Ato 2

Antes de dormir a garota passou um tempo olhando para o teto, muita coisa mudou em sua vida, e com Violet inteiramente do seu lado ela podia se sentir menos deslocada. 

O complicado é que ela ainda sente isso mesmo não se sentindo sozinha, Amare sempre se considerou uma telespectadora, ela não vive a história, ela observa, em toda sua vida o sentimento de não pertencer a lugar algum sempre se fez presente, ela não era normal, ela não se misturava, e isso acabava com ela dia após dia. 

Violet sempre seria o sol, brilhante e atrativa, enquanto ela seria a lua que se aproveita do seu calor, nas épocas mais difíceis ela chegou a dizer que era um fardo pra sua melhor amiga que prontamente negou. O problema era estar sozinha e se sentir sozinha, mas Amare descobriu uma coisa: não importava, nada importava, se ela morresse ninguém além da sua amiga estaria ali, depois de anos vivendo um coma mental ela percebeu isso, ninguém ligou, ninguém visitou, ela conhecia muita gente mas onde estavam aquelas pessoas que diziam que seriam amigos para todos os momentos? As pessoas tinham seguido em frente, ela estando morta ou não, e esse pensamento acabou com ela. No final ela percebeu que devia dar valor a quem esteve ali o tempo todo, céus, nem mesmo sua família esteve ali, seu pai sempre foi emocionalmente distante, sua mãe sempre acharia que os problemas dela seriam maiores, e seu irmão mais velho simplesmente a chamava de maluca e falava que devia deixar pra surtar sozinha, pra ele bastava a mãe ser maluca, ele não ia conseguir lidar com a irmã também. 

Ela perdoou a família dela, óbvio, Amare sabe que aquilo tudo foi ignorância, que não sabiam lidar com a situação, mesmo assim não deixa de doer. Ela conviveu com uma mãe narcisista e depressiva por anos, então já estava acostumada a achar que seus problemas eram os menores de todos, ela nunca sentiu que podia confiar na sua família, e portanto, eles não sabem dos piores segredos que ela guarda dentro de si. 

Como aquele homem, quando ela tinha seis anos. 

Amare suspira tentando não pensar nisso naquele momento, ainda estava cedo, eram apenas 18:30, porém o sono chegou, avassalador. 

Tudo estava preto, ela não consegue enxergar, parece que tem algo a impedindo de ver o que está acontecendo, então ela só escuta uma voz, e pensa que já ouviu aquela voz em algum lugar. 

-Eu sei que você está aqui para ganhar minha confiança e me matar- A voz para por um momento, suspirando profundamente -eu soube, assim que você apareceu, porém eu estava tão feliz de ter alguém pra conversar, a última vez que senti calor humano foi a cinco anos atrás, quando metade dos distritos não estavam em frangalhos, a última vez que senti calor humano foi quando aproveitei o último resquício de calor vindo dos cadáveres da minha família, eu mesma os matei, pois não queria que eles soubessem o que me tornei, e o que eu pretendia me tornar, eu fiz tudo isso pra...........- 

Tudo trava de novo, mas logo continua. 

-Eu desisti, eu quero morrer, eu não aguento mais, eu quero minha família, eu quero minha amiga, eu quero ser feliz, eu só queria ser feliz, mas depois de todos esses anos não dá mais, por isso, obrigada! Eu pretendia me matar de qualquer maneira, mas se você quiser fazer isso pra mostrar que seu serviço foi bem executado então pode ser, eu só tenho um favor pra te pedir, fique comigo apenas mais uma noite, pra eu morrer sabendo que pelo menos alguém ficou.- 

Então o sonho muda, e Amare vê Violet, em um cais perto do quartel general do distrito, ela estava sem roupas, com marcas pelo corpo, e morta. 

E então... 

-AMARE ACORDA!- Outra vez ela acorda em um pulo, a voz que gritou era a mesma da mulher do sonho.

Ela acordou e ao contrário da última vez que sua intuição disse algo absurdo, dessa vez, ela decidiu escutar, pegando uma faca de cozinha e escondendo na parte de trás da calça ela corre até o cais, mas não encontra ninguém lá. 

Ela olha para todos os lados ao seu redor e para o olhar em um espírito feminino, e é aí que você começa a perceber o quão útil é o poder de Amare. 

-Moça?- Amare chega perto do espírito que está chorando. 

-Menina, você consegue me ver?- A alma parece feliz e aliviada agora. 

-Consigo sim, olha, preciso que você me diga se você viu uma moça de cabelo curto e loiro passar por você, em troca, realizo um desejo seu e te libero do Umbral.- Ela fala rápido demais, porém o espírito entende. 

-Vi sim, ela estava com roupa de ginástica, em troca do que eu vi quero que você me diga, se meu filho morreu também.- Amare acena. 

-Lembra como morreu?- Ela se aproxima do espírito. 

-Foi um acidente de carro, estava levando meu filho de três anos pra creche.

-Muito bem...- Amare pesquisa sobre notícias da região e encontra sobre um acidente -Seu nome é Lúcia?

-Sim! Meu filho se chama Gustavo.- A garota de cabelos negros morde o lábio, essa é a parte difícil de se falar com espíritos. 

-Seu filho morreu também... Ele foi levado vivo porém não conseguiu resistir, no meio do caminho de tro da ambulância ele faleceu.- Ela quase chora quando o espírito começa a chorar também, desamparada. 

-A culpa foi minha! Eu estava com pressa e fui brigar com ele no banco de trás, ele estava fazendo muito barulho e eu estava com dor de cabeça, eu não vi quando o sinal fechou!- Ela gritou. 

-Olha, eu posso te encaminhar pra luz... Depois disso você vai desencantar no que parece um hospital espiritual, lá você pode encontrar seu filho, ou até mesmo na próxima vida! Mas antes eu preciso salvar minha amiga, senão ela morrerá!- Lúcia acena com a cabeça. 

-Sua amiga foi para aquela direção, virou a esquerda na rua, tinha um bando de Noveus atrás dela.- O coração de Amare falha uma batida. 

-Ok, agora olhe para minha mão, tá bom?- O espírito acena, ainda chorando. 

-Oh guardiões dos mortos, justiceiros dos desamparados, eu peço que atendem meu pedido, Lúcia foi um ótimo ser humano e está em agonia, preciso que venham e traga paz, que devolvam seu filho morto e que não os separe, traga paz onde existe tragédia, traga luz ao Umbral.- Sua mão brilhava e lentamente o espírito começou a se desfazer, ela não sabe onde aprendeu aquelas palavras, nem sabe como tem tanto conhecimento sobre umbral e hospital espiritual, mas ela sabe.

Antes Lúcia sussurra: -Obrigada.

Amare não perde tempo e corre na direção apontada, depois de alguns minutos correndo ela para em um beco, e escuta a voz de sua amiga ecoando pelo corredor frio e sujo. 

-Por favor para, eu sei o que vocês querem! Eu sei o que passa na mente de vocês!- Ela grita apavorada, quando um dos sete garotos que estavam ali agarra seu braço e a joga contra uma parede. 

-Se você já sabe então não tem jeito né.- Ele rasga a camiseta de Violet, que tenta gritar e se debater, mas outro já está tampando sua boca com a mão. 

A cena em si é perturbadora, ali estão sete Noveus, que deveriam representar o futuro do poderio militar do distrito, tentando... Agarrar sua melhor amiga a força. 

Quando uma pessoa tira ótimas notas nos testes e tem uma pontuação acima de C ele pode escolher seguir a carreira militar, então invés de fazer o curso preparatório eles se tornam Noveus, a grande maioria são apenas filhinhos de papai que bancam toda a educação dos filhos, já que seguir carreira militar custa caro, no final das contas mais uma vez o dinheiro ditando a quantidade de poder. 

-Violet!- Amare grita e vê oito cabeças girando em sua direção. 

-Olha só! Essa aqui veio com brinde.- Os outros garotos começam a rir. 

-Vocês tão fudidos! Atualmente ela é categoria A!- Violet grita e se debate cada vez mais. 

-Interessante!- O que parece ser líder deles anda até Amare, ele é alto, sua pele é praticamente rosa, pra não dizer vermelha, e seu cabelo é loiro claro, cortado estilo militar.

-Olha garota, a gente só queria se divertir um pouco e sua amiga cortou o barato, então faz o seguinte...- ele se aproxima ficando frente a frente de Amare -Eu vou te dar o privilégio de ir embora, meu pai praticamente comanda esse distrito inteiro, se você denunciar ou fazer alarde nunca terá uma vida normal.

Vida normal? Engraçado, ela estava pensando sobre isso agora pouco, sobre como seria ser normal, se encaixar, fazer parte de algo, acontece que olhando aquela cena ela se lembra de várias outras cenas em sua vida, cenas essas que consistiam em pessoas normais.

Ela se lembrou daquele homem, que era aparentemente normal, ela se lembrou de quando os meninos tiravam sarro de seu cabelo e as pessoas falavam que era normal, ela se lembrou de quando mexeram com ela na rua, e disseram que homens são assim mesmo, é normal, ela se lembrou quando os amigos de Violet que tiravam sarro da garota de cabelo preto com frequência, dizendo que ela era estranha, mas eles são normais, seu ex melhor amigo que não se importou com ela, e todo mundo disse que era normal, afinal está tudo bem, ele apenas não tem empatia 

Apenas.

Normal? O que é ser normal? Até hoje ela não se encaixou, mas é bom se encaixar? É bom ser como o resto? 

Ela percebe que não, ser normal não é bom, e ela percebeu que não queria mais isso. 

-Eu vou dar pra vocês cinco segundos pra largar minha amiga e correrem daqui, vou dar esse privilégio.- Ela sorri de lado, colocando ambas as mãos nas costas. 

Os garotos começam a rir bem alto, sem se importar que alguém poderia escutar.

-Eu vou pega você e a sua amiga, matar as duas e foder com vocês mesmo depois de mortas, o que ach-- Ninguém ali esperava, mas em questão de segundos o cara loiro e alto começou a gritar com uma faca de cozinha enfiada em sua garganta, todos ficam paralisados por uns instantes. 

-Decidi acertar a garganta, assim você tem duas opções, ou morrer sangrando e sem poder gritar por socorro, ou você pode morrer afogado no seu sangue, o que acha?- Ela sorri de lado quando ele desesperadamente tenta agarrar seu pescoço, os olhos virando para trás de dor. 

Nesse momento tudo para. 

E naquele instante Amare vê ali no meio de todos um ser, ela estava com um vestido simples e branco, que cobriam seus joelhos, os pés descalços, ao redor dela várias sombras dançavam, seu cabelo era negro, porém tão comprido que mesmo trançado alcançava o chão, e por falar no chão, um símbolo redondo com um triângulo no centro estava sob seus pés, então ela olha para Amare, os olhos completamente negros estavam a mostra, porém uma máscara tampava boa parte de seu rosto.

-Estou aqui, vai ficar tudo bem...- ela sussurra e anda até Amare -Me aceite, que você nunca mais estará sozinha.

-Como assim aceitar?- Ela não esperava que o ser fosse abraçar ela, ambas tinham a mesma altura. 

-Pare de bloquear lembranças dolorosas, apenas aceite, apenas abrace aquela garota que você deixou pra trás.- Ela sussurra. 

-Abraçar quem?- quando ela da por si mesma ela estava em um espaço branco, e lá estava ela com seis anos, olhos negros com sangue escorrendo deles, a criança abre os braços, esperando um aparo. 

-Não deixe ela sozinha, abrace ela, mostre que você está ali por ela, mostre que vocês vão superar, nunca esquecer.- Amare sente uma onda forte de dor de cabeça e de repente, ela tem seis anos.

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