Peter Strall espera ter uma vida tranquila em Nova York, com seus poucos amigos e um emprego comum, longe de seu passado conturbado. No entanto, por mais que tente fugir, algo dentro dele anseia por acordar. Peter precisará voltar ao local de sua queda e lutar contra uma força maior do que ele, mesmo que venha a custar o resto de sua sanidade. A floresta clama pelo despertar. Carregado de um suspense psicológico, Desperta é uma viagem pela psique humana em busca de redenção.
Ler maisAs folhas moviam-se numa dança singular com o transpassar de um vento penetrante e ameaçador. Um sopro gelado deslizava por entre as copas das árvores e seguia seu percurso, infiltrando-se por entre ciprestes e salgueiros, criando seu próprio caminho tortuoso. Seres furtivos saíam de seus esconderijos. Olhos arregalados fitando a sufocante escuridão, atentos a qualquer sinal de perigo. Zumbidos, ululas, chiados e coaxos ecoavam nos cantos, copas e tocas. A floresta estava viva, apesar do pútrido odor que emanava de suas entranhas.
Pulsava como um coração prestes a entrar em colapso.
Os passos firmes daqueles pés descalços deixavam marcas visíveis na terra enlameada. Apesar das lágrimas, não vacilou. Estava convicta. O tempo das incertezas há muito jazia no lago do esquecimento. Não havia mais disputa.
“Você é jovem”.
Diziam.
“Tem tempo.”
Mentiam.
“Para com essa bobeira.”
Decretavam.
O tempo se foi e a “bobeira” se enraizou.
Criou um nó que nem mesmo o seu filho poderia desatar.
Ela não saberia dizer quando tudo começou. Talvez o começo fosse um amontoado de pequenos retalhos que, no final da costura, formassem uma imagem desfigurada do que deveria ser uma vestimenta.
Foram os gritos. Tapas. Ausências.
Uma mistura do tudo e do nada.
“Meu pequeno Peter... Mamãe foi dar uma volta. Preciso que você seja forte. Muito mais forte do que eu. Eu sei que o tio Oswald vai cuidar de você, meu amor. Te amo muito.”.
O bilhete jazia ao lado da cama de Peter, que quando acordasse não teria à mesa o seu pão com manteiga e o suco de laranja, nem um cafuné ou o beliscão amoroso na bochecha. Também não sentiria o perfume dela e nem a ouviria lhe chamar para almoçar ou guardar os brinquedos.
Apesar do breu, o facho lunar conseguia clarear algumas partes da floresta. Parou em frente a uma grande árvore que possuía dezenas de rabiscos, nomes e recados. A dela, claro, estava ali, próxima do jovem Barney. Fragmentos de uma época desbotada quando ela acreditava que poderia até voar, se tentasse com afinco.
“Tão romântico, brincalhão, inteligente... Como ele havia se perdido tanto, quando deveria existir apenas um caminho? Em que momento nos perdemos?”.
A cada batida, uma peça que os conectava caía ao chão. No começo eram peças sem muita importância. “Dá para ficar sem!”, “Não importa”. Mas continuaram a cair, uma após a outra. Cada vez maiores e mais significativas. No final, não existia mais algo.
Olhou para as marcas afundadas no casco da árvore e começou a escalá-la como quando nova. Aqueles galhos, que já serviram de esconderijo e descanso, agora atraíam-na uma última vez. Segurou a corda com firmeza, encarando-a com melancolia. Sentia medo, como achou que sentiria. Prendeu umas das pontas no galho acima e enlaçou seu pescoço. O lago a frente soprou, jogando o seu cabelo para trás e empurrando para o abismo os resquícios de lembrança em sua mente. E então, o vazio.
Justine Strall caminhou para frente, como se fosse pisar em uma passarela invisível, mas o pequeno Peter, que havia acordado com o barulho da porta da sala se fechando, havia se esgueirado atrás da mulher que parecia ser o espectro de sua mãe. Chegou ao local da grande árvore no momento exato quando os pés — que em outros tempos serviram de apoio para Peter, enquanto dançavam ao som do velho rádio, no meio da sala —, afundaram no espaço vazio e tremelicaram durante poucos — e infinitos — segundos. Ele não conseguiu gritar. Não conseguiu chorar. Não queria estar ali. Eram muitos nãos para uma criança de onze anos suportar. Ainda de pijama, o menino ficou estático durante toda aquela noite em frente ao corpo inerte e flutuante de sua mãe.
Também nada fez quando algo em seu peito quebrou em milhões de pedaços, espalhando os estilhaços pela superfície de sua alma.
A brisa passeava pelo lago e costurava a floresta, acariciando palmeiras e bordos. O lago, como alguém na primeira fila de um teatro não querendo perder nenhum detalhe, continuava imóvel, calmo e sereno. E a lua — que, por sinal, estava cheia — banhava-se em suas águas, fazendo um maravilhoso reflexo em sua superfície laminada. Mas algo havia mudado e era tarde demais para que fosse prevenido ou remediado. Junto aos animais selvagens agora habitava algo muito pior, germinado pela dor e angústia, e que um dia iria acordar.
O homem bebericou o café morno e olhou pela janela da lanchonete Stop 20, do jeito que havia se acostumado a fazer desde que voltara para Nova York. Apesar dos muitos veículos e transeuntes que passavam apressados, seus olhos vagavam no letreiro da loja do outro lado da rua. Barney’s Hardware. Embora uma intrometida árvore bloqueasse boa parte das letras, ele sentia-se bem, sabendo que estava próximo a um nome tão especial. Podia ser bobeira, ele sabia, mas era uma bobeira que fazia questão de ter. — Amanhã vai fazer quanto tempo? — perguntou a mulher fardada ao sentar-se no banco oposto. — Putz, este café já está morno. — Cinco anos... — respondeu, pensativo, antes de olhar para ela. — Isso que dá demorar para se trocar. — Ah, é? Tu vai ver só, Sr. Strall. — Vou ver? Pode vir quente que eu estou fervendo, Sra. Strall! — respondeu, aos risos. — Tem falado com alguém de lá? — Pior que não. A última vez que falei com o Oswald fo
***O sopro congelante continuava a castigar o trio que gritava diante da última porta. Era a única coisa que podiam fazer no estado em que se encontravam. Como se as palavras os ajudassem a esquecer, ao menos um pouco, o sofrimento em seus corpos. Cada tossida de Oswald era acompanhada por olhares preocupados de Janet e Arza, porém elas não paravam de lançar palavras confiantes a Peter. Se Arza estivesse certa, o clima terrível que havia caído sobre eles tinha o intuito de acuá-los. Ao invés de dezenas de patas e pinças afiadas, o inimigo havia se moldado às circunstâncias. Mas quem era o inimigo? Tal pergunta martelava a cabeça de Janet enquanto ela continuava chamando por Peter. Seus pensamentos foram cortados quando Oswald caiu sobre a neve acumulada perto da porta.— Oswald!?Janet ajoelhou-se ao seu lado, sentindo a pele gélida do idoso.
A consciência é uma pequena lanterna que a solidão acende à noite.Madame de StaëlAs copas das árvores cintilavam com o manto prateado lançado pela lua tristonha. Bordos Açucareiros, Ciprestes e Salgueiros permaneciam dispostos lado a lado, dividindo o espaço com as vistosas Tulipeiras, cujas flores desabrochadas adornavam a floresta. Um sopro refrescante lambia o rosto salpicado de terra de Janet, Oswald e Arza, embora seus pensamentos ainda estivessem presos junto à bocarra monstruosa da lacraia de outrora. Haviam atualizado Peter quanto ao acontecido enquanto ele esteve fora, e ninguém queria imaginar o que viria a acontecer com a última porta.— Peter, se acontecer algo com a gente, saiba que não será sua culpa — comentou Oswald, antes de levar uma cutucada de Arza.— O que ele quer dizer é para você n&a
A cada minuto que passamos com raiva, perdemos sessenta felizes segundos.Somerset MaughamCom um impulso desengonçado, Arza colocou os pés no chão para receber o jovem que havia acabado de voltar da primeira porta. Notou como o semblante de Peter, mesmo naquele breu, estava com uma melhor aparência. A postura também parecia estar menos pesarosa. O que tivesse acontecido lá dentro, o havia modificado. Ela tinha seus palpites. Abaixou a cabeça e se lembrou dos seus dias solitários. Dos demônios que havia permitido conviver com ela. Estava feliz por Peter, mas, uma tristeza amarga corroía o seu coração. O que ela havia deixado de viver por causa do medo? Quem havia deixado de conhecer? Afastou a nuvem cinza que vivia em seus pensamentos e escancarou os dentes amarelados na forma de um singelo sorriso. Peter iria precisar de todo apoio para passar pelas outras portas,
A ansiedade e o medo envenenam o corpo e o espírito.George Bernard ShawPeter atravessou a primeira porta e se viu cercado por um enorme muro que parecia ser formado inteiramente por uma espessa vegetação. O véu de trevas cobria o céu, a ponto de ofuscar o brilho celeste. Uma parte dele queria voltar. Queria chegar para os outros três na clareira e dizer: “Desculpa, galera, mas não vai dar!”. A outra, mesmo que de forma tímida, se mostrava mais curiosa, e era essa que ele precisava escutar.— E agora? — disse, temeroso, ao olhar para trás.— Agora você precisa seguir em frente. Respire fundo e veja com calma tudo à sua volta. Sempre há uma saída.— Certo... Ver com calma... Ver com calma... ALI!Apesar da sensação de que suas pernas falhariam a qualquer momen
O malfadado quarteto adentrou a floresta a passos vacilantes. Cada um deles lidava com os questionamentos que pincelavam a tela rabiscada em suas mentes — embora Arza mantivesse o semblante de fascínio no rosto enrugado —, no entanto, o pensamento comum era que estavam se infiltrando no corpo de algo vivo. Era como se estivessem fazendo uma incursão para o interior de um gigante caído, mas que permanecia vivo o suficiente para tremelicar a carne e os ossos. O movimento da vegetação em volta era como uma profunda respiração, mais cadenciada do que a dos quatro intrusos.Arza olhava em volta, com tamanho desejo, que seus olhos caídos chegavam a brilhar em uma intensidade que há muito havia desaparecido. Quem diria que ela houvesse de encontrá-lo justamente ali. Embora não fosse ela a convidada especial, por um breve momento, enquanto fechava os olhos e respirava em harmonia com a floresta,
Último capítulo