Um homem impertinente...

Pela primeira vez em anos, acordei me sentindo disposta e feliz até mesmo pelos raios de sol que iluminavam o quarto e minha vida que antes parecia viver sob uma escuridão profunda. Bocejei tentando me erguer e então senti algo pesar levemente sobre meu corpo, olhei para baixou e fitei o pequeno Kappa que dormia serenamente, deitado sobre minha barriga, suas pernas escorriam por cada lado de minha cintura o que lhe dava uma aparência engraçada, poderia confundi-lo com uma criança humana se não fosse por sua pele esverdeada.

A água em sua cabeça não escorreu durante a noite, permanecendo leitosamente no cantinho da tigela, inclinei a cabeça para o lado e me perguntei que tipo de convivência teríamos a partir daquele momento, éramos de espécimes completamente diferentes e nem nossos elementos eram compatíveis, suspirei confusa e acabei me perguntando o que minha mãe faria nesse tipo de situação.  Parei de refletir sobre aquele pequeno ser quando ele se remexeu em cima de mim, seus grandes olhos esverdeados abriram-se lentamente e começaram a olhar para os lados como se procurasse saber onde estava.

De repente, os orbes negros e luminosos arregalaram-se, fitando-me em silencio como se não pudesse acreditar em todos os acontecimentos do dia anterior, o que confesso ser realmente surpreendente e quase impossível de se repetir. O ergui com as duas mãos, colocando-o sentado ainda com as pernas espaçadas e lhe sorri.

– Hikari! Sussurrei analisando-o por alguns segundos, aquele me parecia o nome que melhor se encaixava em suas características, principalmente por causa dos olhos grandes e pretos.

Ele inclinou a cabeça para o lado me olhando confuso, ainda sentado na mesma posição em que o coloquei, mas logo baixou a cabeça e fitou as próprias mãos que estavam espalmadas na minha barriga, pequenas e frias como as do anfíbio aquático que descendia.

– Me sentiria mais confortável se pudesse te chamar por algum nome, o que acha de Hikari? Perguntei começando a me preocupar com a possibilidade de ele já possuir um nome e não ter me dito como forma de proteção. –Porque seus olhos brilham como estrelas, mas vou entender se já tiver um nome...

Ao ouvir minhas palavras, seus olhos brilharam mais ainda, por estarem marejando em emoção e de súbito, sorriu, abraçando-me com seus braços magros e frágeis, parecia estar me agradecendo por um gesto tão simples. Pelo visto, ainda não havia sido nomeado, e temo que sua mãe tenha morrido antes disso. Meu coração apertou-se com a possibilidade e sorri tentando o confortar, mesmo que nada pudesse ser feito para que superasse a dor de perder um ente querido como a mãe.

Nesse momento, levantei-me decidida a não o deixar sozinho mais em momento algum de sua vida, não poderia substituir sua mãe, mas posso ser ao menos sua irmã mais velha e protetora. O levei para a pequena cozinha que ficava a alguns passos do quarto já que o apartamento basicamente não tem divisórias e enchi sua tigelinha com água da torneira, rezando para o cloro não lhe ser prejudicial.

Em poucos minutos nossa refeição ficou pronta, um pouco de arroz branco, legumes cozidos ao vapor e para completar, grelhei algumas fatias finas de corvina, servindo-os em pequenas tigelas sobre a mesinha de centro que uso como mesa. Comemos juntos, em silencio e depois de lavar as louças com a ajuda do pequeno Kappa que cabia facilmente dentro da pia, tive que ter o dobro de cuidado para não o ensaboar junto e quando finalmente terminamos, o enfiei na bolsa e o levei comigo para o colégio.

Aquele era o maior instituto de ensino em que já estudei, contando com quatro andares, salas espaçosas e uma quadra de esportes grande o suficiente para dez turmas fazerem atividades diferentes, mas minha parte predileta era o pátio central que mais parecia um jardim afinal, ao lado ficava a estufa onde alguns estudantes ajudavam na manutenção de espécies pouco conhecidas de flores e inclusive frutas como morangos.

Enquanto caminhava pelos longos corredores, ouvindo os outros estudantes conversarem animadamente e rindo alto, tudo isso enquanto eu tentei ao menos me situar naquele novo ambiente, Hikari observava tudo parecendo ansioso, farejando os cheiros novos de perfumes e do próprio corpo dos humanos ao nosso redor. Sei disso, porque ele ficava se remexendo dentro da bolsa em minhas costas, sempre que eu passava por alguém.

Após caminhar por quase meia hora, subindo e descendo escadas, aos poucos minha paciência começava a se esgotar, procurar por minha sala praticamente avulso estava me deixando louca, fazendo com que me perguntasse como podia um colégio tão grande não possuir informações melhores nas paredes.

Parei no meio do corredor, fervendo de raiva e respirei fundo, tentando me acalmar enquanto ignorava os olhares de curiosidade dos outros estudantes, olhei novamente meus horários e voltei os olhos as dezenas de portas idênticas enumeras em tinta preta, mas não consegui encontrar a minha.

– Sala 22 A, inclusive é a minha também! Um rapaz explicou surgindo de repente ao meu lado, sua voz era tranquila e aveludada, sendo realmente confortável de ouvir.

Virei-me para fita-lo de perto, seu corpo era grande e atlético, sendo muito mais alto que a maioria dos adolescentes japoneses o que me fez questionar se era mestiço, seus cabelos eram absurdamente negros e pareciam ter sido bagunçados propositalmente. Seu rosto pálido era razoavelmente bonito, com lábios avermelhados e olhos com um desenho bonito. Estava parado ao meu lado, as mãos nos bolsos e um sorriso de canto, ostentando uma expressão de quem me renderia problemas.

– Obrigada! Agradeci um pouco desconcertada, abaixando os olhos imediatamente, temendo que ele pudesse ver algo que considerasse anormal em mim.

– Não precisa se preocupar, somos iguais! Ele sussurrou sensualmente próximo ao meu ouvido, ronronando levemente em seguida.

Ergui o rosto lentamente e pude ver que ele passava a língua por um par de presas brancas e enormes, seus olhos também estavam dourados e brilhantes, me fitando com intensidade.

– Não sei do que está falando! Gaguejei tentando fugir dele, fiz uma reverencia rápida e virei-me para entrar na sala.

Mas antes que pudesse seguir meus planos, senti uma calda felpuda enrolar-se ao meu redor mim, olhei para baixo surpresa e pude me certificar que era uma calda de raposa, espeça e de pelos negros. Arregalei meus olhos, dividindo minha tenção entre ele e as pessoas que passavam ao nosso redor e fiquei ainda mais impressionada quando percebi que elas pareciam não reparar o que estava acontecendo.

– Como você ...? Perguntei tendo dificuldade em manter a boca fechada, e ainda com os olhos arregalados em sua direção.

– Você não controla o que quer que vejam? Ele questionou parecendo surpreso com aquilo, arqueou uma sobrancelha e me encarou mais de perto. – A propósito, porque diabos, você trouxe um Kappa para um colégio!

– Não queria que ele se sentisse sozinho! Respondi no automático, como se estivesse hipnotizada por ele, e de fato, era como se estivesse. Nunca havia visto um kitsune puro, lembro apenas vagamente da minha mãe que era uma, então aquela situação estava sendo realmente intrigante.

–Então... você é uma mestiça! Ele observou enquanto afastava-se um pouco, o suficiente para me olhar de cima a baixo e vendo que não retruquei, ele continuou. – Desculpe se te assustei, como tenho pouca prática com humanos, vocês me intrigam muito...

Eu nada disse, não sabia o que fazer. Então, girei nos calcanhares ainda em silencio e apenas entrei na sala meio entorpecida, sentando-me ao fundo. Ele me seguiu rindo, e sentou-se ao meu lado, puxando assunto esporadicamente.

– Então... – Comecei, mas fiz uma pausa para escolher as palavras corretas. – Porque ninguém vê sua verdadeira forma, mesmo mostrando?

Ainda há muitas questões que desconheço a resposta, e como ele parece disposto a não me deixar em paz, pode ao menos responder algumas delas.

– Porque eu controlo para quem quero mostrar! Ele sorriu, explicando o que lhe parecia óbvio e me estendeu a mão educadamente, parecendo ter acabado de lembrar que não se apresentou adequadamente. – À proposito, me chamo Haru!

Ele estava bem ali, sentado ao meu lado e tagarelando como se fossemos amigos há anos, sorrindo e gesticulando enquanto explicava sobre seu método infalível para “cegar” as pessoas que ele não planejava mostrar sua verdadeira forma. Inclinei a cabeça em sua direção e forcei um sorriso, enquanto isso podia sentir um dos meus olhos fechar-se parcialmente num tique nervoso. Ele estava me enlouquecendo.

"Porque exatamente você grudou em mim?" Questionei mentalmente, mas não consegui refletir muito sobre isso pois, logo minha mente pareceu ficar em banco. Ele estava me olhando fixamente, como se estivesse hipnotizado, seus olhos voltaram a ficar dourados e eu pude ver suas presas crescerem novamente.

– Da pra parar de me olhar assim? Pedi levando as mãos ao topo da cabeça onde minhas orelhas de raposa haviam surgido sem minha vontade, como o clima estava ameno, havia esquecido de puxar o capuz.

– Olhando como? Ele retrucou parecendo não perceber a expressão que estava fazendo para uma mulher que acabara de conhecer.

– Com cara de pervertido! Resmunguei começando a me sentir incomodada com os hormônios que aos poucos eu podia sentir no ar, provavelmente somos da mesma espécie e institivamente ele está me reconhecendo como uma parceira em potencial.

– Você não tem controle das suas características Youkais? Ele mudou de assunto, seu rosto enrubescido, parecia que realmente não estava me “secando” de propósito.

Agradeci mentalmente, me sentindo menos desconfortável e sem responder o óbvio, puxei o capuz do casaco cinza, cobrindo minhas orelhas e rosto. Haru continuou olhando-me como se eu fosse um animal raro e suspirou. Estreitei os olhos em sua direção, deixando claro que não estava gostando daquilo, mas ele apenas sorriu de canto, tentando me seduzir com suas presas perfeitas.

O fitei seriamente por alguns minutos, lembrando de ter lido sobre nossa espécie em um dos antigos livros da biblioteca de minha mãe, o único que sobrou após o incêndio e o mesmo que Sophia destruiu a capa, nele havia informações sobre como kitsunes machos, e de como têm dificuldades para manter seus instintos sob controle quando encontram um par em potencial. E pelo que vejo, este é o caso de Haru, um homem que acabei de conhecer e instintivamente já está planejando se casar comigo.

– Você é mestiça, não é? Haru questionou, chamando minha atenção, uma de suas mãos apoiada no queixo e um sorriso idiota estampado na cara, enquanto a calda felpuda balançava lentamente como uma raposinha animada.

– E você é um cara bem esquisito! Resmunguei sentindo-o me farejar, virei-me para ele e, para a minha surpresa seus olhos estavam arregalados e pareciam magoados.

Curvou-se respeitosamente e me pediu desculpas ainda mantendo os olhos baixos, parecia verdadeiramente envergonhado, sua calda havia se enroscado em sua perna e suas orelhas estavam abaixadas. Foi nesse momento que percebi o quanto estava tratando-o de forma desprezível, desde que nos conhecemos ele estava tentando ser gentil e eu apenas o maltratei, infringindo nele meus próprios problemas.

– Eu quem peço desculpas! Sussurrei sorrindo levemente e me sentindo a pior pessoa do mundo por tê-lo maltratado, então tentei me explicar. – Não estou acostumada a conviver com pessoas, falei com você hoje, mais do que já falei durante semanas...

– Meu nome é Haru, é um prazer conhece-la! Ele exclamou depois de pensar por alguns segundos, erguendo a mão em um cumprimento singelo. – Sou um Youkai, assim como você! Que tal começar de novo?

– O meu é Juri, e digo o mesmo! Exclamei rindo baixo e aceitando seu cumprimento, apertei sua mão e sorri ao perceber que sua aura era dourada e quente, diferente da minha que era azul e fria. – E é claro, estou criando um Kappa sem nem saber me criar!

– Eu tenho um marimo serve? Ele questionou em tom de brincadeira, sorrindo.

– Sua aura é dourada... que tipo de Kitsune você é? Perguntei colocando um pouco de água no topo da cabeça de Hikari por uma pequena abertura no zíper da bolsa e pelo mesmo lugar, lhe dei um pedaço de pão também.

– Sou uma raposa das florestas tropicais... e imagino que você seja uma das neves pela aura azul! Ele explicou e ainda me identificou. Obrigada Haru, eu nem sabia o que era.

– Porque veio para essa cidade? Acho que somos os únicos Youkais em quilômetros! Ele perguntou genuinamente curioso, ou foi o que me pareceu, enquanto abria o zíper um pouco mais para observar o Kappa que se mantinha de costas com medo até então, mas ao receber um toque singelo na cabeça, virou-se confiando nele fácil até demais.

– Não consigo ficar muito tempo em lugar nenhum, as pessoas sempre descobrem! Resmunguei sentindo a irritação retornar, o fitei por alguns minutos com uma sobrancelha erguida e me perguntei o que ele estaria fazendo para me influenciar a falar tão facilmente sobre a minha vida pessoal.

           Confiar nas pessoas sempre representou uma dificuldade e ao mesmo tempo um problema para mim, fugindo e me escondendo sempre que baixava a guarda e acabava sendo prejudicada por baixar a guarda, mas aquele rapaz de cabelos negros e espetados fazia tudo parecer tão simples que esses sentimentos sumiam momentaneamente, era como se ao se tratar dele, essas preocupações eram desnecessárias.

Quando finalmente as aulas acabaram voltei para casa, acompanhada por ele em meu encalço, tentei andar mais rápido para que me perdesse de vista, mas uma forte chuva caiu sobre nossas cabeças e tive que parar pra abrir a sombrinha ou pegaria um resfriado.

– Haru! Chamei virando-me para olhá-lo parado na chuva, todo encharcado. – Não vou te deixar na chuva, aproxima para cá.

Ao ouvir minhas palavras, ele correu recostando-se em mim todo animado e se ofereceu para me deixar em casa.

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