1 - A ala das oxigenadas

            Rafaela dormia inquieta, meio pendurada na cadeira de metal branco descascado que rangia quando o corpanzil pendia para um dos lados. Entre os dedos roliços, um copo plástico com café pela metade esfriava sob o trabalho barulhento do ventilador de teto. O jaleco, longe de estar impecavelmente branco, combinava com os arredores longe de estarem impecavelmente limpos.

            Tudo na copa do hospital parecia apenas a meio caminho daquela assepsia imaculada esperada por um ambiente altamente contaminante. A pia metálica, limpa, exibia pequenas manchas de ferrugem nos cantos. As paredes brancas não eram totalmente alvas – havia um dégradé para o amarelo muito sutil na metade inferior. A tinta que revestia as janelas tinha pequenos pontos rachados, assim como a geladeira, o fogão e os armários. O cheiro era uma mistura de álcool nauseante e pinho perfumado dos produtos de limpeza. Mesmo a iluminação era insuficientemente clara a ponto de tornar o expediente de ler no recinto desagradável, mas não a ponto de exigir a troca das duas lâmpadas de quatro que ainda funcionavam.

            Se ler na copa era desagradável, dormir, por outro lado, era extremamente fácil, em especial para os técnicos de enfermagem dobrando expediente para cobrir as escalas dos faltantes. Os pequenos intervalos nos plantões costumavam gerar revezamento no uso do ambiente – e esse era ferrenhamente disputado pelo baixo clero do hospital, em especial em períodos de pico.

            Era o caso hoje, como quase sempre. Rafaela cochilava sabendo que logo mais dois ou três colegas também chegariam à copa para lanchar, fofocar e descansar nas cadeiras desconfortáveis. A atualizariam acerca das presenças, ausências e do cardápio no quiosque da esquina, que ficava aberto até a meia-noite. Falariam daquela receita errada prescrita pelo médico e repassada pelo enfermeiro, que um dos técnicos viu segundos antes de aplicar a injeção e lesar gravemente um paciente. Contariam como tiraram a sorte para ver quem devolveria a receita direto na sala do médico para poder presenciar o sorriso amarelo e o pedido de desculpas. Para um técnico, quase nada era tão emocionante quanto ver um médico se desculpando. Tais eventos rivalizavam, em pé de igualdade, com a erradicação da fome e a paz mundial.

            Apesar disso, o que consumia a curiosidade de Rafaela, mais do que a descrição pormenorizada da devolução da receita e do pedido de desculpas vexatório, era um estranho fenômeno que vinha acontecendo nos últimos dias, e do qual ela apenas havia ouvido rumores. Aparentemente, haviam transferido vários pacientes de uma das alas para agrupar todas as loiras do hospital em um único lugar. A ala das loiras, ou ala das oxigenadas, como alguns se referiam, aparentemente vinha recebendo um paciente por dia desde a semana passada. A razão pela qual isso estava sendo feito, porém, lhe era um mistério, e nem os enfermeiros nem ninguém da administração lhe havia aplacado a curiosidade.

            De tão intrigada e dada a fofocas, Rafaela havia conseguido mudar a escala para hoje descansar na copa junto com um dos técnicos designados da tal ala. Seu sono inquieto, por fim, era muito mais o fruto da ansiedade por uma boa história que o desconforto das acomodações.

            O som da porta se abrindo era a promessa do fim da espera.

            – Deu polícia. – Dizia a voz de um dos que entravam. – Eu sabia que ia dar em algum momento, mulher. Aquilo lá não é bar, não. É cabaré.

            – Tem mulher demais para a quantidade de homem toda noite. – Outra voz disse. – Me admira que não tenham chamado a polícia antes.

            – A polícia é quem... – A primeira voz parou de súbito. Depois, seguiu em tom muito mais baixo, mas perfeitamente audível para Rafaela: – ...a menina, dormindo. A polícia é quem faz a segurança das putas, mulher. Porque você acha que tem uma viatura ali perto todo dia?

            Com os olhos semicerrados, Rafaela observou as outras duas técnicas se acomodarem. Tinham a aparência comum da classe: jovens, com os olhos fundos de cansaço e totalmente vestidas de branco, mas sem jaleco. Uma seguia de costas, preparando café na pia. A outra, sentara ao seu lado.

            – Então não vai dar em nada? – A sentada à mesa perguntou.

            – Duvido. – A outra respondeu. – Até sexta o lugar abre de novo.

            Continuaram conversando trivialidades. Rafaela, totalmente desperta, matinha os olhos fechados, mas se preocupava com a hora. Devia ter só mais uns quinze minutos. As outras duas tagarelavam de tudo: a novela, o ex-namorado, o sapato que tinha comprado e já estava com o salto desgastado. Tudo, menos sobre a história das loiras. Se impacientou, e resolveu dar uma forcinha na conversa.

            – Que horas são? – Perguntou, de repente, ainda com os olhos fechados.

            – Eita, acordamos você? – Uma delas perguntou. – Desculpa. Eu te disse, Joelem, pra gente falar mais baixo.

            – Não, acordou não. – Rafaela respondeu. Já está quase na minha hora.

            – Muito trabalho? – A que não era a Joelem perguntou.

            – Muito. – Rafaela respondeu, abrindo os olhos e maquinando o próximo movimento. – Especialmente depois dessa história das loiras...

            – Sério? – Joelem perguntou. – Pois na ala das oxigenadas reina a paz absoluta.

            – Fale por você. – A outra comentou. – Mudaram as escalas de todo mundo por causa daquilo.

            – E o que é que está acontecendo? – Rafaela perguntou, despretensiosamente, mas ardendo por dentro. Até bocejou, como se o assunto fosse um mero aborrecimento.

            – Você não está sabendo? – Joelem perguntou, com ar de quem compartilha um segredo de Estado. Rafaela meneou a cabeça e sacudiu uma das mãos como quem diz “mais ou menos”. A colega retomou: – Começou faz oito dias, quando acharam a primeira. A mulher deu entrada no hospital em choque hipovolêmico. No começo achamos que tinha sido algum acidente, mas aí é que a história fica estranha: não tinha sinal nenhum de lesão, interna ou externa. Nem sinal de vômito, diarreia, ou qualquer outro. A mulher estava linda e plena, só que morrendo por falta de sangue.

            – Como assim? – Rafaela perguntou, muito curiosa. – Então vocês não sabem como ela perdeu tanto líquido?

            – Ninguém sabe. As primeiras pacientes estão em observação, mas não correm mais perigo. Estão fazendo tudo o que é exame para ver se acham alguma coisa, mas até agora nada. E essa nem é a parte mais estranha. A parte mais estranha é que a segunda deu entrada na noite seguinte. E a terceira idem. E agora tem oito pacientes que deram entrada por causa do mesmo problema, com os exatos mesmos sintomas. E para deixar tudo ainda mais esquisito, basta dizer que todas são loiras por volta dos vinte anos.

            – Então não estão juntando as loiras do hospital? – Rafaela perguntou, tentando assimilar a informação.

            – Não. – Joelem respondeu. – Estão isolando só as loiras que chegam em choque hipovolêmico. Como ninguém sabe o que há com elas, nenhuma, com exceção de uma delas, foi liberada ainda.

            – Liberaram uma? – Rafaela perguntou.

            – É, a filha do dono de uma loja grande do Natal Shopping. – Joelem confirmou. – Ele veio aqui, assinou os papéis de responsabilidade e levou a filha embora. As outras preferiram ficar. Por hora, a orientação da direção é que a gente não fale muito disso por aí. Parece que um secretário da prefeitura esteve aqui e proibiu o hospital de dar entrevista sobre os casos, mas do jeito que a coisa está estranha, mais dia menos dia sai no jornal.

            O som de um alarme de telefone interrompeu a conversa. Rafaela achou que era o dela, mas antes que pudesse retirá-lo do bolso, Joelem sacou o seu próprio e leu uma mensagem de texto.

            – Droga. – Suspirou. – Precisam de mim lá.

            – O que houve? – Rafaela perguntou.

            – A polícia acaba de chegar com outra loira. Estão precisando de mim e de um maqueiro para acomodar a nova paciente.

Yuri Pablo

Removi um pequeno "a" fora do lugar logo depois de "Parece que um secretário da prefeitura esteve aqui e proibiu o hospital de dar entrevista sobre os casos, mas do jeito que a coisa está estranha, mais dia menos dia sai no jornal." Essa foi a única alteração feita nesse capítulo.

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