Capitulo 4 - Maria Eudora Gaia Prescott

Termino de me arrumar cerca de 2h antes do horário de sair, e com o quarto totalmente iluminado e livre de qualquer ruído ou sombra suspeita, deito de volta na cama para (finalmente) terminar meu livro.

  

Quando me deito, me permito pensar na noite passada, e para minha surpresa, todas as imagens do meu sonho voltam nitidamente à minha cabeça. Nenhum detalhe esquecido. Nenhuma cena confusa.

Definitivamente não foi um sonho normal.

  

  Por mais que o quarto esteja claro e calmo, não consigo para de olhar para os lados o tempo todo à procura de qualquer movimento, e a inquietação me impede de terminar o livro. Aguento a 1 hora seguinte presa no mesmo capítulo, até que não aguento mais ficar sozinha e desço para a recepção do hotel.

   Dessa vez, ao invés de ficar no sofá da recepção, vou para o jardim. É verão, mas a brisa que sopra é gelada, e a grama recém regada tem cheiro de chuva. O jardim está deserto exceto por 2 jardineiros aparando a cerca viva que contorna o local. Procuro uma mesinha de pique nique que esteja na sombra, odeio sol, mesmo que o da manhã, e me sento em uma que está embaixo de uma grande árvore, provavelmente a maior do local.

  

No caminho para cá passei por vários funcionários do hotel, que transitam pra lá e para cá o tempo todo arrumando o café da manhã e a cozinha dos hóspedes. Trombei com uma senhora levando uma pilha de guardanapos e não pude deixar de notar que, finalmente, as pessoas pararam de agir como se eu tivesse algum tipo de doença contagiosa. Ninguém me olhou estranho ou se quer me evitou hoje. Ou eles resolveram o problema que tinham comigo todos de uma vez, ou eu estou ficando louca mesmo.

  

Depois de ontem a noite, eu não duvidaria da segunda opção.

   Quando percebo, estou olhando pro nada pensando nas minhas paranoias com o livro fechado e o marca páginas caído do lado.

-- Droga!

   Tento achar a página em que tinha para do livro, o que é meio difícil pois estava no meio de um capitulo e não tenho nenhuma referência para procurar.

Fecho o livro brutamente e jogo para o lado, desistindo.

-- Sorte que meu pai me avisou que mulheres viram o demônio quando não comem.

Olho para a direção da voz, Nicholas Daren está parado na outra ponta da mesa com uma bandeja de cup cakes.

-- O que foi que o livro te fez?

-- Fechou na página errada sem minha permissão.

-- Mas que absurdo— Ele disse enquanto contornava a mesa para parar no acento à minha frente.

Nicholas coloca a bandeja sobre a mesa com uma garrafa d'água ao lado e se senta.

--A camareira Ana me mandou trazer isso, disse que esbarrou com você hoje cedo e que você parecia estar dormindo acordada. Ela acha que açúcar vai te ajudar.

   Ele empurra a bandeja para frente. Não da pra negar, estou com fome. Pego um cup cake que parece ser de chocolate e mordo.

-- Bom dia, aliás—Ele diz quando não respondo mais nada.

-- Bom dia.

-- Você dormiu bem?

-- Sim, e você?

-- Tão mal quanto você.

Olho pra ele, por algum motivo, essa conversa está me irritando. Talvez seja a falta de uma noite bem dormida, e será que minhas olheiras estão tão evidentes assim?

-- Você geralmente não é tão irritada. — Ele disse, mantendo a aparência simpática.

-- Como você sabe? Não nos conhecemos.

-- Não, mas você foi bem mais receptiva quando conversamos.

-- Agradeça à camareira Ana por mim.

-- Claro.

   Pego mais um cup cake e continuo comendo em silêncio.

-- Então, de onde você é? – Ele pergunta, parece que não vai me deixar sozinha mesmo então resolvo conversar de verdade.

-- São Paulo, e você?

-- Daqui.

-- Sempre morou aqui?

-- Desde que me lembro.

-- Não sabia que os recepcionistas chegavam no hotel tão cedo, achei que o horário de vocês fosse comercial.

-- E é, mas eu geralmente acordo cedo.

-- Ainda não são 7 da manhã, o que está fazendo aqui 2 horas antes do seu horário?

-- Eu moro aqui.

   Termino o segundo cup cake. Morar no emprego? Isso é estranho.

-- Se você está pensando que eu sou um escravo, a resposta é não, sou só o filho do dono.

   Faço tudo o que posso para não fazer cara de surpresa.

-- Ah – A risadinha que ele dá depois da minha reação me diz que eu não fiz um bom trabalho.

-- Na verdade é um negócio de família, a maioria das pessoas que trabalham aqui são, de alguma forma, membros da família.

-- Entendi.

   Opto por não comentar nada a respeito e ficamos em silêncio por alguns segundos.

-- Me conta algo sobre você agora.

-- Han?

-- Eu te contei que sou filho do dono de um hotel, que trabalho e moro aqui, praticamente minha vida toda. Agora é sua vez.

-- E o que quer saber?

-- Qualquer coisa.

Penso um pouco.

-- Tudo bem, mas tem que prometer que não vai rir.

-- Nunca — Ele diz com tom de sarcasmo

-- Isso é segredo, só minha família sabe.

-- Minha boca é um túmulo.

— Tá bom, lá vai.

  Faço um segundo de suspense.

-- Meu nome é Maria Eudora Gaia.

   Nicholas me olha por alguns instantes, com certeza se concentrando para não rir.

-- Maria Eudora Gaia?

-- Prescott.

Nicholas apenas assente, acho que todos os comentários aos quais pensou sobre me ofenderiam e ele escolheu ficar quieto.

Maria... isso me lembra uma coisa.

-- Você disse que sempre morou aqui, certo?

-- Sempre.

Pondero alguns segundos sobre a pergunta idiota que vou fazer, mas faço assim mesmo.

-- Você conhece as lendas da ilha?

Nicholas sorri.

-- Perdi a conta de quantas vezes às ouvi.

-- E nenhuma delas diz que seu hotel seja assombrado?

   Tento dizer em tom de brincadeira, mas minha preocupação é visível.

-- Você pode ter certeza que se fosse, usaríamos isso como marketing—respondeu ele rindo. Apenas assinto.

-- Por que a pergunta?

-- Só uma dúvida.

-- Que dúvida mais repentina.

   Nicholas ficou me encarando, provavelmente esperando eu ceder e terminar a história. Ele parece ser tão cético quanto as lendas, que provavelmente ia rir e dizer que estou louca.

   Vários segundo se passaram, isso já está ficando desconfortável. Minha melhor ideia é me fazer de desentendida.

-- Perdeu algo no meu rosto?

-- Ao contrário, estou tentando encontrar.

-- Encontrar o que?

-- Por que você acharia que meu lindo hotel é assombrado?

Acho graça de como ele se refere ao "seu" hotel.

-- Por que o interesse?

-- Se tem algo incomodando um hóspede meu, naturalmente eu quero saber o que é.

Eu deveria contar? Será que ele vai rir da minha cara? Ou sugerir que meus pais me internem?

-- Você vai me contar ou não?

  Provavelmente eu devo ter demonstrado que estava considerando isso.

-- Tudo bem – Decido.

Quem se importa se ele rir de mim? Eu nem o conheço mesmo.

-- Aconteceram algumas coisas estranhas essa noite.

-- Que tipo de coisas? – Ele pergunta, e sua expressão parece repentinamente preocupada.

-- Do tipo inexplicável.

Espero alguma resposta, mas ele fica calado me encarando, esperando que eu continue.

-- Eu ouvi alguém me chamando, várias e várias vezes, era como um sussurro distante, porém muito nítido. Mas esse alguém me chamava de Maria, ninguém mais me conhece por esse nome. Eram chamados tão reais... Eu não posso ter imaginado, posso?

"Além disso, teve o sonho, um sonho muito estranho. Sonhei com três meninas, crianças, sendo enforcadas na tal da árvore dos enforcados. Em seguida, elas voltavam à vida e começavam a queimar, e gritar desesperadamente meu nome.

Foi estranho, eu não me lembro de já ter visto aquelas crianças, e não podemos sonhar com algo que nunca vimos, não é?"

Nicholas não me responde, me olha calado. Seu rosto tem uma expressão de preocupação. Ele está mesmo considerando me internar?

-- E também teve os vultos, como várias névoas brancas que passavam correndo diante dos meus olhos. Eram tão rápidos que pensei fossem coisa da minha cabeça, mas depois de todo o resto, não tenho mais certeza.

  Nicholas continua me olhando como de eu fosse ter um acesso de loucura e fosse preciso que ele me salve de mim mesma a qualquer momento. Os segundos se passam, e ele ainda não diz nada. Parece estar pensando cautelosamente no que vai dizer.

  A final, é preciso pensar bem antes de sugerir levar alguém para um hospício.

-- Você vai me chamar de louca?

Sequer tinha percebido que seus olhos pensativos tinham descido para o meu pescoço, talvez um pouco abaixo, e voltam para os meus quando eu falei com ele.

--  Não.

Sua resposta veio um pouco sem jeito, parece que foi pego de surpresa pela pergunta, o que também me deixa sem jeito para continuar uma conversa.

-- O que você fez ontem?

Nicholas muda de assunto drasticamente, e isso me aborrece. Eu esperava o mínimo de preocupação de quem teve a hóspede atacada dentro do hotel.

Tá, não tão atacada, talvez eu esteja exagerando.

-- Visitei a ilha de Anhatomirim. — Respondi simplesmente, fazendo um péssimo trabalho em esconder a irritação.

Os olhos de Nicholas se abrem um pouco mais e seu rosto muda de pensativo para surpreso. Uma mudança sutil, porém, perceptível.

-- Trouxe alguma coisa de lá, Meg?

Penso um pouco.

-- Trouxe uma concha que peguei na praia.

  A expressão de Nicholas, ainda preocupada, muda para a expressão de alguém acabou de entender como resolver um exercício muito difícil de física. Para completar, ele assente.

-- O que foi?

-- Meg, você precisa me entregar essa concha.

-- Por que?!

A ideia de dar a concha mais linda que eu já vi pra ele parece ridícula.

-- Você quer voltar a dormir à noite ou não?

-- E o que que minha concha tem a ver com isso??

-- Por Deus, não te ocorreu que suas assombrações podem não ser do hotel e sim da ilha??

Aquilo pareceu acender uma lâmpada na minha cabeça. É claro, por isso sonhei com a ilha e a árvore, por isso que essas coisas aconteceram só depois de eu ir à ilha.

  Eu sempre fui medrosa, justamente por acreditar em fantasmas, demônios, e que esses dois se ligam a objetos. Passei dias sem dormir depois de assistir Annabelle. E ver algo assim acontecendo comigo me causou uma serie de arrepios e a sensação de ter um cubo de gelo no estômago.

  Mas então, algo novo me ocorre.

-- Nicholas, eu sonhei com 3 crianças, crianças sofrendo!

Nicholas parece confuso.

-- E daí?

-- Elas pediam ajuda! São crianças, não há nada que possamos fazer??

-- Não são crianças Meg, podem ser qualquer coisa, foi um sonho. A ilha era usada com presídio, apenas grandes criminosos foram executados lá. Se estão lá, garanto que fizeram algo para merecer.

A frieza de Nicholas me assusta um pouco, mas devo assumir que não há nada que eu possa fazer sozinha.

-- Cadê a concha?

-- E o que você vai fazer com ela?

-- Devolver pra ilha, meu tio é o guia, pode devolver hoje mesmo.

Uma série de arrepios passa pelo meu corpo, de novo, quando me lembro do guia enforcando as crianças e sorrindo. Claro, ele trabalha para o hotel, isso explica...

-- No que está pensando? – Nicholas me interrompe.

-- Você vai achar isso idiota, mas desde o dia em que eu cheguei aqui, quase todos os funcionários desse hotel têm me olhado e tratado de modo estranho. Como se eu os enojasse, e isso era horrível. Inclusive o guia da viagem para Anhatomirim fez o possível para manter distância.

-- Isso continua acontecendo? – Nicholas falou após poucos instantes. Parecia tenso de novo, além de visivelmente surpreso.

-- Não, isso parou subitamente.

-- Ótimo.

É assim que ele reage quando eu digo que os funcionários estão tratando mal uma hóspede?

-- Cadê a concha?

-- No meu quarto.

-- Vamos buscar então.

Assinto, e saímos em direção ao meu quarto.

-- Como você sabia que a concha é o problema? – Pergunto enquanto subimos a escada.

-- Não é a primeira vez que isso acontece, é muito comum turistas levarem alguma coisa da ilha pra casa, e as vezes, a coisa que eles trazem traz mais uma coisa junto com ela, o que os causa problemas.

-- E devolver à ilha sempre funciona?

-- Sempre.

-- E como vocês descobriram na primeira vez que esse seria o problema? Digo, você acredita nas lendas da ilha? Nos fantasmas e nas brux...

-- Seu quarto é o B-08, certo? – Nicholas me interrompe.

Assinto, destranco a porta e entramos.

A concha estava pousada na minha escrivaninha encima de um box de Harry Potter. Pego e entrego para Nicholas.

-- Você colocou uma alma impura encima da bíblia sagrada? – Diz ele apontando para os livros.

Acho graça, é bom encontrar alguém que também gosta de ler.

Alguém bate na porta.

-- Meg! Está pronta? – Liz chama da porta. – Vou entrar e jogar água em você se ainda estiver na cama! – Ela ameaça e abre a porta.

A expressão de Liz ao ver Nicholas no quarto junto comigo é impagável.

-- Bom dia. – Nicholas diz meio sem jeito. – Bom, acho que já vou indo. – Ele diz andando em direção à porta.

-- Obrigada! – Eu digo.

-- Ao seu dispor. – Ele diz sorrindo e pisca um olho.

Sai do quarto me deixando sozinha com Liz que imediatamente começa a dar pulinhos e pedir explicações alto o suficiente para que ele consiga ouvir do corredor. Eu não podia ter escolhido uma melhor amiga mais discreta?

Sentamos na cama e conto tudo, desde a noite estranha até Nicholas levando minha concha embora, e Liz ouve quieta e atentamente por mais de 5 minutos até eu terminar a história.

No final, Liz parece pensativa.

-- Meg...

-- O que?

-- Você sabe que eu fiquei meio obcecada pelas lendas da ilha e tals, mas juro que isso não é obsessão minha...

Ela faz uma pausa, como se fosse para eu me preparar para o que ela vai dizer.

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