fosse ela a professora. Luzia é do tipo que adora ressaltar seus títulos acadêmicos e se faz de militante da Sociolinguística nas palestras da universidade. Mas em sala, corrige quando algum de nós fala a segunda pessoa do singular sem conjugar o verbo segundo as regras da gramática normativa. Eu me mantenho em silêncio por quase toda a sua aula. Às vezes acho que ela nem sabe o meu nome, mesmo sendo minha professora desde o primeiro semestre. Abro o caderno, anoto uma coisa ou outra que ela diz e percebo a passagem das horas à medida que o sol forte se ameniza janela afora.— Eu juro, se no próximo semestre essa mulher tiver com alguma disciplina eu tranco o curso — protesta Cleo assim que saímos da sala.
— Você só está dizendo isso porque sabe que ela não ensina nenhuma disciplina do quinto semestre — ironizo. Cleo esboça um sorriso, que desaparece aos poucos quando vê sua irmã, Beatriz, abraçada a Adilson.
— Eu achei que o curso de Educação Física só tivesse aulas pela manhã.
— Beatriz está como funcionária voluntária do UATI, sabe? O projeto que dá aulas a pessoas da terceira idade — explica. Seus olhos viajam do corpo de Beatriz para o seu próprio corpo.
Cleo e Beatriz são irmãs de pais diferentes. Uma em nada lembra a outra. Cleo dizia que ela tinha melanina de mais e Beatriz tinha melanina de menos. O nariz e lábios carnudos de uma em comparação ao nariz e lábios médios da outra; o cabelo 4c crespo e volumoso de uma em contraste aos cachos 3b e comportados da outra; o corpo magro e sem muitas curvas de uma ao oposto corpo curvilínio e sarado da outra faziam com que Cleo se achasse menos atraente que a irmã. Eu a achava linda, mas Cleo não enxergava nenhuma beleza nela mesma. Os homens olhavam para Beatriz como se ela fosse um objeto sexual. O tipo de olhar que me causa ânsia de vômito. Adilson a abraça com um sorriso presunçoso no rosto. Ele é um babaca. Sexto semestre de História, que é um curso noturno, mas a qualquer hora é fácil encontrá-lo pelo campus. Ele é um machista que se faz de anarquista. Um completo idiota. Mas por algum motivo a Cleo gosta dele. Beatriz e Adilson vêm ao nosso encontro, e eu rezo para que o ônibus de 16h25 chegue o quanto antes.— Oi, Cleonice — diz Beatriz, mesmo sabendo que a irmã não gosta do seu nome completo. — Oi, Violeta.
— Oi — respondo, mas Cleo permanece quieta.
— Cleo, Violeta — cumprimenta Adilson.
— Oi — retorque Cleo com um sorriso, mas dessa vez sou eu quem não digo uma única palavra.
Beatriz percebe a mudança na postura de Cleo e se afasta do abraço de Adilson. Às vezes eu acho que Cleo quem dificulta um bom relacionamento entre as duas, sustentando uma rivalidade que não faz o menor sentido. Um silêncio desconfortável repousa entre nós e por sorte o ônibus chega. Adilson faz menção em aproximar seus lábios do rosto de Beatriz mas ela se esquiva e segue logo atrás de mim para a fila que começa a se formar para entrarmos no ônibus. Olho para trás e vejo que Adilson diz algo a Cleo que a faz sorrir. Rolo meus olhos em desaprovação e me concentro nas pessoas à minha frente. Pego um lugar num dos assentos no fundo do ônibus, perto da janela. Cleo e Beatriz se sentam no banco ao lado do meu; apenas o corredor entre nós. Seguem todo o caminho sem olhar uma na cara da outra. Quando o ônibus para um pouco depois do viaduto, elas se levantam. Beatriz passa direto, emburrada, e Cleo sorri de leve para mim. Lucimar sempre diz que cada um tem a família que merece. Eu não acho. Acredito que família é aquilo que a gente constrói. Mas, bem, eu não sou a melhor pessoa para julgar a família de ninguém.28 de fevereiro de 2019Ser escritora é um tanto quanto complicado a depender do ponto de vista. Sendo eu quem sou: mulher, negra, nordestina, pobre e periférica, chega a ser um ofício quase solitário.Mulheres negras escritoras não costumam se declarar como tal. Elas dizem: “Quando eu for escritora… Um dia eu vou ser…”. Ou no máximo falam: “Eu escrevo umas coisas…”, porque o ser escritora parece que não nos contempla, não nos pertence. Saber manipular as palavras não basta se o seu status social e a cor da sua pele não forem os que são aceitos pelo mercado. Afirmo isso sob um olhar pessoal, de quem vivencia isso diariamente, e não fundamentada em pesquisas científicas e etc.Dia desses, eu buscava no g****e por poetisas negras do início do século XX. Sabe quantas apareceram? Nenhuma. E isso não aconteceu porque elas não existiam, mas sim porque a história e seus registros estão em mãos embranquecidas. O que me importa se Cecília Meireles fora a grande poeta do
14 de agosto de 2020Quando eu comecei a ter interesse por rapazes e a querer ter um relacionamento foi algo muito estranho.Eu cresci vendo os meus pais discutindo a todo o tempo e via as mulheres ao meu redor sendo repetidamente traídas por seus companheiros e achando isso como algo natural. Eu sabia que não queria isso pra mim.No entanto eu também não acreditava que algum dia encontraria alguém que me amasse da forma como eu era. Que aceitaria as minhas particularidades, me respeitasse e me transmitisse confiança.Então, quando eu me interessava por algum cara, eu me moldava a forma como eu achava que o agradaria e o faria me amar. E também os idealizava. Eu não os via como realmente eram. Isso fez com que eu desperdiçasse um bom tempo da minha vida dedicando o meu amor a caras que não mereciam nem me ter por perto.E, como você pode imaginar, eu acreditei ou quis acreditar em falsas promessas de homens, que, tempos depois, eu descobri que só queriam me usar
26 de janeiro de 2018Antes de entrar definitivamente nos pontos que quero tratar, entenda que minhas concepções relacionam-se ao lugar de fala que ocupo socialmente. O lugar de mulher negra de pele clara, pobre e baiana que cresceu tendo sua imagem moldada e ditada pela indústria midiática que atende aos interesses da sociedade patriarcal e estruturalmente racista.Enquanto criança, eu quase não me via na televisão. Não havia quem me representasse. No máximo, eu me encontrava naquela propaganda daquela marca de produtos capilares que colocava uma mulher negra de pele clara, magra, que ao ver o reflexo do seu cabelo crespo e frisado olhava-se com espanto, e a voz da locutora ao fundo perguntava: “Quer ter cabelos lindos e saudáveis?”. E ao fim da pergunta, a mulher negra de pele clara aparecia novamente com seus cabelos lisos e um largo sorriso no rosto. E claro, ela segurava, orgulhosa, a linha completa da marca em questão. Imagine a menina de seis, sete anos que ouvia da sua
Eu não sei dizer ao certo quando começou a minha depressão. Às vezes acho que ela já nasceu comigo. Mas eu me lembro bem da menina quieta demais e que quase não falava. A menina que não confiava nas pessoas, que era ridicularizada por ser baixinha demais, barriguda demais, um cabelo duro demais, uma testa grande demais, sobrancelhas grossas demais e que sorria muito pouco. Eu me lembro bem dessa menina porque eu era essa menina.Tudo foi ficando pior aos dez anos, porque fora a época em que eu comecei a entender as coisas que tinham acontecido comigo, mas eu não soube o que fazer para me ajudar.Eu amava o meu cabelo natural. Porém de tanto ouvir os outros falando que ele era ruim eu comecei a alisá-lo. Passei a odiar o meu corpo, e com dez anos, comecei a fazer abdominal. Dez anos.Aos doze, evoluiu o meu medo de estar sozinha nos lugares. Eu evitava passar perto dos homens porque não queria ouvir as obscenidades que eles me diziam: “Gata”, “Morena”, “Gos
SE você chegou até aqui, o meu mais sincero muito obrigada por ter dedicado o seu tempo para ler o meu livro.Não foi nada fácil escrevê-lo. Foram três anos de escrita e reescrita, muitas leituras de relatos de vítimas de abuso sexual infantil, além de alguns artigos escritos por psicólogos sobre o assunto.Foi muito significante para mim ter construído um elenco majoritariamente negro, ter trazido pautas do feminismo e movimento negros, e, aliado a isso, ter ambientado a narrativa em solo baiano e num contexto universitário.Eu espero que você tenha gostado da obra, e, se assim quiser, recomende-a também para outras e outros.Com carinho,Joelma Santos
ERA final de semestre. A universidade estava quase vazia. Eu ainda não tinha me recuperado totalmente da minha apresentação no Seminário Interdisciplinar de Pesquisa. Eu odiava falar em público; ter todas as atenções voltadas para mim. Mas no fim até que fui bem. A banca tinha me dado 9.8. Dois décimos retirados em razão de uma norma de citação indireta da ABNT esquecida.Cleo estava numa das mesas sob o tamarindeiro, acompanhada por Lucas, sétimo semestre de Vernáculas. Ela tinha me contado que eles se aproximaram durante o Fórum da Juventude Preta. Lucas era poeta. Escrevia, principalmente, poesia marginal. Ela o dizia algo, empolgada, e ele a ouvia atentamente; seus olhos concentrados nos olhos dela. Ela sorria. Ele sorria de volta. Sua mão direita contornava o maxilar dela, e, sem pressa, seus lábios se encaixaram. A proximidade de ambos fazendo com que seus cabelos encrespados formassem um coração.As mãos que envolveram a minha cintura e os lábios que beijaram o me
Último capítulo