Traição
Traição
Por: Amanda Kraft
Capítulo 1

Deus ajuda a quem cedo madruga, é o que diz o dito popular, porém, gostaria de saber quem foi o referido autor do provérbio, pois acredito que o mesmo nunca teve que se levantar de madrugada, com ressaca, tendo o toque estridente do celular a despertá-lo para sair de viagem, a TRABALHO, em pleno feriado. Aconteceu comigo naquele dia específico e só contribuiu para me deixar ainda com mais raiva de mim mesma, por não ter conseguido dizer NÃO! Talvez, esse seja o meu grande problema até hoje, não conseguir dizer não. Mas tudo bem! Acho que, de certa forma, todos os fatos estranhos, pra não dizer assustadores, que me acometeram naquela cidadezinha estavam predestinados. 

Levantei trombando nos móveis. Caminhei até o banheiro para lavar o rosto em água fria e tomar um analgésico, antes de seguir viagem a uma cidade da qual nunca ouvira falar, simplesmente porque o cliente não podia vir à cidade grande. Meu querido chefe dizia que, em sua empresa, aquilo não era problema: “Se o cliente não vem até a empresa, a empresa vai até o cliente!” – esse era o seu lema plagiado; e a infeliz aqui, faria de tudo para mantê-lo, sem reclamar.

Ah, tudo bem! Sei que estou sendo injusta para com o meu empregador. Na verdade, ele não era culpado do meu desvalido. Eu mesma tinha me metido naquilo, mas também, o que poderia ter feito? Ficado em casa num feriado prolongado, perdida, correndo o risco de sair para me distrair e dar de cara com aquele traidor e a sua nova namorada? Que a propósito, era a linda filhinha do meu empregador! O melhor mesmo era sair logo da cidade, tomar um sol no rosto, curtir novas paisagens e, quem sabe, esquecer definitivamente o maldito.

Como se fosse simples assim. Sou uma mulher perspicaz, prática e intuitiva em meu trabalho, porém, nada disso serviu ao meu coração. Como uma tola romântica e apaixonada, não quis enxergar o que estava bem à minha frente. A gente sempre tem a tendência de arranjar mil e uma desculpas para as coisas que seu parceiro faz e que não te agrada. Você sempre pensa que: “Foi apenas essa vez”; “Acho que ele não teve intenção”; “Não deve ter percebido o que fez”. E você está sempre tentando, de uma forma ou de outra, moldá-lo ao seu jeito, achando que se te ama, vai mudar; ou pior, achando que se te ama, as coisas que não te agradam não têm importância. Tudo por medo de FICAR SOZINHA! Não tenho vergonha de dizer que agi assim, e que isso me sirva de lição para não cair na conversinha boba do próximo homem que se aproximar de mim, com segundas intenções. Nunca mais vou deixar ninguém fazer comigo o que esse pulha fez.

Conhecemo-nos na Faculdade de Direito, mais precisamente, na biblioteca, de onde não saía. Quando o vi, senti de imediato aquele friozinho insistente na barriga. Ele procurava por uma mesa, e logo veio em minha direção com um sorriso nos lábios, e com os braços cheios de livros. Pediu licença e sentou-se. A partir daí, nos tornamos inseparáveis. De amigos a namorados. Estudávamos juntos, assistíamos a algumas aulas no mesmo horário, e foi assim até nos formarmos.

Ele foi incrível nos piores momentos de minha vida. Digo minha vida, literalmente. Sempre tive problemas sérios no coração, e passei por um período difícil à espera de um transplante. Agradeço a Deus por ter conseguido levar a faculdade, até que fosse a minha vez na fila de espera. Fiz a cirurgia no período das férias e, graças a Deus, não houve rejeição. Acredito ter me recuperado rapidamente por causa dele, que não me deixou um minuto sequer, e também dos amigos que não saíam da beira da cama.

Como poderia deixar de pensar que ele não era o homem da minha vida? Como poderia imaginar que um dia me trocaria por outra, se tudo o que fazíamos, fazíamos juntos? Inclusive o Curso Preparatório para o Exame da Ordem, o qual ele deixou de prestar assim que se formou, apenas para ajudar durante a minha recuperação. Iríamos deixar de ser bacharéis e nos tornar ADVOGADOS, juntos. Bons tempos aqueles em que era feliz. Fizemos até planos para nos casar. Conseguiríamos um belo emprego, uma bela casa, teríamos filhos, seríamos sócios de algum clube, enfim, perfeitos e felizes cidadãos.

Após o Exame da Ordem, de cara, conseguimos nos colocar na firma Jarbas Monteiro & Associados, onde ele está até hoje. O que tenho a dizer a respeito da minha cegueira amorosa, é que, apaixonada, nunca me havia dado conta de que tudo o que havíamos conseguido, ou melhor, tudo o que ele havia conseguido naquela empresa, foi por minha causa.  Fui a grande responsável. Ele é um bom advogado, mas a astúcia, por favor, não me interpretem mal, vinha de mim. A intuição para as causas, que quase sempre estavam corretas, era minha; e ele, fazendo parte do meu grupo, acabava levando vantagem. Isso também se deu no nosso trabalho e, perante o senhor Jarbas, ele sempre ficava com os créditos, tornando-se seu queridinho e possível nome na lista de associados.

Tivemos uma causa para resolver, de um cliente que estava sendo processado por ter fabricado pirulitos contendo cacos de vidro, o que causou vários cortes na boca de uma criança. O advogado do requerente estava deixando nosso cliente desesperado, ameaçando fechar sua empresa familiar, seu único meio de subsistência. A causa estava praticamente perdida para ele, quando procurou a firma. Fomos recrutados - eu, Artur, e uma estagiária - pelo próprio Dr. Jarbas, para trabalharmos o assunto. Ele formulava mil argumentos para acabar com o requerente, mas nenhum deles era forte o suficiente.

Em meio a muitas xícaras de café, reuniões, pressão, eu tive o insight que faltava para ganharmos a causa. Estava bem à minha frente. Como não tinha percebido aquilo antes? Era tão simples. Nosso cliente não podia perder sua empresa, pelo simples fato de que não produzia o açúcar usado na fabricação do pirulito.  Se havia algum culpado, era quem fabricava um açúcar de má qualidade. Não tivera o cuidado suficiente no manuseio e lacre do mesmo. Ah, me senti muito esperta, orgulhosa de mim, porém, essa sensação durou pouco. Artur havia apresentado a defesa como se a ideia fosse sua. Não preciso dizer que ganhamos a causa, ou melhor, ele ganhou a causa, e também a simpatia do doutor Jarbas. Logo terminou comigo e em menos de três dias, estava namorando Fernanda, a filhinha lindinha e mimadinha do nosso empregador, esquecendo-se definitivamente de mim como sua parceira amorosa. Amorosa! Não parceira de trabalho, já que teria muito a perder.

Crápula? Eu diria até algo mais pesado. E era por esse motivo que estava indo, de ressaca, para aquela cidadezinha, apenas para fugir da situação embaraçosa, e dos olhares piedosos que o pessoal me lançava às escondidas.  Cheguei ao meu apê à noite, cansada e magoada. Foi fácil abrir uma garrafa de vinho e tomar algumas taças, enquanto fingia assistir televisão, me recriminando por ter sido tão estúpida. Seu Jarbas tinha entrado na sala de reunião e exposto o caso desse cliente que estava indo visitar, recrutando alguém para resolver o problema:

— Gostaria que um de vocês assumisse esse caso — imperou, enquanto soltava a pasta sobre a mesa, com um estalo — Esse cliente é especial. Possui um Haras em Santo Antônio da Alegria, onde se especializou em reprodução de cavalos puro sangue. Seu pai deixou para ele a fazenda em questão, uma casa no centro da cidade e algum dinheiro; porém — soltou uma risadinha sarcástica — apareceu uma senhora à sua porta, dizendo ter sido companheira de seu pai por dez anos, reivindicando sua parte na herança.

— Ou seja, a mesma história de sempre – disse Artur, com sua cara nojenta de sabichão, fazendo o Dr. Jarbas lhe sorrir em cumplicidade.

— Bem, gostaria de saber quem pode tomar conta do caso – varreu os olhos por cada um de nós.

— Como bem sabe senhor, não posso neste fim de semana. — Disse Artur, com um sorrisinho bajulador, como se ninguém soubesse que ele iria para a casa de praia do doutor com a sua linda filhinha.

— Eu sei, meu rapaz, eu sei! — respondeu o Dr. Jarbas, apertando o ombro do babaca em sinal de anuência — Deise? —  Perguntou para a estagiária que se encontrava a seu lado, na mesa de reunião.

Não ouvi as respostas de todos os recrutados, pois estava longe, pensando em como me vingar daquele babaca que tanto me irritava. Não era ciúmes, quero deixar bem claro, e nem se tratava apenas de vingança. Sempre aprendi que: “aqui se faz, aqui se paga”, mas será que, naquele momento da minha vida, poderia esperar que a vida se encarregasse de tirar aquele sorriso “Sou o Homem mais Esperto do Mundo”, do rosto daquele idiota?

Em minha imaginação criativa encontrava mil e um modos de acabar com ele. Uma cobra mortal em sua cama seria um final maravilhoso. Talvez nem gritasse quando fosse picado. Ou quem sabe, contrataria alguns seres musculosos e vingativos para lhe dar uma boa surra, fingindo uma briga numa boate? Adoraria ver aquele belo rosto cheio de hematomas. Pensava em mais algumas coisinhas, com um sorrisinho diabólico no rosto, quando percebi que falavam comigo. Aliás, todos estavam me olhando, com expressões curiosas.

— Ah, eu... — Respondi tentando ganhar tempo, já que não havia ouvido a pergunta.

— Gostaria de saber se você pode ir amanhã, Bárbara. — Repetiu o Dr. Jarbas com o cenho franzido, enquanto me analisava.

— Claro! — Soltei o ar, sem perceber que o havia prendido.

— Pois muito bem — respondeu a uma sala aliviada — Bárbara irá representando a nossa firma.

— Senhor — interpelei sem jeito — amanhã é feriado. Se precisar de algum serviço de cartório, ou alguma investigação, não será possível.

— Eu sei. Quero que vá neste final de semana apenas para se inteirar da situação real. Sondar, conversar com os vizinhos da referida senhora, enfim, levantar o caso. O resto, veremos a partir de segunda-feira.

— Onde ficarei hospedada? — questionei, preocupada, diante de seu olhar ferino, enquanto aquele idiota do Artur balançava a cabeça e me olhava com olhos piedosos — Pergunto doutor, por não conhecer a cidade. Há hotéis disponíveis?

— Você poderá ficar na sede da fazenda se não houver nenhuma pensão. — Disse pensão, dando a entender que estava indo para o fim do mundo.

Apenas assenti, olhando-o resignada, e tendo a certeza de que aquela seria a minha última contribuição para tão conceituada empresa de advocacia. Faria o melhor para resolver o caso do cliente, e depois, cairia fora dali. Queria seguir meu sonho. Não queria mais continuar resolvendo aquele tipo de causa. Embora desde pequena, sonhava em estudar Direito, viver naquele escritório, fazendo o que fazia, parecia que não estava dando mais certo. Devo confessar que quando assistia aqueles seriados internacionais, cujos crimes eram desvendados por detetives forenses, que analisavam os elementos, os fatos científicos, os depoimentos e as cenas de um crime usando toda uma parafernália tecnológica, ficava fascinava. Adorava me colocar nos seus lugares. Porém, isso não condizia com a carreira que tinha, mas nada impedia que eu continuasse estudando e me tornasse uma Promotora, entretanto, enquanto nada daquilo acontecia, iria resolver o maldito problema de uma vez por todas.

— Eu sinto muito que você tenha sido a escolhida, Bárbara — lamentou Elaine, quando todos estavam saindo da sala — Você não arrumou nenhuma desculpa!

— Acho que, no fundo, estava querendo sair da cidade. — Respondi com um suspiro.

— Faz bem, Babi. Não sei como você consegue olhar para a cara daquele puxa saco. Aliás, não sei como você conseguiu namorá-lo por tanto tempo. Esse cara não te merece.

— Graças a Deus descobri isso a tempo.

— E aí. Quando vai?

— Amanhã cedo. Primeiro vou descobrir onde fica a tal cidade e se tem algum hotel disponível.

— Boa sorte. A gente se vê na segunda.

Com toda carga emocional e com a mente cheia de lembranças raivosas, me encontrava seguindo para a região de Ribeirão Preto. Qualquer coisa seria melhor do que ficar em São Paulo num fim de semana prolongado.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo