Capítulo III - Alin Mihai

Sinto o sorriso se espalhar em meus lábios. Gosto da sensação que antecede o terror noturno, o dela principalmente. Há tempos me pego desfrutando do desespero que assola a mente dessa jovem. Ainda me lembro da primeira vez em que o seu medo me atingiu.

O pânico que, mesmo a quilômetros de distância, conseguiu atravessar minhas barreiras e encher de sabor a minha noite, veio de um pesadelo após a perda de um parente. Aprecio a ligação materna, ela gera vínculos profundos, vínculos esses que têm o poder de gerar os melhores e piores resultados. Nesse caso em específico, está destruindo a minha presa.

Seus pesadelos são fortes, reais. Acaba com ela a cada noite. Preciso sentir isso de perto, preciso saborear esse desespero, tocar esse medo com meus próprios dedos, quero beber dessa iguaria e me fartar na loucura que está a mente de Ariela.

Ariela.

A leoa de Deus.

O riso cresce em meus lábios, não poderia ser mais irônico.

Estou tão preso à necessidade de me afundar nessa menina que senti o exato momento em que seus pés tocaram na minha ilha, como se tudo o que aqui existe cantasse em uníssono a sua chegada. Ela nem ao menos se deu conta que meus olhos a seguiam, vigiando seus passos e seu deleite com o mundo que estou lhe presenteando antes do abate.

Há séculos passeio entre mundos, me alimentando do medo, desespero, perda e fracasso dos seres humanos, me estabelecendo entre os ricos e poderosos dos mortais, reinando em glória e poder entre os sobrenaturais. Sou o pior da minha espécie e, sem dúvida alguma, o pior que poderia habitar entre os dela.

Seu ritual começa e o meu automaticamente se liga ao dela.

Me sento na larga poltrona em minha sala. A ampla cobertura que ocupa os dois últimos andares do Asupritor Eletrônica S/A me traz a vista da beira mar e a ponte Hercílio Luz, ponte essa que está em reforma infinita. Jamais terminam com essa obra.

Sinto os olhos revirarem nas órbitas, por que me importar? Como se realmente essa fosse ser a minha visão dessa noite. Há meses não vejo a paisagem das amplas paredes de vidro da minha cobertura, há meses tudo o que minha noite me proporciona são os deliciosos e atormentados momentos dela.

Ariela troca os lençóis da nova cama, afofa os travesseiros, jogando-os no lugar novamente. Está pecaminosa somente com uma blusinha de alcinhas finas e uma calcinha tão minúscula que nem precisaria estar vestindo.

Sinto minha língua molhar meus lábios.

Deliciosa.

E, como de costume, não demora muito para que a escuridão lhe envolva, a carregue com cuidado para um sono profundo e meu sorriso se escancare novamente.

As batidas de seu coração se alteram, ela está com medo. Mesmo inconsciente consegue prever o que está por vir. Está trocando o corpo sem vida da mãe no necrotério do hospital, os olhos lavados em lágrimas. É minha vez de entrar no jogo.

Os olhos da mãe – meus olhos – se abrem e Ariela dá dois passos para trás, em angústia. Quero rir, mas preciso manter a seriedade da brincadeira.

“Você sabe que eu sinto frio, Ariela. Como pode fazer isso comigo?”

Pergunto usando a voz fantasmagórica da mãe e a menina tenta se justificar em total desespero. Não permito, continuo acusando, agredindo, usando os buracos emocionais que essa mulher causou nessa humana quebrada. A cada lágrima que ela derruba, cada explicação e súplica de desculpa, me sinto transbordar em um regozijar indescritível.

“Você me deixou no frio Ariela, você me deixou!”

Grito enquanto uso a imagem que tanto a atormenta e quero gargalhar em êxtase total, mas sinto que a perderei a qualquer momento e não posso deixar isso acontecer, ainda não. Quero mais desses momentos, quero muito mais. Jamais senti um terror noturno tão intenso quanto essa menina me proporciona.

Seguro em seu pulso direito e puxo-a para a noite escura, acordando-a, sendo novamente o seu salvador. 

Não sinto meu corpo, somente a presença do seu medo em mim. Somente uma fração de segundos separa a minha realidade da realidade humana. Já não estou mais sentado em minha cobertura, o impacto do desespero dela é tão grande que consegue me arremessar sem nem ao menos precisar de qualquer gota de esforço vindo de mim.

A obscuridade que habita em mim se deleita reconhecendo seu verdadeiro reinado, meu corpo é recebido pelo trono que parece me abraçar, grato por minha chegada. Estou cercado por densas trevas, o gélido ar se infiltra em minhas narinas, correndo livre em meu corpo. O sorriso ainda está em meus lábios, pois a sensação de que minha menina desperta em mim é única.

— Mestre? — Ouço um ruído qualquer querendo me tirar da plenitude daquele momento. Se necessário fosse, aniquilaria com todos para que as angústias de Ariela fossem somente minha. — Mestre?

Meus olhos se abrem contra a minha vontade, visualizando a escuridão do meu reino, a aflição na face das monstruosidades distorcidas que me servem em extrema adoração. Diferente da terra dos humanos, meu reino é escuro, frio e sem vida. Aqui somente existe lamúria, dor e sofrimento. Foco o dono do desprezível ruído que teima em me incomodar, sabendo que sua existência tem os segundos contados.

— Como se atreve? — Ouço o tom baixo e mortal da minha voz e vejo a espécime à minha frente se escolher e tremer por completo.

— Me perdoe, mestre, mas acreditei que o senhor precisava saber disso. O desespero da menina é tanto que tem escorrido pelas fendas entre mundos e alguns vem se alimentando dela.

Sabia que o impacto do terror que ela sofria era algo jamais vivido, mas subestimei sua dor. Senti o desprezo se manifestando, tomando forma dentro de mim. Com ele, senti também o ódio em saber que seres inferiores estavam se banqueteando com o prazer que cabia somente ao meu deleite. Vermes malditos.

Noto que o infeliz ainda está ajoelhado em minha frente, esperando que sua atitude seja recompensada de alguma forma. Ergo a mão e, sem me dar ao trabalho de tocar sua pela imunda e asquerosa, fecho os dedos vagarosamente. Vejo-o arregalar os olhos enquanto o ar lhe falta, o sorriso se espalha em meus lábios e o gosto da morte me banha. Fecho meus dedos com força, virando o punho e quebrando o pescoço da criatura à minha frente. Em um piscar de olhos, seu decrépito corpo se desfaz diante de mim.

Não posso deixar que se alimentem dela, não de Ariela. Suas angústias e desespero são preciosos demais para serem divididos. Ela é minha e tudo o que vier dela, em sua totalidade, me pertence.

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