Capítulo 5: Aliança improvável

                                                  5: Aliança improvável

         Perryk correu o mais rápido que podia pelos becos mais ocultos que pôde encontrar, sendo seguido de perto por Agrur que ajudava carregando suas coisas. O animal era estranhamente forte, além de bem ágil, o que facilitou o andamento das coisas para o esconderijo, deixando o rapaz mais ocupado com seus próprios pensamentos. Aquela situação toda estava tirando sua calma gradativamente, considerando que tudo ocorrera em apenas uma manhã, como num jogo de dominó. Parecia algo tão surreal e absurdo, e ele tentou se cortar e se beliscar para ter certeza de que não estava sonhando ou tendo alucinações. “Uma princesa neurótica planejou me usar de objeto amoroso pra chamar a atenção do pai dela por causa da madrasta malvada, só pode ser alguma brincadeira medonha”, ele refletia tentando se enganar e se recusando a acreditar naquilo tudo, mas sem sucesso.

            Pois a coisa toda parecia real demais, e não podia deixar de ouvir uma ansiedade tangível na voz da princesa Liriel quando esta falava da madrasta, Aggrive. Sabia que ela era nativa das terras de Rukinfillir, e muita gente tinha aversão com aquele povo por alguma razão. Perryk não dava bola nenhuma, não era algo que lhe dissesse respeito, mas as suspeitas em cima da situação da tal Aggrive, somada às acusações de Liriel, e dos precedentes que o rapaz soubera daquele povo, davam certo peso na coisa toda.

            Fosse como fosse, agora ele precisava se manter minimamente escondido até os guardas esquecerem que ele estava no salão da pousada, e que o dono da pousada e a garçonete decidissem que aquela história toda não valia seu tempo e que deveriam voltar ao trabalho. Com sorte, Perryk poderia pagar pela janela quando tivesse as moedas para tal.

            Chegando à entrada da torre abandonada, ele entrou pelo buraco escondido que usava sempre, seguido de Agrur, e subiram ambos ao terceiro andar, onde Liriel estaria descansando. Chegando lá, ele começou a colocar suas coisas numa larga mesa mais distante no lugar, sem dar muita atenção à garota dormindo na cama. Agrur o ajudou, retirando coisas de dentro das mochilas e avaliando o local. Sempre fuçara aquelas partes quando Perryk não estava por perto, e o terceiro andar ainda tinha alguns livros com metade das páginas boas para se ler.

            Quanto ao rapaz, ele separou um pouco de carne seca que trouxera e passou a mastigar pedaços da comida para pensar. Com o coração mais calmo depois da corrida, tentou avaliar sua situação. “Comida pra apenas um dia e meio, mais ou menos... Acho que dá pra voltar quando a caravana chegar”, pensou, sentindo-se seguro de que aquilo era uma situação mediana. Nunca passara por dificuldades, mas também nunca precisara fugir e se esconder correndo o risco de ser pego por um dono de pousada furioso e guardas a serviço do castelo. Aquela afirmação de Liriel, de que metade dos guardas estavam a serviço exclusivo de Aggrive era muito estranha. Se fosse verdade, teria de se certificar de como identificá-los. Balançou a cabeça, mandando embora aquela paranóia indesejada.

            Puxou um banquinho caído que havia ali e continuou mastigando a carne seca. Agrur estava separando livros velhos, enquanto Liriel dormia. Ela vestia o que parecia uma camisola enorme, preta, de tecido leve. Pensava se um cobertor que trouxera seria o bastante para cobrir a garota, pois não queria que aquele plano maluco dela voltasse à tona. Isso, até que ouviu a princesa gemer no sono e acordar pouco a pouco, bocejando e espreguiçando o corpo magro e pequeno.

– Finalmente voltou... – Ela esfregou os olhos com uma expressão rabugenta – O que foi fazer?

– Pegar coisas, pra nos manter aqui – Perryk respondeu, mastigando sua carne seca e não muito a fim de conversar.

– Poderia ter me avisado.

– Não poderia, não.

– Grosso.

– Sou grosso com quem tenta destruir minha vida com planos loucos, vossa alteza.

– E você nem mesmo tem jeito pra lidar com a realeza... – Liriel reclamou fazendo beiço e saindo da cama, sentido um pouco de fome.

– Seu pai, o rei, é uma coisa. Você, por outro lado, mais parece uma aprendiz de palhaça com aquele seu plano idiota. Vou tratar você como você age até que se comporte como princesa.

– Sabia que isso pode ser caracterizado como ultraje à família real, não é?

– À essa altura eu já não ligo – Perryk retrucou secamente.

– O que deu em você, afinal? Eu já desisti desse plano, eu percebi o quão perigoso ele seria.

– Não me diga... Pensou nisso sozinha? – Perryk levantou uma sobrancelha.

– Ai, como você é chato! Seria um péssimo marido! – Liriel disse enquanto pegava um pedaço do seu pão, guardado nas suas coisas em sua bolsa – Quer que eu faça o quê? Que peça desculpas?

– Seria uma boa, pra começar. Depois disso, poderia me pagar por todo esse inferno que me fez passar.

– Nem foi grande coisa, não exagera. Quem deveria me pagar é você, deixei uma sacola de moedas douradas bem generosa na pousada pra pagar tudo o que você quebrou e comeu.

– Você deixou lá porque quis, princesinha.

– Será que vocês dois podem calar as malditas bocas de vocês? – Agrur falou em voz alta, irritado, ganhando um suspiro assustado de Liriel – Eu estou tentando ler aqui e essa discussão toda está me deixando louco a ponto de fazer escamas caírem – E para provar, jogou em Perryk uma escama como se joga uma pedra pequena, e voltou a ler.

– Ele fala... – Liriel arfou e tentou se sentar, caindo com o traseiro no chão – Aquele bicho fala...

– O nome dele é Agrur, e ele é um ratagarto.

– O que raios é um ratagarto?

– Uma criatura quimérica criada pelos antigos dragões antes de desaparecerem depois do Mal de Azirov. São como servos, ajudantes, até mesmo curandeiros, e eram companheiros dos dragões de antigamente. Não se vê muitos deles por aí ultimamente...

– E como ganhou esse... “Ratagarto”?

– Anos atrás, uma caravana viajante veio aqui, em Yongard, e lá tinha um velho que me fez uma pergunta esquisita. Consegui responder, eu acho, e pude pagar por um livro e pelo ovo dele que parecia uma grande fruta malmelão. Desde então ele é como um cão ou gato, sempre me seguindo por aí.

– Cães e gatos são muito tediosos e enfadonhos, garoto – Agrur falou por cima de sua leitura.

            Seguiu-se um silêncio constrangedor no grande quarto. Perryk mastigava ruidosamente sua carne seca, enquanto Liriel o olhava rabugenta, sem dizer nada. Vez ou outra, o som de uma página de livro sendo virada por Agrur e alguns resmungos vindos do ratagarto. Então, a princesa decidiu puxar conversa com Perryk depois de se levantar do chão e recobrar sua dignidade ao se sentar comportada na cama.

– Trouxe algum cobertor nas suas coisas?

– Que exigente... – Ele respondeu, sarcástico.

– Eu falo sério, não estou exigindo nada – Liriel reclamou, chateada com aquele tratamento – Olha, me desculpa mesmo por te arrastar pra essa situação toda. Se quiser, posso pensar em outro plano pra desmascarar a Aggrive e salvar o reino do meu pai.

– Não, valeu... – Perryk respondeu sem olhar para ela.

– Por que não?

– Ainda não ouvi as desculpas que eu quero que você diga.

– Ma... Por que... – Liriel sentiu a raiva subir por seu corpo com aquele comportamento, mas preferiu agir com mais calma, sabendo que precisava da cooperação dele – Me desculpa, okay? Eu tava com pressa, eu achei que você fosse topar porque...

– Por que...?

– Poxa, nunca passou pela cabeça se casar com uma princesa? Ainda mais eu, a quem todo mundo chama de fada.

– Seu ego me surpreende, vossa alteza... – Perryk suspirou, seu sarcasmo ainda mais seco do que antes – Não penso nessas coisas. Não me interesso por isso.

– Por que não?

– Não é da sua conta.

– Ah... – A princesa não sabia o que responder àquilo, preferindo voltar a se desculpar com ele – Enfim, eu te causei problemas e não medi o tamanho das conseqüências que poderiam cair em cima de você e da sua família. Agora, eu vi que fui bem mais do que só imprudente... Só queria que meu pai me desse ouvidos, eu não posso permitir que ela arruíne tudo só por ganância.

– Certo... Agrur? – Perryk chamou o ratagarto.

– Pois não? – O animal respondeu depois de fechar um livro com uma batida.

– Parece convincente pra você esse pedido de desculpas?

– A voz dela tinha o tom do arrependimento, e eu não vejo porque não dar uma chance a ela.

– Ótimo, então – Ele se virou para a princesa – Vou te ajudar.

                                                           ----

            Horas mais tarde, no portão norte da cidade, um viajante solitário adentrava os muros internos do Distrito Cerúleo. Montava um grande cavalo cinzento, e reclamava constantemente que preferia o lombo do touro encouraçado que montara um dia atrás, mas precisou matar o animal para comê-lo. Deu sorte de que um viajante incauto não percebeu sua presença até ser tarde demais, e agora, Nazariv montava aquele cavalo cinzento de corpo duro e sela arrojada.

            Os rukianos não eram cavaleiros, preferindo o conforto de carruagens e carros, ou bigas, até mesmo as caravelas aladas que por vezes faziam longas viagens a lugares mais distantes no mundo. Os animais que mais possuíam em Rukinfillir eram galinhas, cães vira-latas, burros e gansos. Odiavam cavalos e porcos, e tinham um medo enorme de animais marinhos. Mas Nazariv precisava se apressar, e montar no cavalo era sua única alternativa. Por sorte o cavalo lhe economizou um bom tempo no lugar do touro encouraçado, podendo chegar antes da caravana e por um portão longe do portão oeste. E não demorou muito até ele se dispersar na multidão das ruas e ir em direção ao castelo, sendo guiado por um dos guardas que sua mãe lhe dissera que estaria esperando nos portões quando chegasse: carregavam o distinto brasão do cão azul em fundo branco em seus uniformes, e o filho de Aggrive se sentiu mais confortável.

            Chegando ao castelo, ele foi recebido com beijos e abraços da mãe, um aperto de mão amigável do tio, e logo foi preparado um banho e roupas limpas para Nazariv poder almoçar com eles. Logo, estavam os três sentados à mesa e comendo.

– Como foi sua viagem, querido? – Aggrive perguntou, a voz besuntada em mel e carinho materno que nunca demonstrava com Liriel.

– Uma droga, mãe – Nazariv respondeu ao terminar de engolir uma gorda fatia de boi ao molho – Precisei me misturar com toda a sorte de idiotas, de sangue impuro e desgraçados descrentes. Tive sorte de me enfiar num grupelho despreparado de arqueólogos, como o tio Makrin sugeriu – Makrin ergueu sua taça de vinho o cumprimentando – Dei cabo deles, também. Tive de matar minha montaria pra ter carne pra comer, pois os mantimentos deles eram carne de porco salgada.

– Que horror...

– Não me surpreende – Makrin respondeu em seu canto – Selvagens precisam comer carne de um animal sujo e vulgar. Típico de raças inferiores.

– Mas a graça de Yaharerg estava sobre mim, pois pude confiscar um cavalo de um idiota que andava pelo deserto. Cheguei antes da caravana, nunca vão suspeitar de nada.

– Como esperado do meu filho, sempre genial – Aggrive brilhava em seus elogios ao filho – Espero que esteja de acordo com o nosso plano e todas as conseqüências.

– Eu vou até o fim, mãe. Nunca pensei que chegaríamos tão perto de conquistar todo o tesouro dessa terra infeliz. E, por falar no plano, onde está a donzela que me prometeu, mãe?

– Aquela pestinha não vai durar muito depois da lua de mel, te garanto... – Makrin comentou.

– Silêncio, Makrin – Aggrive ralhou o irmão que ria com sarcasmo – Ela está trancada no quarto, uma cozinheira foi levar o almoço para ela, mas não me importa. Ela estará presente no jantar esta noite, e terá de cooperar por bem ou mal. O que nos for mais útil.

– Percebo... – Nazariv comentou, refletindo sobre aquela situação em silêncio.

– Eu vou guiar você pelo castelo, depois, se preferir, sobrinho – Makrin se ofereceu após repetir a refeição.

– Por favor, tio – Nazariv ficou agradecido pelo convite.

            Após o almoço, Makrin e Nazariv deixaram Aggrive com seus pensamentos, se dirigindo ao seu quarto, enquanto os dois iam até uma torre no lado sul do castelo. Iam conversando e botando algumas novidades em dia, como se não estivessem envolvidos em negócios obscuros.

            Quando ficaram longe dos ouvidos de qualquer um que pudesse ouvi-los, passaram a tratar de negócios.

– Que feitiço você usou para dar cabo dos arqueólogos? – Perguntou o tio.

– Assimilação de tato e desintegração física – Nazariv respondeu – Qualquer objeto que estivessem tocando seria a coisa na qual se transformariam. Pequenas facas, livros, pedras, ainda dois idiotas tocavam na água do pequeno riacho subterrâneo que havia lá.

– Subterrâneo? De quê está falando?

– O grupo se separou da caravana, como você deve saber. Se dirigiram a um templo abandonado há anos, dos seguidores dos dragões, e lá um idiota juvenil descobriu uma alavanca secreta numa estátua do dragão de metal.

– Nagrash Dravin, o Metal da Fúria Alada – Makrin cuspiu as palavras com desgosto.

– Uma escadaria se revelou, havia uma câmara interna embaixo do templo, ocultando muitas coisas lá. Deixei todos transformados e eventualmente mortos, além de presos, depois que destruí a alavanca. Os touros encouraçados, a essa altura, devem ter debandado pelo deserto Sazzadrav e a beira da morte por falta de água.

– Não parece bom... Se pudermos localizar o templo, podemos pegar o que tiver lá, e destruir o lugar. Ainda podemos fazer uso da magia antiga, mesmo ela sendo hostil a nós.

– Não acho que valha a pena, tio. Yaharerg continua nos guiando muito bem, se dermos alguma chance pra magia dos malditos dragões, há uma chance de eles sentirem e decidirem voltar.

– Não, não... – Makrin sorriu, como se soubesse de algo muito importante – Quem sabe um dia você entenda, garoto.

– Sei... Agora, me explique de novo, tio: como vamos nos livrar dos funcionários e dos guardas leais ao rei?

– Eu já preparei tudo, rapaz. Uma toxina que será distribuída no jantar de hoje, apenas ao pessoal de Madrolan. Depois, vou convocar um grupo de mercenários que vai adentrar o portão leste e será escoltado até aqui. O castelo, então, será nosso, e poderemos começar nosso plano.

– Então, me diga por que precisamos da princesa? Ela é tão importante assim? Não seria mais fácil metê-la numa cela de prisão depois de dar fim em todos os funcionários do castelo?

– Ora, Nazariv... – Makrin aproximou-se de forma misteriosa do rapaz – É aí que você erra feio, garoto. Precisamos muito dela...

– Está querendo dizer... – Nazariv levou alguns segundos para entender, e queria não acreditar naquilo.

– Sim, garoto. Sim.

– Ela sabe? – Ele se referia à Aggrive.

– Minha irmã só sabe o que ela deve saber – Makrin assegurou sorrindo de forma confiante para o sobrinho.

– Ótimo.

            Os dois partilharam uma risada conciliatória e voltaram a discutir seus planos na sala da torre, dividindo então uma garrafa de vinho vermelho.

                                                           ----

– Então esse é o seu plano? – Liriel perguntou, analisando o estranho esquema desenhado por Perryk numa grande folha de papel.

– Precisamente, mais ou menos isso – Perryk respondeu, olhando com cuidado – Se você pudesse plantar um cristal comunicador que tivesse ligação com o cristal que o seu pai, o rei, carrega, que pudesse transmitir o que a sua madrasta diz sem que ela soubesse aos ouvidos dele, isso faria muito mais efeito do que tentar se casar comigo.

– Eu já pedi desculpas – Liriel corou um pouco com aquilo – Além do mais, você não faz o meu tipo.

– Ainda bem – O rapaz deu de ombros enquanto Agrur ria daquela conversa em seu canto, lendo.

– Não vai nem se incomodar?

– Me incomodar com o quê?

– Que eu não te ache atraente, oras.

– Se você não acha, tem quem ache, princesa – Perryk dobrou o papel do plano e guardou-o em seu diário.

– Você que pensa, Perryk. Sonha que alguma garota vá se interessar por você, magro e desajeitado que é?

– Você se encantou com o broche que eu fiz – Perryk apontou para a jóia, que ela exibia presa em seu camisolão – Sou ótimo com as mãos, senhorita princesa de pé de fada. Além disso, músculos são apenas uma dentre várias qualidades que um homem pode ter. Eu tenho as minhas, outro rapaz pode ter as dele.

– Grande coisa! – Liriel resmungou escondendo o broche com uma mão enquanto se jogava na cama – Só sei que você não é nada parecido com os pretendentes de reinos vizinhos que vivem mandando cartas de cortejo ao meu pai pedindo permissão para me conhecerem.

– Bom pra você, princesa – Perryk puxou um banco e começou a escrever em seu diário.

            Tudo andava bem àquela tarde enquanto planejavam como poderiam desmascarar Aggrive. Não houve sequer menção ao plano anterior de Liriel, até Perryk resolver alfinetar a garota com um pouco de ressentimento que sobrava depois de tudo o que ela o fez passar num só dia. Ela, obviamente, tinha que defender sua própria honra, mas por não conhecer bem o rapaz dificilmente teria chances contra ele numa discussão. Ao contrário dela, cuja vida era quase exposta a todos por ser da realeza e nobreza, ele era um desconhecido. Perryk poderia saber todos os detalhes possíveis da vida do castelo pelo simples fato de que sempre havia fofocas e boatos correndo soltos, sendo metade deles verdadeiros e a outra metade apenas intriga e traquinagens. Mas Liriel nada sabia, nem saberia, se continuasse agindo como agora. Sequer fora capaz de convencê-lo a beber de seu cantil para poder se vingar dele, teria de usar outra abordagem.

            Mas seria realmente difícil, pois seu bicho de estimação, aquela coisa medonha que era um roedor combinado com algum réptil estranho, estava atento a praticamente tudo no ambiente ao redor dele. Tinha de encontrar alguma brecha naquela vigilância indesejada e inesperada.

            Mas, pensando bem nisso, valia mesmo a pena se vingar de um rapaz que estava tentando ajudá-la depois de ela tê-lo metido em problemas tão estranhos? Ele tinha boa vontade, era dedicado e engenhoso, e não queria nenhum favor da parte dela, só queria ajudar e voltar a viver sua vida antes de ela se intrometer em sua paz. Mas, a vaidade e o ego da princesa falavam mais alto, pois nem mesmo seu pai a tratava como ele fazia, e empregadas menos avisadas de sua personalidade já passaram maus bocados em suas mãos em tempos anteriores.

            Pensando um pouco, notou que Perryk não tinha onde dormir, e aquela poderia ser a sua deixa.

– Perryk, você não trouxe um saco de dormir?

– Não, não vejo motivo pra isso – Ele respondeu indiferente.

– Mas você precisa de um pouco de conforto – Liriel retrucou, fingindo preocupação.

– Não vejo motivo pra isso também, eu só preciso enrolar meu cobertor pra fazer dele um travesseiro...

– Perryk, não vou tolerar isso. Podemos não ser amigos nem nada, mas você precisa de uma boa noite de sono – Ela estava teimosa como uma princesa deveria ser, o que lhe cabia muito bem quando precisava.

– E por que não? – Ele olhou para Liriel com uma sobrancelha arqueada, cético de que aquela preocupação era sincera.

– Mesmo depois de eu ter feito toda aquela bagunça, você ainda quer me ajudar...

– Pra me livrar de você, não se esqueça.

– Mas ainda quer ajudar. Você merece dormir com algum conforto.

– Tenho de concordar com ela, rapaz – Agrur foi em defesa de Liriel, de forma inesperada – Eu posso ir até a casa de Altruz, buscar um cobertor grosso que te sirva de colchão, e volto em tempo recorde.

– Só tenha cuidado pra que não te vejam, entendeu? – Perryk avisou ao amigo, vendo que não havia como dissuadi-lo da idéia.

– Ora, garoto... – O ratagarto se espreguiçou, correu pelas vigas de madeira e pela armação do teto até pular para a janela, numa demonstração inédita de acrobacias e exibicionismo – Você não faz idéia do que eu sou capaz – E pulou, sumindo na luz alaranjada do sol da tarde.

            Os dois se olharam por alguns segundos e riram daquilo. Perryk nunca vira seu animal de estimação tão confiante e arrogante, e Liriel nunca antes vira um animal daqueles, que falava, tinha personalidade e sabia fazer aquelas acrobacias malucas.

            Mas, depois das risadas, seguiu-se um silêncio constrangedor quebrado apenas pelo rabiscar de Perryk em seu caderno, e Liriel queria saber o que ele fazia, então decidiu se levantar e caminhar devagr até onde ele estava espiar por cima de seu ombro. E ela o fez, por vários minutos, respirando inadvertidamente em cima do pescoço do rapaz fazendo sua pele se arrepiar brevemente. Ele agüentou aquilo por alguns bons minutos até sentir que poderia jogá-la pela janela.

– Princesa... – Ele suspirou um pouco impaciente – Eu gostaria que me pedisse ao invés de vir me espionar desse jeito, eu teria mostrado o desenho sem problemas.

– Desculpa... – Ela se arrependeu com sinceridade e puxou o banco onde pusera sua bolsa mais cedo para se sentar – O que é? Parece um dragão...

– E é – Ele confirmou, mostrando o caderno a ela – Eu o chamo de Drageskala. Ele tem uma irritante tendência de aparecer nos meus sonhos.

– Nos seus sonhos? – Ela arqueou uma sobrancelha.

– Sim, e eu acho que seja algum sinal ou algo do tipo.

– Duvido muito.

– Por quê?

– Aqueles tempos eram uma era muito antiga para se ter certeza de qualquer coisa... Eu duvido que os dragões realmente tenham sido deuses, talvez eram só bestas bem grandes de aparência glamorosa, mas não eram reis. Os humanos tiveram muitos outros encontros com outras coisas, você sabe. Provavelmente as pessoas distorceram a história pra favorecer uma religião de dragões, quando eram fadas e elfos quem realmente se preocupava com os humanos.

– Eu já li histórias sobre, mas não me parecem convincentes.

– E por que não? – Liriel sentiu-se ultrajada com aquilo.

– Bom – Perryk coçou o queixo com sua caneta – Primeiro que há relatos dos elfos e fadas sendo extremamente territoriais e expulsarem qualquer tipo de criatura que não seja de seu povo de suas terras. Depois, tem os relatos de que houve guerras entre humanos e elfos porque os elfos odiavam os humanos por sua feiura, e não queriam conceder espaço além do que os antigos reis já tinham. E atualmente não se vê elfos dando sopa por aí, não é? Talvez tenham aprendido a lição e se escondido dos humanos para evitarem guerras desnecessárias e viver em paz sem terem de se preocupar conosco. Já as fadas, provavelmente vivem com eles, ou com os dragões que as criaram.

– Foram os elfos que criaram as fadas – Liriel estufou o peito e pôs as mãos na cintura.

– Foram os dragões, princesa. Há registros disso em toda parte.

– Por que você acredita tanto nisso?

– Se você comparar os relatos entre os povos, de quem acredita em o quê pelo mundo todo, vai ver que os dragões são proeminentes em praticamente todo o lugar. Cada nação, cada país, reino, império, e todo o resto, tem sua própria versão, com detalhes a mais ou a menos, mas sempre há dragões, em diferentes graus.

– Aham, e só por que há uma maioria de pessoas que acreditam então significa que as outras histórias são mentira? – Liriel ainda estava rabugenta com aquilo.

– Eu não disse isso. O que eu disse é que se há uma maioria gritante com relatos semelhantes, ao redor do mundo todo, acerca de uma origem apenas e que se assemelha a outras de povos que nunca se encontraram antes, há uma veracidade que não pode ser ignorada nos relatos em questão.

            Ela nunca pensara daquela forma. As histórias que sua mãe e seu pai lhe contavam pareciam mais confiáveis do que antigas lendas sobre feras aladas que cuspiam fogo e devoravam baleias nos oceanos. Os elfos, e as fadas, eram muito mais elegantes e criveis para se ter como pilares da humanidade. E era fato que eles não eram fãs de outras espécies pensantes, mas houve uma época onde humanos, elfos e fadas viviam em harmonia e em conjunto. Onde foi que tudo mudou? Será que Perryk sabia da resposta?

            Liriel poderia perguntar outra hora, pois não podia mais perder tempo com seus planos. Ela correu até as coisas deles, suas bolsas, e buscou tiras de carne seca para ambos, junto com sua garrafa de água misturada com as ervas. “Tomara que ainda esteja forte”, pensou, oferecendo a ele um pouco de carne e uns goles da água.

                                                           ----

            Quando Agrur voltou algumas horas mais tarde por ter tido problemas nas ruas e em casa, encontrou Perryk e Liriel deitados no chão, enroscados de forma esquisita e roncando profundamente. Ele estava sem seu casaco, a camiseta presa num dos braços, enquanto a princesa estava quase despida, enroscada no corpo do rapaz de forma indecente e babando em seu ombro.

            Que situação mais absurda ele tinha de presenciar num momento tão delicado. Agrur suspirou, tentou avaliar o quê acontecera ali, até ouvir Perryk resmungando e se movendo. Decidiu cutucá-lo no pé descalço, pois o outro ainda vestia a bota, e conseguiu acordar o amigo de imediato. Este, é claro, levou o maior susto de sua vida ao ver o que acontecera, sem entender nada e sem saber o que dizer para o ratagarto que o olhava com uma cobrança quase paterna.

– Não me diga nada, rapaz – Agrur levantou uma mão quando Perryk parecia que diria algo.

– Não é o que você tá pensando – O garoto respondeu apressado, o desespero tomando conta de seu rosto.

– Eu realmente não quero saber, não é da minha conta e não me interessa. Eu vou estar no último andar, vá até lá quando estiver melhor – E Agrur subiu pelas escadas circulares até o último andar, deixando para trás uma grande sacola de couro.

            Perryk se levantou com pressa, olhando aquela cena bizarra e para si mesmo. Estava com alguns arranhões na camiseta, uma das botas altas que vestia estava ao pé do banquinho onde estava sentado, e Liriel estava com pedaços do camisolão terrivelmente amarrotados a ponto de deixar pedaços de pele mais expostos do que se deveria, especialmente para uma garota como ela. “Não uma garota comum, uma princesa”, ele se corrigiu, “e agora eu tenho certeza de que tô morto”.

            Tentou levantar a princesa nos braços, cobrindo seu corpo o melhor que pôde e deitou-a na cama, olhando-a com preocupação enorme e olhando para si mesmo com raiva e medo crescente. Se tivesse chegado a ter relações com ela, estaria em sérios apuros. As implicações do que fizera eram terríveis, e provavelmente teria de fugir levando Altruz e Grivian consigo para outro lugar. Mas não era hora para pensar nisso, pois Agrur estava esperando para falar com ele no último andar.

            Perryk subiu as escadas apressado, a ansiedade pulando em sua mente como uma lebre alada e o coração ameaçando sair pela garganta. Quando chegou lá, o ratagarto estava parado na beira do espaço quebrado de uma parede, olhando por uma luneta que o rapaz usava para observar as estrelas durante a noite. Quando se aproximou, Agrur entregou a luneta para ele e sua voz era grave.

– Temos problemas, garoto.

– Que tipo? – Perryk, relutante, agarrou a luneta e olhou para as ruas, na direção que Agrur apontava. Lá, uma rua larga, mostrava vários guardas andando livremente e assediando as pessoas nas ruas. Exibiam um estranho brasão, diferente do dourado e vermelho do castelo: este era branco e azul.

– Acho que – Agrur falou, analisando a situação – se não estão atrás da princesa, talvez tenham acelerado as coisas pro plano da tal rainha má. Acho melhor se preparar para fugir, garoto.

– E pra onde? – A voz de Perryk era desolada.

            Não havia para onde corre. Havia?

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