Capítulo 2

O padrasto de Kaya e pai de Nilufer, foi buscá-las, elas estavam com a mãe, guardaram as malas e entraram no carro.

Logo a casa surgiu no final da rua como uma promessa na qual Kaya não acreditava. Era grande demais para parecer acolhedora e antiga demais para ser chamada de nova. A pintura clara tentava disfarçar as rachaduras sutis nas paredes externas, e o jardim, embora aparado, tinha algo de abandonado, como se tivesse sido cuidado apenas para impressionar e receber eles.

Nilufer praticamente saltou do carro assim que o motor foi desligado.

— É perfeita! — disse, com os olhos brilhando como se tivesse acabado de ganhar exatamente o que sempre quis.

— Vocês viram isso? Parece aquelas casas de filme! Mãe, eu vou amar, viver onde você cresceu.

Kaya permaneceu sentada por alguns segundos a mais, observando tudo pela janela, com a sensação estranha da cidade ainda grudando nela como umidade, com o mesmo silêncio pesado e o mesmo cheiro distante de terra molhada.

— Parece um mausoléu. — murmurou, antes de finalmente abrir a porta.

Nilufer fez uma careta, mas ignorou o comentário, enquanto os pais começavam a descarregar as coisas do porta-malas. A mãe estava visivelmente cansada da viagem e tentava manter o controle, enquanto o padrasto já assumia aquele ar autoritário que vestia como uma segunda pele. Ele olhou para o final da rua.

— Vamos logo, não quero nada largado na calçada. Quero causar, boa impressão. — disse, sem olhar para ninguém em específico, mas Kaya sabia que aquela frase nunca era realmente para Nilufer.

Dentro da casa, o cheiro de ambiente fechado era ruim, Callum havia chegado dois dias antes e mesmo tentando, a casa ainda não estava em ordem. Kaya se sentiu enojada, cheirava madeira antiga, poeira, algo metálico no ar. As portas e janelas, rangiam, as torneiras tinham gotejamento.

— Eu fico com esse quarto! — Nilufer anunciou, pegando o maior, sem esperar resposta.

— Nilufer! Calma. — a mãe chamou, mas já era tarde.

Kaya suspirou, pegando duas caixas marcadas com seu nome e foi indo ver o outro, sem pressa, sentindo cada passo pesar como se carregasse algo além do próprio corpo.

O quarto que lhe coube ficava no final do corredor. Era menor que o da irmã, como sempre, mas tinha uma janela grande que dava para os fundos da casa, onde o fim do quintal se misturava com árvores altas demais para um bairro residencial.

— Ótimo — falou pensativa.

— Pelo menos não vou ouvir tanto a voz dela. E vou ter boa iluminação, para desenhar.

Fechou a porta com o pé e começou a empilhar as caixas sem qualquer cuidado, sem vontade nenhuma de organizar nada, porque cada objeto parecia carregar memórias que preferia deixar enterradas. Os últimos anos, haviam sido o auge, do sofrimento e conflito interno.

Ela havia deixado a vida e os poucos passa tempos que tinha, poucos mesmo, para trás sem nem ter a opção de recusar, e ainda era julgada por se entristecer com isso. Desempacotou apenas algumas poucas coisas: roupas pretas, cadernos de desenhos, lápis coloridos, bijuterias, roupas de correr, e um espelho pequeno, rachado em um dos cantos. Foi então que ouviu a porta abrir com força.

— O que é isso, Kaya? De novo, você com essa porcaria.

A voz da mãe veio dura, tensa. Yesenia era uma mulher normalmente doce, mas com Kaya parecia que as coisas nunca eram doces nem fáceis, tudo era pesado demais, irritante demais, porque as duas nunca se deram bem como ela e Nilufer se davam. Kaya se virou lentamente.

Ela estava parada no meio do quarto, segurando um maço de cigarros amassado entre os dedos, como se fosse uma prova de crime.

— Onde você achou isso? — Kaya perguntou, já sentindo o estômago se revirar.

— Numa das suas caixas! — a mãe respondeu, erguendo o objeto.

— Você tem ideia do que isso significa? O que pensa que está fazendo? Você prometeu.

— Significa que são meus. — Kaya tentou pegar.

O silêncio que se seguiu foi rude.

— Você está na minha casa — a mãe disse, com a voz tremendo entre raiva e frustração.

— Não vou tolerar esse tipo de coisa! Já te disse isso várias e várias vezes, vai se arrepender, de não me respeitar

— Não é droga, mãe. É só um cigarro. Seu marido vive bêbado e você não diz nada.

— Não interessa! — respondeu Yesenia possessa.

— Você não aprende nunca? Sempre querendo chamar atenção!

Kaya riu, sem humor.

— Engraçado você dizer isso agora…

Yesenia abriu a boca para responder, mas Callum apareceu na porta antes que ela pudesse.

— Qual é o problema aqui? Ela já quer estragar, nosso dia?

— O problema — respondeu, sem tirar os olhos de Kaya.

— É que sua enteada continua sendo um péssimo exemplo. Irresponsável. Mentirosa.

Ele entrou no quarto, cruzando os braços.

— Eu já disse isso antes — começou, com aquele tom condescendente que Kaya odiava.

— Você podia muito bem se espelhar na sua irmã. Olha a Nilufer. Educada. Apresentável. Não anda por aí parecendo…

Ele fez um gesto vago com a mão, apontando para as roupas dela.

— Isso.

Kaya sentiu algo estalar dentro de si. E o enfrentou como nunca fazia.

— Termina a frase — disse, avançando um passo.

— Parecendo o quê?

— Parecendo uma qualquer, uma pu.ta, que vai ficar mal falada de novo, na cidade toda. — ele respondeu.

— Essa roupa, essa postura… você envergonha sua mãe. A mim.

— Já chega, Callum… — Yesenia tentou intervir, mas já era tarde.

— E ainda fuma, se droga escondida. — ele continuou.

— Você acha isso bonito? Acha que alguém vai te respeitar assim? Por isso, era tão mal falada.

Kaya sentiu o rosto queimar.

— Você não sabe nada sobre mim. Devia se preocupar mais, com a sua filha.

— Sei o suficiente — ele retrucou.

— Sei que você só dá trabalho, que nunca agradece nada. Que…

— Você não é meu pai! Não tem o direito de ficar falando essas mer.das pra mim, por.ra! — Kaya gritou.

— Um dia, vou sair e nunca mais voltar.

A frase ecoou pelo quarto como um soar de guerra. Callum ficou imóvel por um segundo e Yesenia empalideceu.

— Não fala assim com ele! Ele não é seu pai, mas é quem te cria e me ajuda a te sustentar, tem que respeitar ele, Kaya! — disse, dando um passo à frente.

— Não seja ingrata.

— Eu não devo respeito a quem nunca me respeitou! — Kaya respondeu, com a voz embargada.

— Você deixa ele falar comigo desse jeito e espera o quê? Que eu sorria? Ele nem gosta, de você, sua corna.

O tapa veio rápido e o som seco ecoou no quarto. Kaya sentiu o impacto antes da dor, sua cabeça virou de lado, e o gosto metálico se espalhou pela boca enquanto o quarto parecia girar por um instante.

— Aqui você vai aprender a respeitar — Yesenia disse, com a voz fria demais.

— Não importa o que você ache. Enquanto depender de nós, vai obedecer.

Do corredor, Nilufer assistia a tudo encostada na parede, com os braços cruzados, incomodada. Não disse uma palavra. Não precisava. Aquilo foi o que mais doeu.

— Saiam — Kaya disse, com a voz baixa.

— O quê? — Callum perguntou.

— Saiam do meu quarto. — Ela disse segurando a porta.

— Não ouse… — A mãe dela falou, segurando a porta.

— SAIAM! — ela gritou.

Por um segundo pareceu que ele iria a agredir, mas a esposa o puxou pelo braço.

— Chega por hoje — disse.

— Você está de castigo. Sem sair de casa, Kaya. Entendeu?

Kaya não respondeu, apenas bateu a porta com força, girou a chave e apoiou a testa na madeira, respirando com dificuldade enquanto as mãos tremiam e o rosto ardia onde havia sido atingida. O silêncio voltou, mas agora era sufocante.

Ela se virou de repente e chutou a primeira caixa que viu pela frente. Depois outra. Seus cadernos caíram no chão, roupas se espalharam, e ela empurrou tudo, jogando objetos contra a parede, com o som dos impactos ecoando como gritos que não conseguia mais conter.

— Eu odeio essa vida… — sussurrou, sentando no chão nervosa, sentindo mais raiva, que o normal.

O peito doía, foi então que seus olhos encontraram a janela. A cortina leve balançava com o vento e, do lado de fora, as árvores se moviam lentamente, sombras se alongando conforme o céu escurecia. Pensou na liberdade, que tanto almejava. A ideia surgiu clara, simples.

Kaya se levantou, limpando o rosto com a manga da blusa, trocou de roupa, então abriu a janela e o ar frio do fim de tarde, entrou no quarto, trazendo novamente aquele cheiro familiar. Ela olhou para trás uma última vez. A casa não parecia um lar. Parecia uma prisão. E Kaya não tinha a menor intenção de ficar, caso realmente fosse expulsa.

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