Em meio à solidão: (Lucas Coppola)

Data: Seis de Abril de 2069

Esse é o diário de Lucas Coppola, e seria mentira dizer que escrevo por obrigação psiquiátrica. Quem se arrisca a ir até um, quando se tem uma doença mortal por aí?

Ok, acho que devo começar explicando coisas que vieram há muito tempo, muito antes de eu nascer.

Era o ano de 2021, e todos falavam sobre uma coisa só. A desgraça iminente, mas não sabiam de que lado viria. Então falavam sobre máquinas, forças da natureza, doenças, golpes em massa, a Terceira Grande Guerra... E no final, eram conspirações, exceto o Vírus.

Chamavam de EP16-877. No começo era uma gripe, mas o genoma foi evoluindo, se tornando uma peste aviária, e depois, quando era raro ter aves nos céus, o simples toque poderia te matar em algumas semanas... Todas as atividades se encerraram, portões foram fechados para evitar aglomerações, e todas as atividades a partir daquele momento tinham que ser realizadas por uma pessoa apenas. Toda nossa informação era gravada individualmente entre suas famílias em fitas cassetes... E sim, eu disse famílias, pois a última descoberta científica era que abaixo dos 21, todos eram imunes ao vírus, então os menores moravam com um de seus pais até completarem a sua maioridade.

Normalmente vivíamos com os pais e não com as mães, pois era difícil fazerem o parto sozinhas, então morriam após ter o filho ou pediam ajuda do pai, mas algum dos dois tinha o Vírus em si logo após... Era um dos principais motivos de casais terem seus filhos na adolescência e divórcios não possuírem mais normas burocráticas.

Fitas cassetes, elas são importantes. Cada família gravava o que achava importante como caça, biomedicina, problemas na casa em geral (mesmo que trocar de casa fosse o mais fácil a ser feito), cozinha, como manter tecnologias, como os geradores que eram essenciais para as casas e cada família comprava o seu... Ou melhor, roubava ou montava com peças de grandes geradores. Ainda tinha um pouco de cultura, esportes, artes e muitas coisas além, o que dependia apenas de quantas fitas você conseguiria manter em casa e do que era essencial para você.

Eu vivo com meu pai, já minha mãe infelizmente eu não pude conhecer. Ela morreu no parto, mas eu não sei como me sentir triste por alguém que eu não conheci. Meu aniversário de 21 anos será em abril no próximo ano, mas em janeiro eu já recebi meu presente. Por precaução vivemos um dia por vez, como se não houvesse amanhã, por que na verdade não há... Acho que isso é citação de algum filósofo antigo, mas é comum ouvir isso de idosos, eles não são atingidos pelo EP, mas há muitas outras doenças para se preocupar.

Ganhei este diário e uma bolsa de couro que o seu Valdemar de Brito, meu vizinho, fez para mim. Ele disse que era inspirado em um filme que ele gostava de assistir quando era criança... Acho que se chamava "Indiana Jones", ou algo do tipo.

Já faz 20 anos desde que nasci, aqui mesmo em Bauru, e mesmo aprendendo a caçar, plantar, manter o funcionamento de máquinas e alguns automóveis, tudo com a natureza em volta... As coisas são bem monótonas por aqui.

Faz anos que fomos liberados de nossas quarentenas, (Mais do que eu tenho de anos vividos) e vejo a vida sendo cada vez mais deprimente. E sempre penso em o quanto me faz mal o fato de simplesmente viver. Às vezes vou até o asilo local conversar com os idosos que vivenciaram aquela época, quando tudo isso começou e antes do grande vírus, o psicológico era a principal preocupação... Ou, segundo eles, deveria ser.

Eles me ajudam com as minhas questões psicológicas, e observo o quão estranho é ninguém mais ir buscar isso.

Lá, fiz um amigo que era o senhor Enzo Pallestrinni. Ele me deu um walkman com algumas mensagens de voz e músicas que ele dizia que já tinham 100 anos: de Chuck Berry e Tom Jobim, até Imagine Dragons e Titãs.

Na verdade, muitos dos idosos com quem eu conversava me davam fitas, e nisso a minha expectativa para a vida melhorou, por que uma vez um filósofo disse: "A vida sem música é um erro", e eu tinha vivido errado até aquele momento

Naquele meio, eu fui me apagando a filosofia e à arte em geral... De vez em quando, ia lá só para assistir algum esporte de anos atrás com eles e vibrávamos com todas nossas energias. Naquele dia vimos um cara chamado "Ayrton Senna" correndo na chuva, e o quanto aquilo era mágico no olhar até mesmo para quem não viveu aquilo.

Um senhor lá, sempre fazia analogias de eventos esportivos contando histórias épicas de aventura, e à história que ele havia me contado era a fábula "Os Urubus". Nessa fábula, acontecia o seguinte:

"Todos os anos, animais em toda a floresta e guerreiros, que de animais só tinham a selvageria, disputavam para conseguir melhores alimentos... todo ano, quatro caíam e quatro entravam na arena. Havia diversas maneiras de conseguir voar para ganhar alimentos melhores, mas o melhor de todos era atravessar o mundo, mas para isso teriam que derrotar todos.”

“Os Urubus não viam seu grande prêmio dentro da sua floresta há 10 anos, e sobrevoando o continente já não viam o prêmio há 38 anos, então esperavam algo melhor neste, já que uns mais fortes haviam chegado para ajudar seu Urubu rei, mas não esperavam a devastação que um incêndio no ninho havia causado e haviam perdido os filhotes. Deviam seguir em frente, mesmo com a tristeza os acompanhando. Voaram até Oruro, para derrotarem os Tatus, que não lhes feriram tanto e depois voltaram para suas casas, nas praias próximas a Copacabana, e lá ficaram Três dias, defendendo.”

“Primeiro, os homens Universitários Equatorianos vieram com suas máquinas, mas os Urubus logo depois teriam que lidar com uma investida feroz dos Tigres Uruguaios que eliminaram um de seus mais fortes, mas logo todos aqueles pássaros foram embora, com um dano apenas, e viram os Tatus de Oruro entrarem em seu território... O território de origem daqueles de penas negras... e atacaram sem piedade e seis vezes marcaram suas garras nos cascos dos intrusos.”

“Após isso, subiram à altitude Equatoriana, acima de uma torre, para então enfrentar as Bordadeiras dos Universitários, e mesmo com a derrota, não houve feridos, e em seguida foram ao Uruguai, onde os Tigres não fizeram mais que um empate, e assim descansaram.”

“Após seu descanso, avistaram o Horizonte e viram Urubus vindos da Europa com seu Urubu rei. Haviam eles trocado tudo por uma caravela escura e um Urubu Português chegou como novo rei acompanhado de muitos outros de peso, força e fé na conquista. Partiram ao Chile, onde os Leões os aguardavam, e lhes receberam arduamente, e nas praias do Rio, lhes devolveu na mesma medida. Receberam os Sacis do Sul Colorado, e descontaram dois ataques, depois foram às praias gélidas do Sul do país e mantiveram um empate, e no Sul ficaram para enfrentar Mosqueteiros de Azul Grenal que se sentiam como senhores do tempo.”

“Por cinco vezes o barulho das aves parecia ter sido congelado no tempo, mas mesmo assim um Urubu subiu, e não com as garras, mas com a cabeça, empatou o jogo. Então voltaram à Copacabana, onde cinco vezes os Mosqueteiros foram até a Grama. Seu líder conhecia o jogo, seus defensores acusavam que o abismo estava olhando de volta até que então, o capitão dos Urubus, há muito sem voar, pousou e suas asas refletiam a Luz.”

“Depois disso foram enfrentar os Galos Argentinos no solo Peruano, e os Urubus já não se importavam com os Peixes que vinham a terra. Tomavam vilas e fuzilavam... Muito menos se importavam com os Porcos verdes da capital paulista.”

“No Peru, os Galos dos Rios de Pratos descontaram primeiro, mas em 3 minutos, Duas vezes os Urubus desceram, e assim ficou até o fim. Os Urubus agora voariam até o Oriente Médio, enfrentar as Gralhas Inglesas de Liverpool que conquistaram a Europa"

Essa foi à história que o senhor Barbosa havia me contado, de como 42 milhões de pessoas pararam para dizer que naquele dia, certo Urubu iria atacar... Hoje nem sei se tem tanta gente assim no país.

Enquanto escrevia essa história, ouvia meu Walkman, e ouvi uma voz, dizendo coordenadas... Não às entendi de início, pareciam meros números aleatórios, mas em poucas horas consegui entender o real sentido de tudo aquilo, e onde era a localização daquele padrão.

Ao amanhecer, fui correndo ao Asilo, com uma rápida despedida ao meu pai, e fui ao encontro do senhor Pallestrinni, mas não achei ele lá.

Fui até seu quarto, e lá ele não estava, perguntei para uma enfermeira onde ele estava, e ela apontou para o cemitério atrás do asilo, onde vi apenas uma moça, e um padre do Asilo, que era meu avô, Frank Coppola. Acho que me esqueci de mencionar ele nas últimas páginas, certo? Um homem que sempre teve orgulho de sua cor, assim como eu da minha, ele vivia dizendo que racismo, discriminar pela nossa cor era comum, mas hoje somos uma maioria, quase 88% de acordo com o que tenho ouvido, e hoje não há tanto racismo, não quando sua maior preocupação é acordar vivo amanhã... Acho até que uma pandemia faz vermos que todos somos iguais e da mesma cor por dentro.

Fui até o que era o Funeral do Senhor Pallestrinni, só havia três pessoas, e logo após a leitura do Salmo 23 da bíblia, meu avô questionou se alguém tinha alguma homenagem a prestar, ou contar algo. Uma moça abaixou a cabeça e começou a chorar, então comecei a cantar uma das músicas que ele havia me dado em uma das fitas. Não me lembro do porquê de ter feito aquilo, mas parecia ser algo que ele gostaria de ouvir.

O nome da música é Epitáfio, Titãs. Lembro-me da comoção dos poucos presentes, ainda mais por ser cedo demais, mas já chovia, assim como naquela corrida da TV

Passou-se algum tempo, umas xícaras de café, e então a moça chegou e me entregou uma caixa azul de madeira e cravado nela estava o destinatário para Lucas Coppola.

(Eu? Mas por quê?)

Chegando em casa, vi que tinha uma chave, com um pedaço de papel no seu chaveiro, escrito: "siga as coordenadas". E um bilhete com duas fitas VHS que dizia: "aqui está como as histórias terminam, a fita 1 é a história do Barbosa, e a 2 é a minha história, você vai entender".

A fita 1 era a "História do Barbosa - Flamengo Vs. Liverpool 2019"

Assisti ao jogo inteiro, narrado por Milton Leite, e com Mauro Betting de comentarista.

Já a Fita 2 estava escrito: "1994, o fim".

Nessa fita, o Senna estava correndo normalmente, não fazia chuva e certamente ele ia ganhar, eu sentia isso, o brilho estava lá, mesmo com um novato chamado Michael Schumacher, eu sentia isso, mas assim como os Urubus, eu senti a Vitória, e veio a derrota. Na voz e nos prantos de Galvão Bueno, a batida de Ayrton Senna foi dramática, minha boca estava aberta e eu não conseguia me mover, estava em choque, e comecei logo a chorar.

Por que estou chorando por alguém que não conheci e morreu há quase um século atrás?

Vendo mais percebi que a caixa azul tinha um fundo falso. O tirei com as abas que das laterais e lá estava um condutor de energia pequeno e uma carta que dizia: "você já sabe o fim que levaram os seus heróis, escreva o seu... leve essa chave e o condutor até minha casa, nessas coordenadas".

Era tarde da noite quando estava saindo para a casa do meu velho amigo, e meu pai de verdade, por mais triste que estivesse, sabia que em alguns meses, ele talvez não me veria nunca mais, então se eu sumisse de vez em quando, era uma forma de preparar as próprias lágrimas.

Peguei a chave e o condutor, e deixei do lado de dentro da minha jaqueta, peguei uma lanterna e uma pistola de caça para o caso de aparecer alguma ameaça e minha mochila. Amarrei com um pouco de fita isolante, uma espécie de GPS ao meu braço. Eram coisas antigas que achei, trabalhei no conserto delas, então juntei um teclado, um radar nivelador terrestre e uma bússola. Não faço ideia do que eu fiz, mas deve ter funcionado para alguma coisa.

Cheguei à frente de uma mansão, a janela lateral semi-aberta com pegadas perto dela. Contornei até chegar à porta da frente... Para a minha surpresa, ela estava aberta e com marcas de terra e não era minha chave que devia abrir por ali.

Contornei novamente até chegar por trás da casa, em um porão fechado, e a casa era perto de uma linha de trilhos de trem que não notei à primeira vista. Cobertos pela grama.

Abri o cadeado que prendia as correntes que fechavam o porão. Após abrir as portas desci as escadas, olhei por todos os lados e não havia quadro de força algum lá. Antes de tudo, fui ao lado da escada que adentrava a casa e tirei os calçados cheios de terra, pulei o corrimão tentando não fazer barulho, e lá abri minha mochila, colocando outros calçados limpos para entrar na casa.

Averiguando aos poucos, descobri onde estava o quadro de força, e já estava aberto, com outros quatro condutores. O meu obviamente ia ao espaço que faltava, e as luzes se ligaram, o que tornou inútil a minha lanterna. Me vi na entrada de um quarto octogonal com outras quatro pessoas lá dentro, elas estavam apontando as armas umas para as outras, encostadas nas paredes do octógono feitas de vidro. Fui o primeiro a perguntar os nomes, enquanto demonstrava redenção e tirava a minha arma do coldre para soltá-la ao chão. Logo após disse meu nome, e que havia sido convidado pelo senhor Pallestrinni.

Na sala havia um garoto de cabelos cacheados e moletom com cores da bandeira estadunidense, roupa que o senhor Pallestrinni tinha. Umas enfermeiras me contavam que ele gostava de moda, mas não falava tanto disso comigo. Ele mesmo dizia que aquilo não era moda, apenas uma jaqueta extravagante com cores de uma bandeira de outro país.

Um cara lá parecia ter a minha idade – talvez mais velho – e perto do seu pulso uma cruz dourada. Padres eram mera formalidade na época, mas uma cruz celta dourada? Ouvi dizer que o senhor Pallestrinni não era religioso, mas apreciava arte referente ao catolicismo. Assim como todos os que julgava ter bom gosto com as “artes incrivelmente belas” segundo ele.

Tinha uma garota loira que parecia mais nova com piercings pelo rosto, alargadores e um livro de "Assassinato no expresso do oriente" no seu bolso. Eu sabia que o senhor Pallestrinni não gostava de piercings e alargadores, mas já havia trabalhado com aquilo quando jovem, antes da doença. E também adorava ler.

Garota ali devia ter a minha idade. Morena igual a mim, fumando um charuto cubano depois de tudo ficar calmo. O Senhor Pallestrinni não fumava, mas era colecionador de charutos pelo que me lembro.

Nesse momento ficou claro para mim, por isso me rendi. Todos haviam sido convidados pelo senhor Pallestrinni e a casa só funcionaria com cinco pessoas, não era feita para alguém viver só, se não o próprio senhor Pallestrinni estaria vivendo lá.

A partir daqui, começamos a escrever a história juntos nesse mesmo caderno, você entenderá com o tempo, então não estranhe a mudança de formato.

A partir de agora, enquanto estou olhando para eles, lembrando do caminho até aqui, escrevo estas palavras. Digo isto, pois estou confiando este caderno com você, leitor, para que mantenha em segurança.

Lucas: Eu fui convidado pelo Senhor Pallestrinni. Vocês também... Me chamo Lucas, mas quem são vocês? (lembrava de ele ter dito muito pausadamente, como se organizasse as ideias sobre a situação)

A garota morena largou a arma lentamente e disse: não esperava menos vindo do senhor Pallestrinni — ela deu uma leve risada — meu nome é Julia... É verdade que você cantou Titãs no funeral do Senhor Pallestrinni?

Todos começaram a largar as armas lentamente, então eu parei e disse: vamos fechar a casa e depois nos apresentamos... Pode ser?

Nós cinco corremos. As janelas e portas foram fechadas. Corri até o porão e puxei a corrente que estava do lado de fora, e percebi algo se movendo.

Uma onça dentre os matos, perto do trilho, e ela avançou em minha direção. Eu estava deitado nos degraus, me esticando para puxar a corrente com cadeado, consegui alcançar e vi um vulto pular na minha frente, seguido do som de um tiro. Vi o corpo do animal caído atrás de mim.

Olhei para a escada de trás, e Julia a matou com um tiro entre seus olhos.

Puxei a corrente e tranquei a porta do porão por dentro.

Nós cinco fomos até a Sala, nos reunimos em torno sofá no formato de "L". Perto de TV gigante, maior do que qualquer uma que eu tinha visto, e suspensa num Hack, e em torno, prateleiras preenchidas por várias fitas VHS em um formato de arco, separando fitas de esportes, filmes, documentários, animações e qualquer outra coisa a ver com arte e cultura. Dos lados havia armários com portas de vidro, que guardavam discos de vinil e fitas cassete, e abaixo da TV havia um compartimento aberto para uma vitrola/toca fitas

Todos nós deixamos nossas armas sobre a mesa de centro com plataforma de vidro.

O garoto de cabelos curtos e cacheados disse: Meu nome é Charlie, o senhor Pallestrinni me chamou aqui por meio de um tipo de herança.

A garota loira disse: Eu me chamo Giovanna, acho que faz sentido não estarmos aqui para nós matar.

O cara que parecia ser mais velho demonstrou certo peso em suas palavras e disse: Bom, eu me chamo Antony e nunca tive um lar, desde que eu me reconheço como ser humano eu vivi naquele asilo, e meus pais devem muito bem ter morrido.

Lucas: todos receberam cartas? Ou foram presentes para carregar por aí? - Eu disse num tom no mínimo indignado, pois todos tinham lembranças maiores dele, e eu tinha uma chave e um condutor.

Todos se entreolharam sem saber do que falamos e Charlie disse: você recebeu uma carta? O que ela dizia?

Eu li ela em voz alta, e eles sorriam para mim como se eu tivesse ganhado na loteria, eu sem entender, fui explicado por Giovanna do por que todas aquelas facetas estranhas me encarando, mesmo eles só tendo percebido por uma sinalização corporal: Você o conhecia, ele contou para você o que ele tinha de mais valioso... Seu passado, e te deu heróis que te guiam para escrever seu novo presente — ela sorriu como se fizesse parte do Senhor Pallestrinni — você não recebeu um presente, e sim a oportunidade de moldar o próprio.

A conversa havia ficado boa a partir daí, e fomos perdendo desconfiança, pegamos um vinho da adega e bebemos vendo um jogo de futebol americano... Acho que eram Rams e Chiefs de 2018. Torcemos com algo tão antigo e foi lindo... mas logo após o jogo, ouvimos batidas na porta, eu e Antony deixamos as taças em cima da mesa, pegamos as armas e fomos até a porta, com as armas ocultas e as batidas que não acessavam. Deixei a porta semiaberta e perguntei do que se tratava... Ficamos surpresos com a resposta.

O homem de preto dizia ser dos correios, carregava uma caixa e dizia que eu era o destinatário, mas não só eu, ele citou o nome de todos lá dentro, deixou a caixa sobre o carpete após confirmarmos e saiu. Nós pegamos a caixa de papelão e abrimos esperando não ter uma bomba. Era mais uma fita VHS com muito isopor a cobrindo.

Fomos até a sala e Giovanna, ao ver a fita em minhas mãos, perguntou do que se era, eu falei que era do Senhor Pallestrinni e coloquei a fita no aparelho. Nela havia um vídeo do Senhor Pallestrinni dizendo: Olá, Antony, Lucas, Julia, Giovanna e Charlie. Dei a vocês o acesso da minha casa, por que vocês foram bondosos em vir aqui me visitar, sendo que minha própria família nunca veio — e deu uma pausa com uma respiração pesada — eu vivi numa época onde arte e cultura faziam milhões felizes, e hoje quase ninguém vê... Pois essa merda de doença — sua expressão por um segundo, só demonstrou puro ódio, mas voltou ao normal — fechou tudo, ninguém podia estar junto, nem para fazer as coisas que fazíamos sem TV ou Internet, que é muito mais antigo que eu. As pessoas não têm tempo ou como, só trabalham e fazem isso sozinho — ele deu outra pausa com uma tosse dessa vez — e quando o trabalho exige mais de um, eles precisam manter uma distância que nenhum humano deveria.

Nós continuamos vidrados no vídeo e ele continuou a dizer: quero que vocês vivam bem, vivam juntos, então vivam na minha casa, tem cômodos para Cinco, estúdio de gravação, TV ótima, até um pequeno anfiteatro.  Esse é meu real presente, uma vida nova para vocês... Se quiserem esquecer que essa doença existe — ele deu um sorriso antes de terminar — Ouvi dizer dos médicos que até ano que vem o vírus poderá sofrer alguma limitação, e quem sabe vocês aproveitem isso é se tornem os primeiros imunes a conviverem?

Então aí o vídeo acabou

Charlie deu uma olhada para todas as fitas Cassete e VHS, e vinil, virou para todos nós e disse: Acho que antes de fazer, devemos parar um pouco e fazer o que já é nos ensinado há um tempo - ele deu uma breve pausa, mas depois voltou - estudar tudo isso.

Todos concordaram, passamos os três meses seguintes naquela casa, assistindo, e quando alguns dormiam, o outro que não conseguia dormir bem, sempre separava em tópicos de quem estava falando quando pegava o diário e escrevia coisas que achava essencial... Eu não sabia ainda se poderia confiar neles, foi um risco a se correr, mas se não pudesse, eles teriam atirado em mim antes. A doença criou pessoas mais pacíficas nas ruas aqui em Bauru... O maior perigo está dentro das casas, é lá que mora o preceito de preconceito.

Acho que nesses três meses percebi, eu tinha amigos, e eu me sentia confortável e caloroso com eles, e o sangue que corria em minhas veias pulsava quente, era como se os dias cinza nunca tivessem existido.

Depois desses três meses, combinamos de voltar para casa, só para explicar, e voltaríamos à mansão com frequência, mas não pretendíamos viver ali para sempre, ao completar 21 tínhamos que torcer para que tudo se fosse, e pudéssemos voltar ali.

Naquela noite estava voltando para casa, e quando cheguei sorrateiramente, sem fazer barulho algum, vi que não adiantava, meu pai estava lá na cozinha, sentado, me vendo entrar... Eu me assustei, mas ele se levantou e veio em um tom ameaçador com perguntas demais: "onde você estava esse tempo todo?", "acha que pode entrar assim?" e "você precisa de um mínimo de responsabilidade a mais para viver nos dias de hoje moleque?"

Foi ao dizer essa última frase que ele me puxou pelo braço e me perguntou por que meu sangue estava azul tão forte?

Eu percebi, de tudo que estudei nesses anos, quando alguém está com o vírus e prestes a morrer, sua visão enxerga pigmentos de cores em um tom vibrante, e logo após isso, meu pai deu uma parada de voz que se notava pelo som que veio da sua garganta. Caiu para frente, onde eu impedi sua queda, e passei a carregá-lo pelos braços. Arrombei a porta da minha própria casa aos chutes carregando ele, gritando pelas ruas, com esperança de ajuda, e quando notei, dos lados, nas casas as pessoas fechavam suas cortinas com olhares tortos.

Vi uma pessoa na rua, e gritei por socorro, ela veio correndo. Era a Júlia. Ela me ajudou a carregar meu pai até o asilo. Perto da entrada, Antony veio correndo até nós... A enfermeira insistiu que tirássemos meu pai de lá para não infectar os funcionários, então o Senhor Barbosa se levantou, colocou ele na maca e levou ele até uma sala de emergências e tentou usar um desfibrilador, junto com uma máscara de vapor. E lá esperávamos por horas, até que Charlie chegou com uma bolsa de couro e acompanhado de Giovanna, ele olhou para mim, e eu sinalizei a direção de onde ele estava então ele tirou um frasco da bolsa e correu até lá.

Charlie

Lembro-me do dia que o pai do Lucas estava mal, cheguei ao Asilo para tentar ajudar, mas se de tentar vivesse o homem, a vida seria feita de incertezas maiores do que quaisquer outras. Fui até a sala onde o Senhor Barbosa estava, e abri um frasco com um líquido medicinal, e achei que poderia ajudar.

O Senhor Barbosa me questionou o que havia no frasco, antes de entregá-lo, e fui sincero em responder: "Heroína destilada". Ele me perguntou se era sério, e só confirmei quanto era sério. Ele disse que talvez funcionasse, mas dosado, então injetou ela no soro, e colocou no braço dele.

Vi o pai de um dos meus únicos amigos acordar atônito e traumatizado, e logo em seguida desmaiou, o Senhor Barbosa me pediu para sair, mas não tão gentilmente. Então nós Cinco esperamos, e o Senhor Barbosa se dirigiu até o Lucas

Lucas

Vi o Senhor Barbosa se abaixar na minha frente para dizer a notícia, já era 6 da manhã, Julia se apoiava no meu ombro direito e passava a mão na minha perna para me acalmar, Charlie andava de um lado para o outro, toda hora bebendo café, Giovanna estava de pé perto do Senhor Barbosa, e Antony estava sentado à minha esquerda, encobrindo o rosto com as pernas e meu rosto estava paralisado.

Seu funeral foi atrás do asilo, perto do túmulo do Senhor Pallestrinni, meu avô estava lá, como padre e como pai, e suas lágrimas perfuravam o vale das sombras da morte, forçando que fechasse sua bíblia para não continuar molhando, meu corpo desabou em tristeza, no abraço caloroso de Julia, eu pedia desculpas por molhar com lágrimas seu ombro, e ela dizia que estava tudo bem, que eu havia chegado ao "abrigo", e assim ficou incessante, na casa do Senhor Pallestrinni, o silêncio perdurou por dias.

O silêncio acabou no meio de uma noite, e lembro bem, Julia foi até meu quarto, pois todos percebiam como eu ficava durante as noites. Então ela se deitou ao meu lado, e me virei para olharmos de frente, nos olhos um do outro, e ali se escorreu a minha última lágrima pelo meu pai, minha respiração passou a ser leve de novo, graças ao olhar dela, e com um beijo, se encerrou o silêncio que nos incomodava. Enquanto nossos lábios se encontravam e nossas roupas sumiram, nós estávamos encerrando o antes estado de luto, para então ter um momento de euforia, enquanto tudo acontecia.

Na manhã seguinte, a casa já tinha sinais de alegria voltando, então decidimos como faríamos as sugestões do Senhor Pallestrinni, decidimos escrever Filosofia, contar mais fábulas de eventos esportivos, gravarmos músicas novas e autorais, ou regravar algumas antigas, pegar câmeras velhas e gravar peças de teatro, com um pouco de sonoplastia fingir que tínhamos uma platéia, pintar, desenhar, escrever poesias, até mesmo dança entrava nisso, e ao final de tudo, colocaríamos tudo em um tubo que havia na casa (nessa respectiva ordem), era um cilindro, com uma ponta circular, todo feito de cobre, e com uma entrada... Deixaríamos como uma cápsula do tempo, para as próximas gerações, gerações curadas, e quando terminássemos, viajaríamos pelo mundo... Estávamos esperançosos de que a doença ia acabar no próximo ano.

Então começamos adotando pseudônimos para nos nomear nas obras. Escolhemos personalidades entre as décadas de 1940 e 1960, há mais de um século: Antony escolheu Tommy Thompson, Quarterback dos Eagles nos títulos da NFL em 1948 e 1949. Charlie escolheu Frankie Valli, cantor que fez sucesso entre os anos 50 e 60, principalmente com a música "Can't take my eyes of you". Julia escolheu Audrey Hepburn, atriz que fez sucesso entre os anos 50 e 60, principalmente com o filme "Minha Bela Dama". Giovanna escolheu Jane Austen, talvez a mais antiga entre as referências, já que se tratava de mais de dois séculos, mas sua escrita teve uma grande valorização artística no cinema, principalmente após a década de 50. E eu escolhi Friedrich Nietzsche, que foi recorrentemente citado durante boa parte da história, mesmo tendo morrido no início do século.

Reunimos-nos na sala todos os dias durante debates de tudo que havíamos lido, para montar teses, mas quais todos escreveram nesse caderno as suas teses, após debates, e sempre, independentemente do que falássemos, caiamos em Descartes, Sócrates, Platão, Aristóteles, Nietzsche, Pondé e até algumas figuras de outras áreas, como Vinicius de Moraes, Gonçalves Dias, Einstein, Tesla, Newton, Armstrong, Darwin, Martin Luther King Jr, Carl Sagan, Hawking, Jesus, Gandhi, Elon Musk e vários outros nomes.

Estava perto de agosto e já tínhamos começado as regravações. Eram mais de 1000 músicas, para então gravarmos, mas um dia em especial no início de agosto fez com que parássemos as gravações

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