Capítulo quatro

Capítulo quatro

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Mas nada vai conseguir mudar

O que ficou...”

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14 de dezembro

Meu passeio matinal desta vez foi feito dentro da propriedade da minha avó. Como a casa ficava bem à frente do terreno, não tinha ainda explorado a parte dos fundos, que era enorme. O local era um sítio, afinal, e possuía até mesmo uma nascente de água, galinhas e porcos e um estábulo infelizmente vazio. Minha mãe me contava sobre os cavalos do meu avô. Aparentemente, já deviam ter morrido também ou minha avó os doara ou vendera a alguém, pois não estavam mais lá. O que era uma pena. Não sabia andar a cavalo, mas adoraria conhecê-los.

Voltei para casa, como de costume, depois da hora do almoço, para evitar encontrar com dona Sandra. A Carmem de novo deixara um prato de comida separado para mim, o qual esquentei e comi sozinha. Dessa vez, ela não me fez companhia em nenhuma das refeições. Mal a vi, pois estava enrolada com trabalhos para deixar a casa impecavelmente limpa para o final de ano. Aparentemente, esta era uma exigência anual da minha avó. Algo sem sentido para alguém que há anos passava os Natais sozinha.

Ao terminar a refeição, lavei meu prato e saí da cozinha. Encontrei Bia na sala, sentada na escada.

— E então, qual a contagem de hoje? — ela perguntou logo que me aproximei.

— “Oi” para você também. E faltam onze dias para o fim da tormenta. — O que dava duzentas e sessenta e quatro horas. Cálculo adicional que eu decidi guardar apenas para mim.

— Acho que estamos um pouco atrasadas, mas... ainda dá tempo de deixar tudo pronto.

— “Tudo” o quê?

— A casa para o Natal, oras. A árvore, as luzes, os enfeites...

Estiquei as palmas das mãos diante do corpo, em um pedido para que ela fosse devagar no que dizia.

— Acha que vou decorar a casa?

— Eu te ajudo!

— Se dona Sandra quer a casa decorada, que ela mesma decore.

O semblante de empolgação de Bia se desfez, dando lugar a uma incomum tristeza. Era estranho perceber que a conhecia há apenas alguns dias, mas já concluía que tal sentimento era algo que não combinava com ela, definitivamente.

— Ela não vai fazer isso. Mas não vai achar ruim se fizermos. É o primeiro Natal que você passará com ela. Merece um clima especial.

— Acho que você realmente não entende a situação. — Sentei-me ao lado dela e, após uma pausa, comecei a explicar. — Minha mãe tinha dezoito anos quando ficou grávida. E meus avós simplesmente escorraçaram ela de casa, apenas com a roupa do corpo. Os funcionários da casa fizeram uma vaquinha e deram para ela dinheiro suficiente para comprar uma passagem para São Paulo, para procurar pela minha tia.

— É mesmo horrível... — Bia olhava para a frente, com os olhos perdidos em um ponto qualquer, como se visualizasse a história que eu contava.

— Acho que não é algo que se faça a ninguém. Muito menos à própria filha.

— Talvez ela tenha se arrependido.

— Teve doze anos para isso enquanto a minha mãe estava viva. Minha mãe era uma boba sentimental... Canceriana, sabe? Como ela mesma brincava “signos de água são assim mesmo”. Na certa ela teria ficado muito feliz se minha avó tivesse ligado para ela ao menos uma vez. Mandado uma carta... qualquer coisa. Ela morreu se sentindo desprezada pela própria mãe. E por mais que ela sempre tivesse me pedido para não guardar raiva dos meus avós, não posso perdoá-los.

Ao ouvir um soluço contido, olhei para Bia e vi que ela chorava.

— O que foi? — perguntei, preocupada.

— Eu só... fiquei emocionada com a história. — Apressou-se em passar as mãos pelo rosto, secando as lágrimas. — Deve ter sido tudo muito triste.

— Deixe eu adivinhar... Você é de signo de água, né?

Ela movimentou a cabeça em uma afirmação e não resisti em rir brevemente. Mas logo voltei a ficar séria.

— Ainda acha que dá pra ter algum clima especial por aqui?

— É só que... sei lá. Acho que Natal é uma data especial. Gosto muito de Natais. Muito mesmo.

Teve uma época em que eu também sentia tal empolgação com festas de fim de ano. Agora, não mais.

— Minha mãe também gostava. Ela me fazia decorar a casa inteira. A gente morava em um apartamento minúsculo, e ainda assim acho que usávamos luzes que seriam suficientes para iluminar a Avenida Paulista inteira!

— Se ela estivesse aqui, o que acha que ela faria?

Olhei ao redor, percebendo com mais atenção o quanto o lugar era sombrio. Se fosse mais nova ou mais medrosa, talvez pudesse até imaginar que se tratava de um casarão mal-assombrado. Um lugar velho e sem vida, sem cor. Ao mesmo tempo, consegui imaginar minha mãe vivendo ali. Ainda menina, com o rosto que eu não era capaz de imaginar com perfeição. Mesmo destruída por uma terrível doença, ela ainda era a pessoa mais cheia de vida que já conheci. É claro que ela ia querer enfiar enfeites de Natal em cada parede daquele mausoléu. Eu não tinha qualquer dúvida.

— Mas ela não está aqui. Nada disso importa.

Sentindo um nó se formar em minha garganta, levantei-me e comecei a subir as escadas.

— Ei, Ni, espera! — Bia me chamou.

Parei, mas sequer a olhei para responder:

— Só quero ficar sozinha, Bia. Por favor.

E voltei a subir. Fechei a porta do quarto e me joguei na cama, respirando profundamente várias vezes até ser capaz de engolir o choro. Não queria desabar. Precisava ser forte durante os onze dias que ainda seria obrigada a permanecer por ali.

Fiquei pensando na conversa que tive com a Bia, em especial na parte sobre o que minha mãe faria se estivesse ali, que me fez novamente tentar imaginar como ela seria na infância e na adolescência. Além dos CDs, não existia mais nada dela naquele quarto.

Bem... não que eu tivesse visto.

Olhei para o guarda-roupas. Ele tinha duas portas bem largas, e eu só abrira uma delas no dia anterior.

Sabia bem o quanto aquilo poderia me frustrar, mas, ainda assim, levantei-me e fui até o armário, abrindo a porta. Dei um passo para trás, mal conseguindo acreditar no que encontrava.

Estava completamente abarrotado de tudo quanto é tipo de coisa.

Tudo quanto é tipo de coisas que foram da minha mãe. Lembranças. Tesouros. Tantas, que minhas vistas sequer conseguiam distinguir tudo com exatidão.

Via caixas... muitas delas. De madeira, de papelão... umas estampando marcas de sapatos, outras cuidadosamente forradas com papel de presente. Uma das prateleiras se encontrava cheia de livros. Na outra havia mais, mas estes pareciam ser de escola, pois junto estavam também alguns cadernos. Algumas pelúcias, algumas bonecas. Abri a primeira das quatro gavetas. Roupas. Minhas mãos tremiam e, ao mesmo tempo em que eu tinha vontade de desdobrar, olhar e até mesmo abraçar cada uma daquelas peças, também tive medo do turbilhão de emoções que aquilo pudesse me causar. Então, abri a segunda. Cintos, pulseiras, lenços, um cachecol, um par de luvas, óculos de sol, prendedores de cabelo e um monte de outros acessórios. Abri a terceira: calçados. Sandálias, tênis, um par de botas, chinelos. Abri a última: mais cadernos, canetas diversas – provavelmente já com suas tintas secas – uma caixa de lápis de cor, mais livros e revistas.

Voltei a me afastar, até chegar à cama, onde me sentei, olhando para todo o tesouro diante de mim. Memórias preservadas da minha mãe. O que será que eu encontraria se revirasse com calma cada uma daquelas caixas e gavetas? As fotografias que tanto desejava achar? Bilhetinhos de amigas ou de namorados? Seus livros teriam anotações de leitura? Ela costumava fazer isso, será que já tinha esse hábito quando ainda morava ali? Será que encontraria as marcações dos trechos da leitura que ela mais gostou, as frases que a emocionaram, que a fizeram rir e chorar? Em seus cadernos de escola, descobriria como ela era enquanto estudante? Sabia que fora uma boa aluna, mas... era do tipo sucinta em suas anotações, ou fazia grandes explanações em suas respostas? Fazia rascunhos rápidos? Usava canetas coloridas?

Tudo isso podia parecer tão banal. Porém, para mim, naquele momento, significava absolutamente tudo. Como criar um elo ainda mais forte com a minha mãe. Com a “Fabi” jovem, que morava com os pais, que não tinha uma filha para criar, que não travava uma luta diária contra uma doença maldita.

Respirei fundo várias vezes. A cada vez que meus pulmões se enchiam de ar, eu parecia me encher também de coragem. Levantei-me e, devagar, tornei a me aproximar do guarda-roupa. Passei mais uma vez os olhos por tudo o que havia ali dentro, tentando decidir por onde começaria. Minhas mãos, como se guiadas de forma completamente inconsciente, foram diretamente para uma caixa quadrada de madeira. Abri lentamente a tampa, deparando-me com um caderno de capa grossa com uma única palavra escrita:

“Diary”

            Apressei-me em pegá-lo e voltei para a cama. Eu segurava em mãos um diário da minha mãe. Mil dúvidas permearam a minha mente, e a principal delas era se seria certo ler os segredos que ela guardava ali. Entretanto, algo dentro de mim gritava que eu precisava fazer isso. Precisava estabelecer essa conexão com ela.

            Respirei profundamente mais uma vez e abri a primeira página. Era a letra dela, exatamente como eu me lembrava. E, como imaginei, usava mesmo canetas coloridas. No texto predominava o rosa, mas algumas palavras eram demarcadas em outras cores. Passei delicadamente os dedos pelo papel antes de iniciar a leitura. Pela data, ela tinha dezesseis anos quando escreveu. A minha idade.

15 de dezembro de 2000

Sei que este ano estou muito atrasada, nunca antes deixei isso acontecer! Mas os preparativos para a mudança da Nanda acabaram tomando todo o tempo e praticamente esqueci da decoração de Natal da casa. Como pude? O Natal é a minha data preferida do ano!

Como sempre, a decoração é por minha conta. É uma forma de escapar do trabalho do dia 24, já que, ao contrário da minha mãe e da minha irmã, sou péssima na cozinha! Então, decorar a casa fica como minha cota dos trabalhos natalinos. Além de ser algo que amo fazer!

Estou pensando em colocar festão por todo o corrimão da escada. Pensei em fazer isso ano passado, só que não deu certo porque não tinha festão suficiente. Mas este ano vou medir tudo direitinho para não comprar nada a menos. Vou colocar também bolinhas de Natal vermelhas e pisca-pisca. Só estou em dúvidas se usarei luzinhas brancas ou coloridas. Vou perguntar a Nanda o que ela prefere. Deixarei ela escolher dessa vez, já que está indo embora logo depois do ano novo.

Quero também fazer uma guirlanda para colocar na porta principal. Comprei uma revista que ensina a fazer uma linda! Por aqui não encontro essas coisas prontas e, além do mais, eu mesma gosto de fazer! A nossa velha árvore de Natal também precisa de uma ajeitada, mas acho que dou conta. Quero espalhar luzes também pelas paredes da sala. Ah, e nas árvores próximas à varanda. Vou pedir ajuda para o Milton com a questão elétrica.

Acho que vou gastar toda a economia que fiz guardando os trocos do lanche da escola durante o ano todo. Porém, a causa é nobre! É Natal, afinal! A época mais linda do ano!

Espero que tudo dê certo. Amanhã mesmo começo a decoração.

Quando terminei de ler, senti uma lágrima molhando meu rosto e apressei-me em secá-la. Olhei novamente para a data anotada na folha. Quinze de dezembro. No dia seguinte completaria exatos dezoito anos que aquela página fora escrita.

Ela pretendia iniciar a decoração da casa no dia dezesseis.

Não pensei muito antes de tomar a minha decisão. Deixei o diário fechado sobre a cama e me levantei, saindo do quarto. Desci correndo as escadas até chegar à sala. Peguei o telefone e disquei o número lá de casa. Torci para que minha tia já tivesse chegado do trabalho. Depois de três toques, ela atendeu.

— Tia, brancas ou coloridas?

— Ni? Do que está falando? Você está bem?

— Luzes de Natal, tia! Você prefere brancas ou coloridas?

Ela ficou em silêncio, na certa ainda confusa a respeito do meu questionamento tão estranho quanto repentino. Achei que ela fosse insistir em querer saber se eu estava bem ou fazer outra pergunta sobre o motivo daquilo. No entanto, tive a sensação de que ela havia compreendido tudo quando simplesmente respondeu:

— Prefiro as coloridas.

Segurei o fone com as duas mãos e fechei os olhos por um momento, sentindo meu peito sendo tomado por uma emoção que não seria capaz de descrever.

— Obrigada, tia Nanda— agradeci, com a voz falhando. Novamente vi-me a ponto de chorar, e sequer entendia o porquê.

— Ei, Ni... Estou com saudades. Amo você.

Lembrei que ainda estava brava com a minha tia. Ainda não perdoara o fato de ela ter me levado para aquela casa. Mas, ainda assim, não queria mais bancar a durona. Portanto, apenas respondi:

— Também te amo, tia. Tchau.

E desliguei a ligação. Comecei a olhar ao redor, novamente absorvendo a imagem daquela sala sem vida. Até que meus olhos se detiveram na escada, onde Bia ainda se mantinha parada. Tinha passado por ela tão apressada quando desci, que sequer a vi. Ela me fitava com uma expressão de dúvida e, então, expliquei:

— Amanhã farei algumas compras, planejamentos e medições. Depois de amanhã, dia dezesseis, começo a decorar tudo para o Natal.

Ela sorriu para mim e sorri de volta.

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