No Limite da Dor
No Limite da Dor
Por: Bruna Fioreszco
Capítulo 1

A respiração descompassada parecia atrapalhar meus movimentos, o pensamento de ser pega antes de terminar a mala me causava arrepios, o que ele faria se me encontrasse agora esvaziando as gavetas no meio do dia, essa era minha única chance de fugir, sabia que se ele me encontrasse eu estaria morta, os hematomas ainda nem haviam desaparecido desde a última vez, as costelas doíam a cada respiração, um lembrete claro de que não tinha outra opção, ficar não era uma opção, dando uma última olhada no quarto fechei a mala e segui rumo a saída rapidamente, James só retornaria de viagem amanhã de manhã o que me daria algumas boas horas de vantagem, optei por descer pelo elevador já que seria vista pelas câmeras mesmo que fosse pelas escadas, os segundos pareciam horas e o cruzar o saguão nunca foi tão difícil, graças a Deus havia um táxi do lado de fora, entrei o mais rápido que eu pude, dando o antigo endereço dos meus pais, foi uma boa ideia ter mantido esse lugar em segredo, era um apartamento pequeno no subúrbio, uma herança de família que minha mãe mantinha apenas por apego sentimental, se minha mãe soubesse que no futuro ele seria usado pela filha fugindo do namorado maluco, duvido muito, não ficaria muito tempo apenas o necessário para pegar o dinheiro que juntei durante meses e guardei no cofre, não era muito mas teria que ser o suficiente, afinal se tentasse movimentar a conta principal o banco emitiria um alerta direto para James e os cartões poderiam ser rastreados, no cofre apenas algumas lembranças de família e os 25 mil dólares, fechei me despedindo e segui pelos fundos, lá o velho carro que eu havia comprado a alguns dias estava estacionado em um beco, tive que pagar um bom dinheiro na lata velha para evitar registrar a documentação no meu nome, joguei a mala no banco de trás e segui caminho rumo a liberdade, com o medo e a adrenalina como companheiros, olhando pelo retrovisor as luzes da cidade ficavam cada vez mais distantes e com elas uma parte de mim, uma parte que eu queria que morresse.

Acordei assustada olhando ao redor, a escuridão da noite ainda se mostrava presente, o carro estava gelado, mas era melhor do que me arriscar a ser pega em alguma câmera de segurança em um motel na beira da estrada, além do mais era apenas uma noite e não era tão ruim, me agitei afastando a sonolência e decidi seguir viagem, não conseguiria dormir mais, nem sequer me lembro da última noite em que consegui dormir bem, é estranho pensar que quando vivemos uma situação ruim diariamente nos acostumamos com ela, no começo são as pequenas coisas, as palavras os gestos sutis e acabamos não dando importância, e quando acaba estamos em um carro fugindo para o outro lado do país no meio da noite.

O dia amanhece com uma manhã gelada e o trânsito ao longo da rodovia aumenta consideravelmente, preciso permanecer nela por mais um par de horas, e depois seguir por rotas secundárias até a pequena cidade no interior do país, a casa onde ficaria havia pertencido a família do meu pai, logo não estava diretamente ligada a mim o que tornaria mais difícil de rastrear minha localização, o medo de ser pega ainda estava presente, mas a cada quilometro que ficava para trás outro sentimento se fazia ainda mais presente, esperança, a idéia de fugir de tudo e viver uma vida tranquila e solitária era o que me mantinha dia após dia, vez ou outra algumas lembranças de um tempo feliz retornavam mas eu as mantinha bem guardadas no fundo da minha mente, aprendi a duras penas que a vida real é cruel e que a solidão e a liberdade é o melhor que podemos desejar.

Estar sozinha me dava mais tempo pra pensar na situação e me manter alerta e fiel ao plano, relembrando cada momento dos últimos meses e tentando ter certeza de não ter deixado nenhum vestígio, James me procuraria por algum tempo, isso era certo, mas é provável que desistisse depois alguns meses, talvez até se interessasse por outra mulher, uma das muitas amantes que teve ao longo do nosso relacionamento, e pensar que fui tão cega por tanto tempo, todos os sinais estavam lá na minha frente o tempo todo, mas eu não queria ver, estava fragilizada pela perda repentina de meus pais e James se mostrou um homem gentil e um ombro amigo no momento difícil, bem diferente do namorado possessivo e violento que se mostrou depois de alguns meses, a tristeza me traz um gosto amargo a boca, se eu não fosse tão estúpida não teria me colocado nessa situação, sempre assistia esse tipo de relação nos filmes e nos programas da tv, mas nunca pensei viver isso, acho que nenhuma das mulheres da tv esperavam também, me custou muito conseguir entender que não havia outra forma de escapar, um preço alto demais, que eu não estava disposta a continuar pagando.

Mais algumas horas e meu estômago me tirou dos pensamentos melancólicos, procurei um estacionamento a beira da estrada, tomando cuidado com câmeras e evitando os lugares mais movimentados, comi um pouco da refeição que havia trazido do apartamento, estava fria mas foi o suficiente por hora, resolvi descer do carro e caminhar alguns minutos para aliviar o incomodo nas pernas causado pelas horas exaustivas ao volante, o relógio marcava meio dia, a essa altura James devia estar como louco a minha procura, esse pensamento trouxe um sorriso de satisfação aos meus lábios, e me sentia uma adolescente fugindo de casa, mas eu não pretendia retornar, nunca, com a ajuda de alguns amigos consegui mudar de nome e adotar o sobrenome de meus avós maternos, foi muita sorte que James nunca se interessou pela história da minha família, isso me permitiu manter esses pequenos detalhes em segredo, e agora eles salvariam a minha vida.

De volta ao carro era hora de seguir viagem, uma olhada no mapa e constatei que não estava nem na metade do caminho embora tivesse me afastado o suficiente para me sentir mais segura, parece que seria mais uma noite gelada dormindo no carro, meus músculos também estavam tensos por conta da situação, e tudo que eu queria agora era um banho e uma cama confortável, apenas mais algumas horas, só preciso aguentar mais algumas horas, tinha uma fotografia da casa no painel do carro onde havia o endereço, era uma casa grande, em uma propriedade afastada do centro da pequena cidade, o que me daria privacidade e segurança, não tive muito tempo para pesquisar sobre a cidade, mas sabia que era uma cidade pacata, só esperava conseguir algum emprego o mais rápido possível, o dinheiro não duraria muito, e eu precisava me manter, consegui me visualizar trabalhando em um restaurante como garçonete, servindo mesas e anotando pedidos, como eu fazia no tempo da faculdade, não pagava muito mas com as gorjetas conseguiria me manter, uma onda de entusiasmo tomou conta de mim e liguei o rádio do carro ouvindo uma estação qualquer tocando uma música do AC/DC, era uma das minhas bandas preferidas desde criança, mas já tinha algum tempo que não escutava, no começo porque James não gostava, ele dizia que não era adequado para uma mulher ouvir esse tipo de coisa, e aos poucos fui deixando de ouvir para evitar atritos desnecessários, depois acabei perdendo o interesse, as coisas já não faziam tanto sentido como antes. A música termina e outra banda que eu não conheço começa a tocar, o som é agradável e aprecio este momento de descontração, é como se eu pudesse respirar novamente depois de ter passado muito tempo prendendo a respiração.

As nuvens começavam a se acumular no céu o que indicava uma chuva forte para as próximas horas, a idéia de estar na estrada durante uma tempestade me deixava apavorada, o barulho da chuva sempre me acalmava, mas não estar dentro de uma casa com paredes e um teto não era a situação ideal, um olhar para o visor indicava que o tanque de combustível ainda estava na metade, talvez se eu conseguisse me afastar por mais 200 quilometros antes da chuva poderia alugar um quarto em motel barato, poderia pagar em dinheiro, e com um pouco de sorte evitar as câmeras, me parecia mais plausível do que passar outra noite gelada no carro e durante uma tempestade, só precisaria estar longe o suficiente.

A chuva começou fraca, mas as nuvens escuras seguidas de raios e trovões indicavam que seria uma tempestade que poderia durar a noite toda, havia pego uma estrada secundária alguns quilometros atrás, e agora olhava o motel tentando decidir se entrava ou não, mais um trovão e minha decisão estava tomada, amarrei o cabelo em um coque e coloquei um boné escuro, junto com a jaqueta masculina e larga evitaria um possível reconhecimento, agarrei apenas a mochila e pus algumas peças de roupa dentro antes de sair do carro, levando na cintura uma pistola que era do meu pai por segurança, tranquei o carro e segui até a recepção, havia apenas uma câmera do lado de fora, apenas precisei abaixar a cabeça e tinha certeza que não tinha como ter sido pega, o lado de dentro do lugar estava tão ruim quanto parecia do lado de fora, um papel de parede antigo e desgastado mostrava a decadência do lugar, no balcão um homem de meia idade com óculos lendo um jornal e bebendo o que me pareceu ser cerveja nem notou minha presença.

- Com licença.

O homem tirou os olhos do jornal e me encarou não muito contente.

- Eu quero um quarto.

- São 50 dólares a noite, se não sair até as 08 precisa pagar uma taxa dobrada.

Tirei o dinheiro da bolsa, enquanto o homem se levantava para procurar a chave, coloquei a nota no balcão peguei a chave do quarto e segui pelo corredor até o quarto indicado na chave, número 8, o quarto era pequeno, uma cama de casal, uma mesinha de cabeceira, uma tv de tubo, e uma porta que deveria ser o banheiro, tudo estava aparentemente limpo, apesar do cheiro de cigarro remanescente, o papel de parede era o mesmo da recepção, e embora não estivesse descascando, algumas manchas suspeitas indicavam que era tão antigo quanto, me apressei em trancar a porta e fechar as cortinas enquanto ouvia a chuva cair mais forte lá fora, me tranquei no banheiro para um tão merecido banho, a água não estava muito quente mas era melhor do que nada, após o banho a única coisa que queria era me jogar na cama, programei o despertador e adormeci ouvindo a chuva lá fora, e esperando por um dia de sol pela manhã.

O barulho do despertador me tirou dos pensamentos conflitantes, a noite foi longa e dormi apenas algumas horas, apesar de cansada o desespero me deixava alerta, a chuva parou algumas horas atrás, e deu lugar para uma manhã gelada mas ensolarada, olhando para o mapa estava cada vez mais perto do meu destino, a cidade de Morton no interior do Wyoming, pelo pouco de informações que tinha sabia que ficava próximo a muitas reservas indígenas incluindo o parque Yellowstone e o mais importante a 3 mil quilometros de Nova York, apenas mais algumas horas e poderia relaxar um pouco, a viagem deveria durar em torno de 30 horas, mas não queria correr o risco de acabar com o carro quebrado no meio do caminho, recolhi tudo e fui deixar as chaves na recepção, agora uma senhora estava ao balcão, e não parecia mais agradável que o homem da noite anterior, entreguei as chaves e segui para o carro o mais rápido possível, evitando a câmera do estacionamento, murmurei uma oração silenciosa e dei partida seguindo viagem rumo a liberdade.

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