CAPÍTULO DOIS - 4ª PARTE

Era a queridinha do patrão! E seus clientes sempre voltavam. Não importava em que calçada estivesse.  Eles sempre voltavam!

 Avenida Prado Junior esquina com a Rua Ministro Viveiro de Castro era onde ficava seu ponto. O ponto das meninas do Ernesto. E o rebuliço era geral! Todos e todas comentando sobre o que passou o tal cafetão.  Ele e seus homens foram perseguidos, capturados e amarrados.  Tomaram uma surra de pau de parar o calçadão!  Foi o tal Ringo de Copacabana que procurou o canalha até achar. Esse era um policial muito famoso na época, era durão e defensor das putas e dos travestis.  Uma espécie de anti-herói.  E diziam que era do tal Esquadrão da Morte.

 Chegou com alguns homens que pareciam policiais e arrancou Ernesto e seus cupinchas do Beco da Fome debaixo de porrada! Apanhou muito o cabra! Foram colocados na caçapa de um camburão da polícia Civil e nunca mais se soube deles. E sumiu.  Todos sabiam que ali não apareceria nunca mais. Com um pouco de sorte, talvez estivessem mortos os canalhas.  A galerinha estava feliz pois agora estavam livres para viver suas vidas como quisessem. Teve até aquelas meninas que voltaram para suas famílias e largaram a vida.  Marta fingiu espanto com as notícias, mas naquela noite comemorou até o dia clarear.  Bebeu, comeu e se divertiu com seu grupo de amigas de calçada como nunca pudera fazer. E desse dia em diante traçou seus próprios caminhos.  Livre para realizar seus sonhos.

  Assim Marta continuou trabalhando nas calçadas de Copacabana por sua conta e risco e fez isso muito bem. Sustentando a casa e cuidando de sua irmã com carinhos de mãe. O primo do pai nunca a procurou.  Ele também não apareceu e sabia onde elas moravam.  Ela e Laurinha.  Era seu único parente e Marta sentia um certo medo quando pensava que eram sozinhas no mundo.  Era apavorante pensar nisso.  Sentia-se grata por sua preciosa ser tão novinha. Certamente muitas daquelas lembranças sumiriam enquanto crescesse. E até lá muita coisa podia acontecer! Até criar uma família.        Pensava assim Marta!  Levava sua vida nas ruas com muita responsabilidade e ouvindo sempre as putas mais velhas.  Fez muitos amigos! Não bebia bebida alcoólica e drogas nem pensar.  Nem fumar, fumava.  Pensava no pai e em como viu a cachaça destruí-lo.  Era um homem tão bom seu Zé! Forte! Trabalhador! Generoso! E um líquido maldito o destruiu até mata-lo!  Primeiro judiou bastante dele e da família.  Então mantinha distância dos bêbados e odiava as bebidas.  Observava o que o álcool fazia com as pessoas por onde andava.  Do Beco da Fome a cobertura vip do Copacabana Palace.  E era sempre ruim!  Por isso só bebia água e muitas vezes, quando o freguês insistia, ela fingia. Já com drogas não tinha conversa!  Aprendeu muito naquela Copacabana.  E era o Beco da Fome sua maior escola. Com as putas, com os travestis e as drags que se apresentavam nos teatros, casas de shows e nos Inferninhos da Princesinha do Mar. E as go-go girls que faziam a vida nas boates da Princesa Isabel.  E ainda tinha a Lindaura, dona de uma barraca que servia o melhor Angú da cidade.  E se a gente não tinha dinheiro ela servia mesmo assim.  Amava seus fregueses fossem eles viados ou putas!  E foi assim que Marta aprendeu os caminhos da vida de rapariga e seguiu só pelos melhores que pode escolher. Chegaria ao seu objetivo final lúcida, com saúde, feliz e firme como uma rocha!

 Quando aconteceu o incêndio na favela tinha dezesseis anos, então pediu guarida a Madame de Copacabana, que olhando-a como o produto de luxo que era, de cima a baixo e revirando-a de um lado ao outro, admirou sua beleza, orgulhosa da sua aquisição.  Tinha ótimas referências e muitos clientes vips e ricos. 

- Tão linda e cheia de fregueses! Sorte grande! Tirei a sorte grande! – falando alto, gritando mesmo, alegre, rindo-se toda.   Tratou logo de fazer negócio e receber a moça em sua casa.

- Bom negócio! Essa Severina é muito arretada e vai me render um bom dinheiro! – disse para Marta, entre risos, apresentando-a as outras que estavam ali no salão.

 – Vai pegar suas trouchas severina e vem. Tem vaga pra você aqui. Vamos ganhar dinheiro! –  Disse sorrindo com aqueles dentões amarelos.

E nunca se arrependeu!

Marta virou sua gerente.  Madame depositou nela toda a confiança.  Era severina honesta e trabalhadora A rapariga trabalhou muito para conquistar essa confiança e a cafetina aos poucos foi dando toda a liberdade a ela, e embora não falasse, sentia-se agradecida, pois já não aguentava mais o fluxo do movimento do puteiro e toda a sua demanda.  O câncer a estava matando e com Marta no comando tinha mais tempo para os tratamentos que a debilitavam muito. Um ano depois a patroa confiava nela como nunca havia confiado em puta nenhuma!  Entendida das matemáticas e dos números.  Era ela quem pagava as contas, acertava os serviços, pagava os funcionários e recebia os lucros.  Em pouco tempo aprendeu a administrar o negócio e prosperaram muito! Marta,

 agora, recebia por seu trabalho como gerente e também dos programas que fazia. Organizava todo o movimento do bordel e cuidava dos clientes mais ricos e importantes do lugar.  Abriu sua primeira conta em banco e já conseguia guardar uma boa quantia nessa conta. Esse era o primeiro passo para realizar o seu sonho: ter o seu próprio bordel. 

  Quando a doença da patroa se agravou foi Marta que segurou a onda e assumiu o negócio.  A cafetina estava desenganada. Nenhum tratamento deu conta do câncer que tinha no estomago. Madame resolveu então descansar e aproveitar o pouco tempo de vida que lhe restava.  Entregou tudo nas mãos de Marta e não se arrependeu disso!  Ela cuidou de tudo até o fim! 

  As irmãs estavam mais unidas que nunca e a prosperidade proporcionava uma vida confortável para Laura, também, que já não precisava mais ajudar nos serviços da casa.  Ela admirava a irmã.  Admirava sua força e determinação! E era grata por ser cuidada por ela com tanho amor.  Via-a como sua heroína. E queria ser forte como ela!

Assim era Marta! Forte e arretada como aquele fogo que queimou a favela Paia do Pinto, onde moraram!

  Muitas vezes, na madrugada, Laura encontrava Madame sentada no chão do banheiro, abraçada a privada, vomitando sangue e nessas horas ela ficava ao lado da mulher. Segurando sua vasta cabeleira ruiva e encaracolada, trazia toalha, ajudava a se limpar e por muitas vezes era a patroa que se deitava no seu colo, ali no chão mesmo e Laura cantava para ela a música do Sabiá na esperança de criança que a cantiga espantasse seus medos também:

“Sabiá lá na gaiola

Fez um buraquinho

Voou, voou, voou, voou

E a menina que gostava tanto do bichinho

Chorou, chorou, chorou, chorou

Sabiá fugiu pro terreiro

 Foi cantar no abacateiro

 E a menina pôs-se a chamar

Vem cá, sabiá, vem cá”

  Asim a desgraçada adormecia.  A menina ficava quietinha com a mulher no colo e adormecia também.  E Chica vinha pela manhã coloca-las na cama!

   Viveram assim três anos. Era uma vida boa! A melhor que Laura já tinha vivido até aqui!

   Ia a escola pela manhã e passava a tarde ajudando a Chica ou perambulando pela cobertura, ou ainda ouvindo rádio com Madame. Só as noites eram cansativas para a menina que sentia medo do movimento e demorava a dormir. Mas pela manhã todo o medo ia embora. O amor da irmã era a melhor coisa do mundo e acordar com aquele chamego todo era sempre muito bom, Marta a levava para a escola. E para buscá-la tinha a Chica, empregada fiel da casa e há muitos anos trabalhando para Madame. Era uma negra velha e sorridente que enchia Laura de mimos e lhe ensinava a cozinhar. Era tão boa que o trabalho doméstico ficava muito agradável. Ficava feliz em cuidar da casa.

Nos fins de semana, aos sábados, sempre saiam.  Hora iam ao cinema, as vezes a praia. Nesses dias até Madame ia se divertir com as meninas no mar. Domingo o bordel fechava durante o dia e todas iam a missa, pela manhã, na primeira hora, numa igreja com uma imagem enorme de Nossa Senhora!

- Igreja de Nossa Senhora, mãe de Jesus e de Santa Rita, a santa das causas impossíveis e dos doentes. –  Explicava Madame – Quer milagre reza pra Santa Rita que ela faz! - e todo domingo falava a mesma coisa.

Era a devoção de Madame de Copacabana e todas as meninas que moravam na cobertura a acompanhavam. Depois almoçavam no Bife de Ouro, restaurante de fino trato, ao lado da piscina do Palace, um hotel cinco estrelas na Avenida Atlântica, de frente para a praia. Comiam sempre o mesmo prato: Picanha Borboleta que vinha com um acompanhamento de primeira. E depois sempre tinha sorvete de sobremesa para Laura e banho de piscina para as meninas, que aproveitavam e se refestelavam nas espreguiçadeiras brancas de madeira cheirosa, enroladas em suas toalhas felpudas e chiques.  Elas se esbaldavam!

Esse passeio era cortesia de um magnata, um bilionário playboy.  Filho caçula de uma família de classe alta que era dona do Hotel Copacabana Palace. Amigo antigo e frequentador da casa de Madame.  Vez por outra ele vinha se juntar a farra e saiam de lá já escurecendo. Dizem a boca pequena que foi ele o financiador da carreira de Madame.  Que ela foi empregada doméstica na mansão da família e foi seduzida pelo moço.  A cobertura e os apartamentos foram para calar a boca da jovem e tirá-la do caminho já que o rapaz estava perdidamente apaixonado e queria casar e a família nunca ia permitir um absurdo desses. Ela nunca confirmou a história, mas eram grandes amigos e de vez em quando, amantes.

Esses almoços também eram bons para os negócios. Traziam mais clientes ricos, estrangeiros e poderosos para o puteiro e traziam alegria para as Severinas. Pagavam em dólar!

Quando Laura chegou Madame já estava doente. E nos anos que se seguiram foi ficando a cada dia mais debilitada. Já não saia mais e nem aceitava mais meninas e assim foi reduzindo o movimento da casa.  Marta foi tomando conta de tudo. Aprendeu muito!  E seguiu firme no seu propósito em ser uma Madame também.  E uma das grandes!

E assim o fez!

 Viveram ali até saírem às indenizações.

  E as indenizações pela morte do pai e por conta do incêndio criminoso da favela Praia do Pinto, onde moraram, foi o ponto de partida para iniciar seus planos de enricar e dar uma vida de princesa para sua filhinha/irmã. 

  Um dos fregueses cativos de Marta era advogado!  Um homem muito influente que amava Marta desde sempre.  A conheceu em uma festa na Boate Love Story e se apaixonou.  Desde então ele nunca mais a largou.  Colocou-a no bordel de Copacabana e era o cliente mais cativo, o mais generoso e o mais gentil também. Ele a ajudou com os processos. Então, ganharam dois apartamentos no Minhocão da Gávea, um bairro chique da zona sul do Rio de Janeiro.

  Madame abençoou Marta que agora tinha para onde ir.  Ela a liberou para ir embora. Já não tinha forças para manter a casa funcionando.  Estava nas últimas!    Marta sentiu muito em despedir-se da cafetina. Sabia que sua doença não tinha cura.  Providenciou para que morresse em paz.  Organizou suas finanças, despachou as funcionárias, alugou os outros apartamentos, deixando-a confortável para viver seus últimos tempos. Madame Severina! Era esse o nome de Madame de Copacabana que ficou só com a preta Chica, que cuidou dela até sua morte e as irmãs que a acompanharam até seu último suspiro. Madame de Copacabana morreu no colo de Marta enquanto Laura penteava seus cabelos e cantava para ela aquela canção que acalentava seus corações nordestinos:

“Sabiá lá na gaiola fez um buraquinho

Voou, voou, voou, vou

E a menina que gostava tanto do bichinho

Chorou, chorou, chorou, chorou

Sabiá fugiu pro terreiro

Foi cantar no abacateiro

E menina pôs-se a chamar

Vem cá Sabiá, vem cá”

E assim Madame Severina, a Madame de Copacabana dormiu para sempre.  Partiu serena e calma como nunca foi!  As três se abraçaram e colocaram dentro desse abraço o corpo de mais aquela Severina. Quatro mulheres fortes! Unidas no amor e na morte!  

Se despediram cada uma do seu jeito e agradeceram por tudo que a cafetina representou em suas vidas.  Laura, muito novinha era só choro! Chica soluçava baixinho num lamento sofrido e carinhoso.  Marta não chorava e seus braços seguravam as todas as três com força e coragem! Marta era assim forte como a seca do Nordeste, resiliente como as ruas da cidade!  Assim eram essas mulheres. Fortes, corajosas e resilientes! 

Foi o enterro mais lindo já visto em Copacabana!  A capela do cemitério encheu.  e teve tanta gente que se tornou pequena para conter todos os amigos, clientes e funcionários que fizeram questão em dar o último adeus a Madame de Copacabana. Esse enterro de puta representou!  Em vida de puta tem sim, muito amor!

 Conjunto Habitacional Marquês de São Vicente, oriundo da Favela Parque Proletário. Uma reurbanização da década de cinquenta.

Naqueles anos setenta um túnel acústico foi construído para unir a zona sul a Barra da Tijuca e ao Túnel Dois Irmãos e passava por baixo do prédio.  Isso causou grande desvalorização do imóvel devido ao barulho do trânsito que explodia bem dentro dos apartamentos do conjunto.

Então a PUC-RIO e os proprietários dos imóveis negociaram em favor das famílias dos envenenados dos Laboratórios Parque Davis e dos sobreviventes do incêndio da favela Praia do Pinto que receberam as moradias como indenização por conta da ação coletiva movida pela Assistência Social da PUC- Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), que acolheu as duas causas.  Laura e Marta foram beneficiadas nessa ação e ganharam dois imóveis no Minhocão da Gávea.

 E assim as irmãs começaram uma nova história!   

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