Capítulo 6

Acomodamo-nos numa mesa do restaurante. Sentei-me, encarando-o, à espera de que tomasse a iniciativa da conversa. Porém, ele se levantou e, instantes depois, voltou com uma garrafa transparente contendo um líquido que chamou de fogo paulista.

— Noite gelada. Toma um gole doutor. — Pediu-me com olhos brilhantes e sarcásticos.

Tomei a bebida, querendo me igualar a ele, que desceu rasgando minha garganta e inflando meu estômago. Ele riu da minha tentativa de esconder o horror que senti.

— Bebida para homens fortes, doutor. Acho que o senhor não está acostumado a isso. — Ergueu a caneca e deliciou-se com outro gole, limpando a boca na manga da camisa.

— Temos algo parecido em minha cidade. — Informei, com o rosto vermelho; e fui presenteado com uma sonora gargalhada.

— Gosto do senhor. — Disse, depositando a caneca de metal na mesa, me encarando ferozmente.

Não podia dizer o mesmo. Sentia-me um janota diante dele. Um janota sem músculos. Tínhamos quase a mesma altura, sendo eu um pouco mais baixo.

— Então? A que devemos a honra da sua visita? — Perguntou, encostando as costas largas no pequeno espaldar da cadeira de madeira, extremamente à vontade.

— Não vim à visita, nem a passeio. Vim a pedido da empresa para quem trabalho.

— Para nos jogar na rua?

— Por que pensa isso?

— Não é isso que as empresas fazem quando não precisam mais de nós? — Perguntou ferozmente, tomando mais um gole da caneca.

— Não nesse caso. Estou aqui para garantir os direitos de vocês, trabalhadores braçais.

Sei que não devia ter frisado trabalhadores braçais, mas algo naquele gigante me irritava. Se ele tinha músculos, pelo menos eu tinha cérebro. Pensava com desdém.

— Óoooh!  — pareceu-me mais do que sarcástico — E que direitos seriam esses?

— Aposentar os que já estão na idade, já que é um direito que só cabe aos ferroviários; e garantir a contratação dos restantes pela União, na Carteira Profissional.

— E por que deveríamos confiar no governo?

— Por que é assim que tem que ser. A não ser que queiram simplesmente deixar a cidade, rumo a novos horizontes. — Encarei-o com um quê de raiva, arrancando-lhe outra gargalhada retumbante.

— Pois se é assim, então podemos conversar de homem para homem.

— Pois diga o que tem em mente.

— Farei o seguinte, doutor. Marcarei uma reunião com o pessoal amanhã à noite e então o senhor poderá explicar exatamente como as coisas acontecerão.

— Feito.

— O seu Antônio lhe avisará o local e o horário e, enquanto isso, — levantou-se abruptamente — sugiro que não convide mais dona Irina para passeios noturnos. Não é assim que procedemos nessa Vila.

Fiquei calado. Não valia a pena arranjar confusão com o gigante, que até aquele momento ainda não sabia seu nome, sob pena de não poder cumprir a missão que me fora incumbida.

— Espero não ter me tornado indesejado ao convidar a moça. Foi algo inocente, posso garantir-lhe.

— Pois que não se repita, doutor. A moça tem dono, se é que me entende.

— E o dono seria o senhor, pois não? — Perguntei e me arrependi na hora.

— Sou seu dono — falou, enquanto colocava a mão enorme em meu ombro, apertando-o até quase me fazer curvar sob seu peso, porém, ela ainda não sabe. — Soltou mais uma das suas risadas arrojadas.

Fiz-me rir junto com ele. Não que fosse covarde e tivesse medo de trocar alguns socos com o brutamonte, mas, novamente, precisava que as negociações corressem bem para que pudesse voltar à empresa com tudo resolvido.

— Boa noite, doutor. Termine sua bebida. — Fez um gesto com a cabeça, indicando a caneca quase intacta na mesa.

— Terminarei, senhor...

— Que falta de educação a minha. Marcus Wright. — Estendeu-me a mão e apertou a minha, quase a esmagando.

— Olavo Borges. Doutor Olavo Borges. — Frisei bem minha condição superior.

— Nos vemos amanhã, doutor. Tenha bons sonhos. — Disse com uma risada cínica e me deixou.

Despediu-se do meu senhorio, não sem antes trocar um dedo de prosa com a pequena, quando o pai retirou-se discretamente da recepção.

Esperei que ele saísse e me dirigi à porta de entrada. A cerração havia tomado conta da Vila novamente e um ar gelado invadia as calçadas.

— Vai sair, doutor? — Perguntou-me a moça.

— Acho que não. Só queria olhar a noite, mas...

— A neblina voltou. É sempre assim. Deve ficar aqui. Sozinho é possível que se perca.

Quase a convidei novamente para um passeio, mas preferi voltar ao meu quarto e tentar dormir.

— Bem, acho que só resta me retirar aos meus aposentos. Quer ajuda para fechar a pensão? — Perguntei de forma educada.

— Não é necessário. Manteremos a porta encostada até às dez horas.

— Bem, então...

— Boa noite, senhor.  — Disse, abaixando os olhos recatados.

Resignei-me e fui para o quarto. Talvez um bom livro fizesse o sono vir, e assim o fiz.

Andava por meio das casas desordenadas, enquanto subia a serra. Estranhamente, sentia-me eufórico ao invés de cansado por tamanho esforço, para alguém acostumado a andar somente em solo plano. Regozijava-me ao ver casas de madeira amontadas, que cresciam como se não precisassem de ruas e avenidas e, mais ainda, quando parei em frente a uma delas. Ficava na rua da ladeira, próxima a uma Igreja. Senti o coração bater rápido ao vislumbrar a casa. Assoviei e percebi a cortina balançar dentro da casinha simples de dois andares. Apertei o passo e como num passe de mágica, encontrava-me no pátio, em frente a tal Igreja. Inclinei o pescoço para trás e li as brancas letras de forma, pintadas próximas ao telhado, informando de que se tratava da Igreja Senhor Bom Jesus de Paranapiacaba. Alguém estava vindo, tinha certeza de que se tratava de uma mulher. Logo a teria em meus braços. Enquanto antecipava a visão de Irina se encontrando comigo na Igreja, a neblina me envolveu por completo e senti medo. Olhei ao meu redor tentando, desesperadamente, achar a moça, mas ela parecia não estar ali. Chamei-a, porém nada ouvi. Então, senti uma mão tocar meu rosto. A mão era fria. Ouvi um riso e me virei em sua direção. A mão parecia brincar comigo. Ora tocava em uma face, ora em outra, feito pluma. Sua alegria me contagiou e acabei rindo com ela, como numa dança, onde eu, cego, a perseguia. Então, de repente sua alegria se fora e tudo voltou a ficar branco. Senti um medo terrível gelar meu coração ao ouvi-la:

— Finalmente o encontrei — seu hálito gelava minha face — Em breve estaremos juntos, meu amor.

Acordei assustado, com o sol entrando pela janela do quarto, enquanto meu coração batia descompassado.

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