Capítulo 1: Um reino nascido de acidentes

                                        1: Um reino nascido de acidentes

             “Há muito tempo, antes do tempo ser o tempo contado como é normalmente pela vida, antes da vida existir como deveria, existia a fonte da vida: um coração. Chamaram-no de coração, as mentes mortais, pois precisavam de uma metáfora que pudesse explicar o que ele era. As antigas poesias e estudos sobre o mesmo, como também o conhecimento passado pelos deuses, diziam que era grande, pulsava, tinha o formato de uma chama alaranjada e era esculpida no formato de um ovo. Talvez isso pudesse explicar de onde vieram os dragões: outrora chamados de dreki, drakks, draches, drakes, ou o que quer que fossem, essas criaturas de grande magia surgiram desse coração, como se chocadas, cada uma levando um grande poder consigo mesma e com grande capacidade. Eram em número doze, os grandes animais alados, e seus sopros iam do fogo ao veneno.

            Os restos do coração de fogo pulsante lhes deu uma ordem, uma vibração ao invés de palavras, que eles entenderam muito bem: criem.

            E eles o fizeram. Criaram. Começaram tentando criar coisas que lembrassem a si mesmos, para ver o que poderia resultar. E resultou nas pixies: criaturinhas semelhantes a dragões, mas algumas minúsculas, outras tão grandes e impossíveis de se conter que viraram as estrelas que vemos à noite. Diz-se que o nosso sol é uma dessas criações magníficas. Existem também os mundos mortos, do grande sistema solar dos dragões, estes eram protótipos para que as feras pudessem testar seus poderes, pois queriam dar vida a criaturas que pudessem pensar por si mesmas, mas sem o poder de destruir coisas simplórias simplesmente por existirem. Alguns tinham ventos demais, outros eram tóxicos demais, gelados demais, quentes demais, muita terra e nenhuma água, nenhuma terra e totalmente coberto de água... Faziam algo de errado, mas não sabiam dizer o quê.

            Vendo que trabalhavam aos pares ou trios, decidiram criar tudo juntos, num único mundo que fosse equilibrado para todos, por todos. Havia boa quantidade de terra e solo, água que criou mares e oceanos cercando ilhas, ventos levando as nuvens com chuva e o calor para longe, havia pântanos agradáveis e frescos, montanhas altas e vulcões enormes. Florestas escuras, sombras profundas, cavernas que iam ao centro desse mundo. Mas, apesar dos trovões, dos ventos, do farfalhar das árvores e dos rugidos dos mares e vulcões, tudo estava em silêncio. O que então faltava?

            Dentro de si, cada um dos deuses dragões ouviu uma fagulha da centelha do Coração de Fogo sussurrar brevemente: “vida”. Vida? Como fariam tal coisa? Como dariam vida? E a quê dariam vida? Mas, afinal, não custava nada tentar, não é? Começaram a esculpir ovos, como o Coração de Fogo, só que feitos dos elementos a que pertenciam: luz e trevas, metal e madeira, fogo e água, vento e trovão, solo e gelo, cristal e toxina. Pouco pareciam ter em comum alguns desses elementos, mas eles se compunham um como, sendo parte de um equilíbrio necessário.

            Os ovos, criados aos pares e também em numeração de doze, chocaram e revelaram criaturas semelhantes aos dragões divinos, cada um sendo macho ou fêmea. Diferentes dos criadores, estes tinham um período de vida, eram consideravelmente menores e mais simples na aparência. Os divinos perceberam que suas crias não podiam viver apenas de luz, água e plantas (como alguns deles, de fato, viviam, até mesmo de cogumelos e rochas), então começaram a criar combinações, de diferentes coisas que lhes vinham às mentes, dando vida aos animais aquáticos, aos animais terrestres, aos voadores, aos minúsculos insetos, às frutas e cereais, verduras, raízes que eram comestíveis e boas de se usar.

            Os animais que os divinos criaram evoluíram por conta própria, o que surpreendeu muito os deuses dragões, e eles observavam tudo com grande curiosidade e interesse. O mundo vivia sozinho, seus servos dragões de suas linhagens criavam cortes, pequenos reinos onde podiam viver tranquilamente e compreender melhor o mundo onde foram colocados.

            Mas nada dura muito. Os dragões foram por inúmeros séculos as únicas criaturas sapientes e pensantes que havia no mundo. Os únicos a escrever, falar, cantar, dançar... E então descobriram os “grunans”. Era como chamavam a si mesmos, mais tarde sendo simplesmente os “humanos”. É dito que do primeiro encontro, houve contenda e luta, pois os humanos não sabiam o que eram os “drooks”, dragões. Quem os encontrou foi Narv’huk Quinto das Asas de Ouro, rei dos dragões da floresta, da linhagem de Hukurgra-tur, o deus dragão da madeira. Os humanos se assustaram com o brilho das asas dele, que eram coroadas com jóias por vitórias passadas nas competições de poesia que havia anualmente entre as doze casas. Mas entraram em genuíno pânico e pavor, usando de suas rudimentares armas para afastarem a “grande fera alada”, e Narv’huk se surpreendeu com aquilo, sendo forçado a se retirar.

            Ele chamou o resto de seu povo, junto com os outros onze reis e rainhas, e tentaram decidir o que fazer a respeito dos humanos. Não sabiam muito sobre eles, usando apenas a breve descrição que Narv’huk lhes dera: violentos, agressivos, facilmente provocáveis, e medrosos. Como poderiam entrar em contato com eles?  Metade dos reis dragões queria atacá-los e levá-los à extinção (imaginando que o assentamento que Narv’huk vira era o único que aqueles eram apenas os únicos humanos existentes no mundo criado pelos doze deuses). Muita discussão foi feita nos dias que se seguiram acerca do que fazer aos humanos, pois apenas matar não parecia certo, pois a outra metade pensava que seria melhor deixá-los em paz e apenas entrar em contato se apenas fosse necessário.

            Mas, por alguma razão, o rei Drungther das montanhas, recebera um conselho de seu sacerdote mor, que havia recebido um chamado do próprio Theran-Bra’kar, o deus dragão da terra e do solo, que lhe dissera para pegarem grupos de humanos, ao redor do mundo pois haviam muitos mais do que só aquele, e os ensinassem sobre seus costumes, sobre o próprio mundo, dentro de seus muros. E Drungther falou desse sinal em voz alta no parlamento. Outros sete também se pronunciaram a favor dessa decisão...”

– Corta essa parte chata, tio! – A pequena Millya exclamou de puro tédio – Vai logo pra parte onde o Arcanista foi criado!

– O que? Por quê? – Perryk retrucou, parecendo chateado – Achei que gostavam de ouvir a história toda, o relato completo de uma era antiga cheia de magia e dragões.

– Não é relato se é um mito! São lendas pra contar antes de dormir! – Jarryn falou em seu canto, limpando o nariz sujo e se empertigando todo.

– Olha, pequeno, mitos são, sim, relatos sobre tempos antigos que aconteceram de verdade. Nada mais são do que os contos de eras que esquecemos, e sem eles, não saberíamos de onde viemos.

            As crianças reunidas ali riram, e Perryk não conseguiu se zangar com elas. Quatro anos se passaram, nunca cansou desse livro conquistado com aquelas poucas moedas e a “pedra” contendo o ratagarto Agrur que sempre o acompanhava por aí. Era agora maior que um gato, de expressão inteligente e escamas cor de cobre, o pêlo sempre lustroso e bem escovado.

            E Perryk era agora conhecido em Yongard, pois era inteligente e sempre vinha com invenções que saíam de seus livros e estudos das tecnologias de outros povos. Tudo com um toque pessoal, ajudavam e muito na vida cotidiana do Distrito Cinzento onde vivia, modesto e de gente simples, mas decente. O pagavam para cuidar das crianças, as mães e avós, quando estas iam ao mercado e não podiam conter as pernas velozes de seus filhos e netos. Estes, por sua vez, adoravam ouvir as muitas histórias que “Tio Perry” contava, ricas em detalhes e magia, tão loucas e grandiosas que não importava quantas vezes as tivessem escutado, elas sempre voltavam para ouvir mais, mais e mais, os olhos brilhando de ansiedade.

            E a história que mais gostavam, é claro, era a história da criação do Arcanista e do Devorador: os dois últimos dragões, o primeiro semi divino e o segundo uma aberração de destruição em massa, que precisou ser aprisionada em outro lugar longe da existência. Onde, não se sabia, mas as crianças adoravam ouvir.

– Querem mesmo que eu conte sobre o Arcanista? – Perryk perguntou, um pouco apressado para poder agradar ao público.

– SIM! – Sua platéia disse num único grito de entusiasmo.

– Pois bem, que seja então – Ele lambeu a ponta dos dedos brevemente, folheou todas as páginas que pôde até chegar ao capítulo que queria – Aqui... E então, os humanos aprenderam a usar a magia...

             “... Que os dragões ensinaram a eles. Grandiosa, poderosa, cintilante e, é claro, divina. Em suas colônias, os que voltaram mostraram coisas grandiosas aos seus irmãos e irmãs, e deram grandes avanços em seus pequenos feudos, tornando-se pouco a pouco pequenas cidades, todas elas ligadas aos reinos dos dragões como vassalos e principados dos jovens senhores dragões que nasciam. Havia amizade e paz entre humanos e dragões, caçavam juntos, dançavam juntos, cantavam juntos.

            Os humanos que permaneceram nos reinos dos dragões, de tão maravilhados que se sentiram com o esplendor que viram, evoluíram muito em conhecimento, força física e longevidade. Muitos desses humanos, conta-se, tornaram-se dragões através de um desconhecido ritual, que nunca foi escrito ou salvo em registros. Os filhos que nasciam das uniões dos dragões puros com os “droogrunans” nasciam com aparência humana comum, mas desenvolviam a força dos dragões, tendo até mesmo a habilidade de se transformarem parcialmente em dragões. A estes, foi dado o nome de draconitas, as crias das escamas. E destes, novos povos e pequenos reinos nasceram.

            E, com eles, um culto. Chamados de Devotos do Princípio, este grupo de draconitas se dedicavam de corpo e alma a estudar o mistério do Coração de Fogo e da Origem. Seria aquele poder um dragão que não chegou a nascer e preferiu dar vida a outros doze? Será que havia uma alma referente ao Coração que ainda vagava por aí, precisando de um receptáculo para existir em forma física?

            Dentre todas as várias outras questões e muitos ensinamentos, os cultistas buscavam entender coisas como o além se havia um pós vida, se a alma do Coração existia, pois os reis dragões não diziam. Os próprios deuses se silenciavam ante a essa pergunta, pois “o que acontece após a morte, deve ser deixado para quando a morte vier”, diziam os sacerdotes dos reinos dracônicos. Mas os cultistas não desistiriam, e vieram com um plano. A mente por trás desse estranho plano era um misterioso homem chamado Azirov Brikonberg, vinha de uma terra muito distante, um assentamento de humanos de uma terra estranha. Dizia ele, sabia muito sobre como criar o receptáculo perfeito usando a magia que aprenderam. Estranhamente, ele não era de nenhuma linhagem draconita conhecida, mas, como ele era fiel aos ensinamentos e ao Código das Escamas, confiaram nele.

            Através de vários e complexos rituais, perpetrados no grande templo das Doze Garras Sagradas dos dragões, cada um dos sacerdotes dos cultistas de uma linhagem dos doze conseguiu dividir seu próprio poder com um décimo terceiro pilar feito de ossos e garras que fora construído ao centro do Templo. Guiados por Azirov, os doze então, derramaram uma gota de sangue, que foi jogada no novo pilar através de uma rajada de magia respectiva de seu elemento de poder.

            Mas nada os preparou para o que veio a seguir, muito menos Azirov, que se revelou um traidor para os outros tarde demais. O décimo terceiro pilar explodiu numa conjunção de luz branca e púrpura, queimando como se um trovão estivesse vindo do solo para os céus, os ossos e as gostas de sangue flutuando num grandioso tornado de energia e desordem, cuspindo raios de energia que tiraram a vida de sete dos sacerdotes, enquanto outros cinco eram tragados no tornado.

            O tornado encerrou sua destruição quando uma grande forma de vida surgiu do meio da luz: um dragão diferente de tudo que já havia pisado na terra, voado nos céus, caminhado nas florestas ou montanhas, ou nadado nos oceanos. As escamas brilhavam em muitas cores, mas o próprio dragão era primariamente branco e púrpura, evidenciando sua natureza arcana de puro poder e energia compressa naquele corpo esguio, elegante e forte.

            Mas experimentar o próprio corpo teria de esperar: pois Azirov rugia de ódio ao ver que seu plano dera certo pela metade, enquanto tragado pelo tornado e rugia de fúria. Ele prometeu retornar, em sete dias, enquanto era consumido pelos restos daquela destruição que agora fediam a uma podridão vil e corrupta.

            O dragão arcano recolheu os corpos dos sacerdotes mortos, e voou dali com pressa, pois da terra profanada pelo ritual um lodo sangrento borbulhava, as bolhas que estouravam emitiam o eco de uma risada medonha. Mas o dragão arcano não deu ouvidos. Ele pretendia fugir, apenas, tentar entrar em contato com outros cultistas e alertá-los do mal que viria, contar o que aconteceu.

            Ele foi duramente interrogado e muito maltratado pelos doze reis dragões, que o viam como o resultado de um ato profano de traição. Mas ele não se amedrontou diante das ameaças e das surras, ele contou tudo o que pôde, e demonstrou seus poderes com graça e altivez.

            Os sete reis dragões cujos sacerdotes draconitas foram mortos por muito velaram as mortes deles, que foram manipulados pelas promessas do estranho Azirov. Estes eram os draconitas da madeira e da terra, e do culto de Frag’har Sithur, o deus dragão do fogo escarlate, Balthun Braghin da água corrente, Vathra-gal, deusa dragão do vento uivante, Praghun’Hekkar das trevas ocultas e Nagrash Dravin do metal e minerais.

            Os outros cinco se preocuparam, pois os cinco que perderam poderiam ser um mau presságio, e se apressaram em checar se havia corpos ou uma forma de reparar o estrago causado pelos seus. Eram estes Trunbhar Varghanix do trovão, o culto de Khashiran-Thul, deusa das toxinas, Hakhira’garnish do gelo, o culto de Frinighan Thanir, deusa dos cristais, e por fim Ghavarran Halgun, irmã gêmea de Praghun e deusa da luz. Pouco havia para ser feito, de qualquer forma, mas foi o rei dragão do culto de Trunbhar quem resgatou as pessoas de vilarejos próximos à estranha inundação de podridão que se aproximava com rapidez crescente, e nela, ele ouviu as risadas malignas de Azirov. Ele alertou os colegas do mal que aquilo representava, e que precisava ser combatido.

            Estranhamente, foi o dragão arcano quem se ofereceu para combater aquele mal, pois ele tinha um plano...”

– E os reis dragões perguntaram... “Qual é o seu nome?”– Perryk parou por um segundo, como sempre fazia, tanto para excitar a curiosidade das crianças como para pensar naquela pergunta. Há cinco anos alguém lhe fizera uma pergunta semelhante...

– Arkanish! – As crianças responderam num grito empolgado.

– Isso mesmo, crianças, o Arcanista Arkanish, o de muitos fogos e grandes luzes – Perryk parabenizou a platéia com um sorriso satisfeito e continuou a leitura.

             “Dizia o dragão de cores brancas e púrpuras, que nenhum rei deveria cavalgar e voar para a guerra sob o comando de alguém sem nome. Chamou-se Arkanish, o coração arcano de muitas luzes, e comandou o plano de ação que selaria por muitos milênios o mal de Azirov, que o faria fraco e o mataria de fome e exaustão. Mas, para tal plano funcionar, Arkanish pediu aos reis dragões que lhe fossem fornecidos todos os segredos da vida e da morte, do além e da dimensão de fora, um reino de acesso que apenas aos próprios deuses. Oito dos reis dragões aceitaram o pedido, quatro recusaram, sentindo-se ultrajados por tamanha heresia de um pedido tão ousado e destemido. Os reis e rainhas dragões do gelo, cristal, toxina e luz se retiraram, prometendo que dariam conta daquele mal crescente sem atender aos pedidos tresloucados de uma amalgama suja nascida da união desrespeitosa de religiosos cegos que deram ouvidos a um forasteiro de planos escusos.

            Os oito que ficaram se envergonharam com aquelas palavras, mas Arkanish não se rendeu, e enalteceu a coragem dos oito que ficaram. Seriam lembrados para sempre como corajosos, e fosse qual fosse o desfecho, sempre seriam venerados como os reis heróicos que eram. Então, concederam ao dragão arcano seu desejo, e por cinco dias ele estudou. No sexto ele preparou o encantamento, e no sétimo, quando do retorno de Azirov, o horizonte ardeu em luzes amarelas e púrpuras, como se o próprio sol ardesse em uma fúria devastadora. O Mal de Azirov começou a queimar, raios acertando-o das nuvens negras carregadas pelos ventos e um grande circulo de fogo impedindo o avanço da podridão, enquanto a terra se abria e golpeava os longos braços de Azirov, o impedindo de escapar da fossa que iria expulsá-lo para o Além, e pouco a pouco, a magia de Arkanish enclausurava a energia maligna do forasteiro e seu ritual profano num canal de poder que o mandou para uma prisão extra dimensional.

            Se para o Além foi, não se sabe ao certo. Sequer a localização pode ser encontrada por meios mortais conhecidos. Pois, após a expulsão de Azirov e seus acólitos aglomerados da podridão, a água caiu por sete dias na vasta extensão de terra profanada, o fogo a esterilizou, e nova chuva caiu para curar as feridas. Diversos minerais foram usados pelos humanos e dragões que restavam, uma vez que aquele ritual de grande poder exauriu as forças da grande maioria do povo dragão e de seus reis. As capas e mais capas de metais foram cobertas de ervas, árvores, plantas comuns, e até mesmo animais transitam por ali sem se dar conta de que andam por cima de um campo de batalha. A única evidência que se poderia ter de sua localização era o medo que as pixies possuíam do local, e é dito que ainda existam acólitos, devotos de Azirov, até hoje, buscando rastrear o lugar numa tentativa de libertar seu mestre. Humanos das terras forasteiras de origem veneram a imagem do falso draconita, este sendo a imagem de um cão assustador com asas de morcego, usando as peles de várias serpentes e lagartos num arremedo de escamas. O monstro foi chamado de Azirov, assim como o falso draconita, e é dito que ele pretendia se tornar um deus dragão maior que todos os outros doze. Tornou-se, entretanto, uma fonte de mal e veneno tão poderosa que deixou os Oito Deuses da Derrocada sem poder para continuar comandando as cordas do mundo. O sacrifício dos reis exigiu as forças dos próprios deuses, e de seus súditos, que desapareceram aos poucos.

            Já não havia mais tantos dragões um século depois do evento. Arkanish desaparecera, ninguém o viu depois que as luzes do horizonte se apagaram devagar, e a linhagem draconita desapareceu com ele. O que ficou no lugar foram criaturas tocadas pela magia, tanto dos dragões originais com do último, o arcano, que evoluíram e se tornaram predominantes, desafios selvagens. Até mesmo a vida vegetal foi tocada por essa magia poderosa e divina, tornando-se real o que antes eram vistos em sonhos febris de bêbados alucinados”.

– E, por fim, há aqueles que perpetuam os cultos aos dragões, por medo de que, por alguma ventura ou grande azar, os Quatro Desertores possam encontrar uma forma de se vingar da vergonha que sofreram – Perryk terminou seu relato, fechando livro com um baque.

– O que eles fizeram durante a batalha? – Millya perguntou. Era ela quem sempre fazia essa pergunta.

– Não é dito neste capítulo, e nem neste livro, crianças – Perryk explicou como sempre fazia quando terminava sua leitura – Há relatos de que se acovardaram perante as luzes do Arcanista, se escondendo mais e mais em seus castelos. E é dito que as luzes arcanas petrificaram seus castelos, transformando-os em prisões eternas. E lá os quatro deuses dragões restantes agora vivem, revoltados com seus súditos aprisionados, se tornando maus conforme os séculos passam.

– Como se petrifica a luz? – Outra criança perguntou.

– E por que o deus dragão das trevas ficou bom? – Outra pergunta do fundo da plateia mirim de Perryk soou.

– Bom, o castelo de vidro e diamantes de Ghavarran, que estima-se ser situado no extremo leste do continente Fraghunland, bem longe daqui, refletia a luz em todas as descrições sobre ele, e até hoje essas descrições são contadas. Alguns estudiosos afirmam que o castelo ficou opaco, como se capas de ferro enferrujadas começassem a cobrir cada centímetro que pudesse ser transparente ou emitir luz. Se não há como receber luz de fora, lá dentro não haverá mais luz, e Ghavarran ficou, então, fraca e aprisionada. E não é porque Praghun era um deus de trevas que significa que era mau. Não se lembram dos contos do Cavaleiro Negro da Espada Dourada? Alguns dizem que o nosso rei Madrolan descende desse antigo herói. O rei seria, então, mau por ter o sangue de um cavaleiro negro?

            As crianças balançaram a cabeça vigorosamente em negação, dando a Perryk um motivo para sorrir satisfeito. Por vários minutos as crianças ficaram debatendo entre si, perguntando ao rapaz mais e mais coisas, como costumavam fazer. E ele pensava se não deveria se tornar um professor, um acadêmico...Até que uma nova pergunta, nunca antes feita, foi agora feita em voz alta por uma criança que nunca dizia nada.

– O que acontece se Azirov voltar e o Arcanista não estiver por perto?

            Silêncio. Ninguém sabia dizer se aquela era uma pergunta de pegadinha, ou se era séria. E nunca antes as crianças perguntaram algo do tipo, nem aquele garotinho havia dito palavra, até agora. E, pego de surpresa pela situação desconfortável, Perryk não sabia o que dizer para sanar aquela estranha e súbita curiosidade. Teve de pensar rápido em qualquer coisa que pudesse dizer para acalmar os ânimos.

– Bem, não sei você, mas depois da Derrocada, não houve sequer uma menção do retorno de Azirov. E eu duvido muito que ele seja capaz de voltar, com todos os servos profanos dele que ainda persistem em existir. Se, e apenas se voltar, tenho certeza de que o Arcanista vai saber, e vai combater o mal uma vez mais.

            Aquilo pareceu satisfazer todas as crianças, menos aquele garoto. Este deu de ombros e saiu, jogando a Perryk a moeda que sua mãe lhe deu para pagar o rapaz depois que esta voltasse do mercado. Onde ele iria, Perryk não sabia, mas continuou contando histórias para as outras crianças ávidas por saber mais e mais, apesar de já terem ouvido as mesmas histórias várias vezes, até que suas mães e avós retornassem.

            O rapaz conseguiu uma boa quantia de dinheiro naquele dia, como sempre conseguia quando precisava cuidar das crianças tão entusiasmadas por suas histórias. Com um assovio, chamou Agrur, o ratagarto, que dormia tranqüilo num monte de palha num canto, e o animal acordou, correu e pulou em seu ombro direito, emitindo um som esquisito que parecia o ronronar de um gato. Ele acariciou o queixo peludo de Agrur, sacou a lista de compras de seu caderno de anotações depois de enfiar o grande livro em sua bolsa de couro presa por uma alça comprida, e foi ao mercado cantarolando alegremente, como sempre fazia. Como Altruz e Grivian estavam sempre ocupados na ferraria, atendendo os pedidos de clientes e cuidando das invenções de Perryk, era o rapaz quem se dispunha a comprar e pechinchar mercadorias que precisavam em casa. “E também, a Grivian tem um pavio curto demais pra lidar com vendedores de carne, especialmente quando sente fome, é pior que um cão”, ele pensou, rindo consigo mesmo do comportamento explosivo da colega.

            Seria uma caminhada relaxante para a mente depois de pensar naquela pergunta bizarra daquela criança. Além disso, Perryk já sentia os estranhos e incômodos efeitos que vinham com a chegada de seu aniversário. “Não sou tão melhor que ela, pelo menos não nessas épocas do ano”, ele refletiu enquanto assoviava uma canção infantil andando pelas calçadas do mercado.

                                                           ----

– Filha, querida... – Madrolan vinha andando pelo corredor quando notou Liriel sentada à sacada de uma das grandes janelas – Desça daí, vai acabar caindo.

– Papai! – Liriel desceu apressada e correu abraçar o rei, seu pai – Me diz que a viagem foi cancelada, a conferência adiada e você vai ficar por aqui!

– Filha, eu lamento, mas não é bem assim que as coisas funcionam – Madrolan suspirou enquanto acariciava o cabelo preto da filha – É uma conferência relacionada à diplomacia entre três reinos que estavam em guerra, minha presença como conselheiro externo é requisitada pois o reino de Mekkingard não teve envolvimento prévio nesse assunto, portanto, sou um juiz que ouvirá três lados diferentes e terá as provas necessárias para decidir quem será punido ou perdoado. Além disso, já não está grandinha pra me chamar de “papai”?

– Eu posso ter quinze anos, mas ainda te chamo como bem entendo, papai! – Liriel ficou emburrada e escondeu o rosto no abraço do pai, que ria de prazer ao ver a sua menininha agir como a princesa que era – Não tem nenhum outro da corte que você possa mandar pra essa conferência? Tem que ser você mesmo?

–É o dever de um rei, mocinha. Quando você se tornar rainha, me sucedendo, terá os mesmos deveres.

– Não posso continuar sendo uma princesa pra sempre e viver sem me preocupar com nada?

– A menos que se case com aqueles rapazes do reino vizinho que sempre te mandam cortejos... – Madrolan brincou com a idéia, fazendo a filha simular barulhos de vômito.

– Nem pensar, papai. Eles são muito... Delicados? Sensíveis? Nada másculos? Provavelmente vão querer se casar comigo pra me usarem como peça de decoração, e eu não quero uma vida assim.

– Lamento, menina, mas o mercado dos heróis se fechou há muito tempo nas minhas terras. E eu não posso dispor de guardas pra te levarem comigo e conhecer o príncipe Horalf de Bravahrin, ele estaria mais ao seu gosto.

– Duvido muito, eu não gosto de viajar e tenho aversão ao frio.

– Eu já imaginava, minha filha. Mas, pelo lado bom, eu estarei de volta antes mesmo de você sequer dar pela minha ausência.

– Isso se eu não morrer de tédio ouvindo aqueles sermões abomináveis da Aggrive ou aquele arremedo de conselheiro que arrumou, papai...

– Eu sei que vocês não se dão bem... – Madrolan suspirou visivelmente frustrado. O relacionamento de sua filha com sua segunda esposa nunca fora bom, mas piorara muito nos últimos três anos – Mas eu precisava encontrar uma figura materna pra você, e eu devia um favor a Makrin, irmão dela... Eu não pensei que as coisas fossem dar tão errado entre vocês duas.

– Então não pode simplesmente anular o casamento e fazer um concurso ou competição pra arrumar uma esposa nova? Se livrar dela? – Liriel levantou o rosto com olhos chorosos.

– Não é tão simples assim... Eu sou o marido dela, Liriel, preciso pensar nessas coisas com calma.

– Você é o rei ou o marido dela? – Irritada, ela correu para longe do pai, o vestido esvoaçando enquanto os pés calçados nas botas de caminhada ecoavam pelos corredores.

            Madrolan ainda tentou ir atrás dela, mas Liriel se trancou em seu quarto e o ignorou até que estivesse assegurada de estar sozinha, para pensar em alguma atividade longe dos olhares venenosos da madrasta, sem saber que a mesma já estava a par da situação, observando de não tão longe.

            É claro que Aggrive vira tudo, em sua sala particular, junto com o irmão Makrin. Usando de um espelho negro arredondado, cuja moldura possuía gravuras e palavras de poder, os irmãos vigiavam as atividades da princesa e do rei, sem serem discretos, pois estavam bem escondidos. Makrin conhecia muita magia, era estudioso e erudito, e soube criar um quarto secreto dentro dos muros do castelo, onde todas as suas tralhas foram trazidas, em segredo, e ali armazenadas. Há anos vinha planejando com a irmã a ascensão para o trono, mas lhes faltava algo importante: uma brecha.

– Talvez com essa viagem, tenhamos enfim nossa vantagem tão aguardada – Makrin externou seus pensamentos perante a chance, pois sabia que outra oportunidade poderia levar anos até aparecer.

– Teremos o castelo exclusivamente para nós, meu irmão. A cidade também não me preocupa, pois nas próximas semanas uma nova caravana virá, e então meu filho poderá entrar sem ser percebido e a pirralha fará a parte dela.

– Um plano muito bom, irmã... E já se decidiu sobre o que fazer com a menina, pelo que vejo – Makrin apontou para a imagem de Liriel no espelho – caso ela recuse a nossa “generosa oferta”?

– Eu pensei, sim – Aggrive respondeu, segura de si enquanto se espreguiçava no grande divã azul – Eu encontrei todos os álibis necessários pra eliminar a garota, seja executando-a em segredo e inventando uma longa narrativa em que trabalhei secretamente, ou, caso não possamos executar a menina, podemos expulsá-la, acusar Liriel de traição...

– Uma menina de quinze anos sendo uma traidora de um reino inteiro? – Makrin ergueu uma sobrancelha, cético de que aquele plano pudesse funcionar.

– Acredite, eu sei o que estou fazendo, irmão.

– Duvido muito, você não sabia o que estava fazendo da vida antes de eu retirar você daquele trabalho imundo do bordel em Rukinfillir.

– Isso porque me convenceu de que havia aqui uma riqueza enorme – Aggrive retrucou com impaciência – E por anos e anos eu venho esperando pela riqueza que prometeu. Até hoje só tivemos acesso às minas de ouro no extremo leste além do feudo Hekkin. Tivemos de mandar muitos da nossa terra, em segredo, e até hoje Madrolan não suspeita de nada.

– Você não planeja com cuidado, irmã – Makrin a repreendeu com puro sarcasmo – Eu venho estudando alguns tomos bem interessantes que descobri. Talvez afugentar a menina possa servir aos planos que temos para o reino.

– E seria bom se partilhasse comigo seus estranhos e misteriosos planos, caso envolvam nossa tomada do trono... – Aggrive ameaçou Makrin com sua voz lambuzada de mel, como sempre fazia para conseguir o que queria.

– Se eu revelar o que tenho planejado há meses, você vai arruinar tudo com sua maldita impulsividade, sua louca – Makrin acariciou seu bigode com uma lentidão pensativa – Acredite, vou beneficiar a nós dois e todos do nosso povo que concordaram em seguir um planejamento cuidadoso. Não somos muitos, mas em breve, seremos muitos. Eu lhe asseguro, Aggrive – Ele se virou para fitar o espelho com intensidade o suficiente para causa uma leve rachadura em sua superfície, tamanha energia ele exalava tal como um trovão – que esta menina é crucial para o plano. Seja ela morta, seja ela em fuga.

– Assim espero... – A irmã concordou, entediada com aquele falatório quase religioso.

            Os dois passaram a discutir os planos que Aggrive tinha em mente, como iriam proceder e orquestrar a coisa toda para que tirasse a atenção da vinda do filho ilegítimo dela, Nazariv, que estava a par dos planos e aceitara de imediato fazer parte daquilo. Afinal, ele queria ser rei, a promessa de tal se tornar realidade e então de forma tão simples (como a mãe e o tio faziam parecer) conquistou o rapaz de imediato.

            Ainda havia uma semana para sua vinda.

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            Na loja de forja, já durante a tarde e depois da longa caminhada de compras de Perryk, o rapaz cortava repolhos e as cenourabas junto com punhados de carne de frango de presas. O frango de presas foi um achado considerável, uma vez que a carne é tão disputada e com preços tão bons. É fato que havia fazendas de criação, mas era tão difícil fazer a reprodução desses animais, que por vezes a temporada não resultava em nada.

            Mas Perryk sabia com quem comprar, e sempre sabia pechinchar. Por isso o armazém de gelo da ferraria onde guardavam as carnes e outros alimentos que podiam apodrecer nunca ficava escasso.

            E o rapaz cantarolava uma cantiga que aprendeu com músicos que passaram em Yongard no ano passado, então, a cozinha se enchia dos cheiros de temperos e ensopado cozinhando e uma canção murmurada. Agrur, circulando por ali, ajudava carregando as facas, pratos, panelas, sempre que Perryk lhe dava um comando, o animal entendia tudo perfeitamente, o que sempre foi um ponto chave da amizade dos dois: não precisava insistir nem dizer duas vezes uma ordem, o ratagarto entendia e se punha a trabalhar, saía correndo, buscava coisas, era um ótimo ajudante. E o garoto estava em paz, tranqüilo, pensando em nada em particular, até que ouviu Grivian entrar de forma tempestuosa na cozinha.

– Quando é que o ensopado vai ficar pronto, molenga? – Ela perguntou enquanto fazia gemidos esquisitos por espreguiçar o corpo.

– Oi pra você também, cabeça de fogo – Perryk respondeu sem virar, suspirando alto para expressar de forma audível sua irritação – Teria ficado pronto há mais ou menos dez segundos atrás quando você não estava aqui, me amolando e apressando.

– Engraçadinho você, Perryk – Grivian caçoou dele enquanto puxava uma cadeira e apoiava os braços no encosto, as pernas abertas para evitar o desconforto do encosto – Vem cá... Por que você é sempre tão passivo?

– Não sei a que se refere, então não vejo porquê responder.

– Não, é sério. Semana passada eu vi que um senhor estava tendo problemas com uns moleques que tentaram roubar a bolsa dele, e você preferiu levar uma surra pra satisfazer a vontade deles e deixou o velho escapar. Ainda tem alguns hematomas da surra.

– Vou responder sua pergunta com outra pergunta, cabeça de fogo: qual a relevância de saber isso? E agora? Algum motivo especial? – Ele se virou segurando a grande panela de ensopado com ambas as mãos, levando-a até a mesa e ignorando o olhar de Grivian – Não vejo por que isso seja assunto seu, também. Mas o velho precisava de ajuda, ué. Eu fui lá e ajudei, é difícil entender isso?

– Você poderia ter batido neles, sei lá...

– E arriscar uma reputação ruim pro Altruz? Nem pensar. Prefiro me calar.

– Eu já vi do que você é capaz quando quer.

– Não sei do que você tá falando, Grivian – Perryk se fez de desentendido.

– Não sabe, é? – Ela se levantou calmamente, fora do alcance de visão dele enquanto pegava um pacote grande de pão doce. Grivian pegou uma panela qualquer, e golpeou com toda a força que pôde a cabeça do colega.

– Por que você fez isso? – Ele se virou, imperturbável, o olhar de alguém realmente irritado enquanto segurava o pão doce.

– Você nem mesmo sentiu! – A garota exclamou de triunfo – Não adianta negar e dizer que não tem algo de errado contigo! Foi por isso que deixou te baterem? Por que não sente nada?

– Tá, olha só, sua intrometida... – Perryk precisou segurar Agrur para que o ratagarto não pulasse na garota para protegê-lo (como já o fizera em ocasiões passadas) – Eu dei bobeira e não vi que tinha você acompanhando o espetáculo. Eu paguei para aqueles moleques não contarem nada pra ninguém sobre essa... “Invulnerabilidade”, se quer chamar assim. Mas não é o melhor momento pra isso, eu te conto depois do meu aniversário.

– Ah, vai contar depois, é? Sob uma condição dessas? E o que acontece se eu disser algo pro Altruz?

– Arranco a pele do seu rosto e mastigo ela na sua frente enquanto você grita de dor se der um pio sobre isso antes da hora... – Perryk rosnou em direção a ela, sem saber que tipo de resposta era aquela.

            Um silêncio estranho pairou pela cozinha, com Grivian olhando o colega com visível surpresa. Nunca antes ele dissera algo tão... “Belicoso”? Agressivo? Onde estava aquele rapaz sorridente e sempre alegre que evitava dizer qualquer coisa mais grosseira do que um “cale a boca”? De onde saiu aquela ameaça tão animalesca?

            Perryk, é claro, convivia com isso há algum tempo, e se sentia realmente desconfortável por causa disso, a última coisa de que precisava era Grivian xeretando sua vida e seus problemas e o ameaçando de expor seu segredo. Há meses planejava viajar para algum lugar e abrir uma lojinha ou uma escola, juntando o dinheiro que ganhava cuidando de crianças e as ensinando sobre as histórias dos dragões, para então descobrir a origem daquele comportamento que o atormentava certas vezes longe de qualquer um que pudesse se machucar caso passasse dos limites num momento extremo, e ele não podia permitir isso. Preferia não pensar nisso, crendo que quanto menos atenção desse àquilo, menos freqüentes os acessos de raiva seriam. Mas, ledo engano, costumavam piorar se ele os ignorasse com freqüência, como vinha fazendo a alguns meses. Por vezes esses acessos o preocupavam muito mais devido ao que lhe causavam quando dormia.

            Mas, antes de dizer qualquer coisa, Altruz entrou na cozinha com uma tosse falsa que serviu para assustar a ambos os jovens.

– Eu espero não estar interrompendo nenhuma atitude inapropriada entre vocês dois na minha cozinha, envolvendo meu protegido e minha filha...

– Pai! – Grivian reclamou em voz alta, ficando mais vermelha que seu próprio cabelo.

– Ah, você me conhece bem, Altruz – Perryk deu de ombros, fingindo que nada demais aconteceu – Sou focado demais em meus estudos pra dar atenção a essas coisas.

– Mas você é bom com crianças – O homenzarrão apontou para o rapaz enquanto sacava uma faca e pegava o pão doce para cortar algumas fatias – E ela aqui – Apontou para a filha – Ela já me falou que quer ter filhos...

– Não com um molenga como ele! – Grivian reclamou novamente, ficando mais e mais vermelha – Se ao menos ele tivesse um pouco mais de músculo nesse corpo magrelo eu até pensaria no caso.

– E quem disse que eu tenho qualquer atração pela idéia de você se sentir atraída por mim de qualquer forma? – Perryk retrucou.

– Pode não ser forte fisicamente, Perry, mas sua língua e seu cérebro são realmente muito fortes, e afiados – Altruz comentou depois de rir daquela resposta – Eu espero grandes coisas de você, sabe? Com essa inteligência, você vai longe.

– Só se as pernas magras dele permitirem – Grivian comentou inocentemente enquanto se servia de ensopado.

            A conversa veio e foi durante o jantar, com risadas, perguntas, leves discussões e as previsões para os pedidos futuros que haviam sido feitos. Broches e escudos, pois o rei faria uma viagem em breve e precisaria de presentes. E repetiram todas as tigelas de ensopado enquanto conversavam, até comer o último pedaço de carne que havia na panela. Elogiaram a culinária de Perryk, e Altruz se retirou para fumar seu cachimbo como fazia, ao anoitecer, sentado em sua cadeira de balanço em frente à oficina, com o calor do forno às costas.

            Grivian foi para o quarto de banho onde aqueceria a água na grande banheira e poderia se limpar, enquanto Perryk subiu ao quarto seguido por Agrur, carregando um prato com fatias de pão doce e um copo de cidra vermelha doce. Em seu quarto, várias bugigangas e ferramentas estavam espalhadas pelas paredes e mesas e escrivaninhas, junto com desenhos, projetos de madeira em andamento para serem montados, além de anotações e vários cadernos cheios de escritos, números, cálculos e lembretes.

            Agrur fuçava os cadernos, um a um, enquanto o rapaz se punha na cama, com o prato de um lado e o copo no criado mudo, e ele buscava pelo antigo livro, para lê-lo enquanto esperava sua vez no banho. Ele acariciou o lombo de Agrur quando o ratagarto veio pegar uma fatia de pão doce para comer, indo sentar-se em seu poleiro e segurando a guloseima com as mãos enquanto comia.

– Deve ser bom não se preocupar com absolutamente nada, não é? – Perryk perguntou à Agrur, olhando-o comer devagar. O animal, obviamente, não respondeu, e ele virou-se para olhar pela janela de seu quarto, ao lado da cama.

            Ali, podia ver as estrelas e suas constelações, e se tivesse alguma sorte poderia ver os rastros das lendárias pixies, que alguns chamavam de estrelas cadentes.

            Mas Perryk sentia que algo não era o que parecia. Não com seu aniversário se aproximando, juntamente com a chegada da caravana numa questão de dias, e para afastar esses pensamentos ele preferiu ler o antigo livro novamente.

            Abriu a capa do grande volume, na primeira página. Começar de novo, até o fim, pois, ele sabia, que em algum momento, teria de ler sobre o antigo reino destruído dos dragões, um lugar que muitos acreditavam ser assombrado, em todos os continentes e territórios onde restavam as ruínas daquilo que, um dia, fora belo.

            Agora, restavam apenas destroços, como os pedaços de um velho ovo quebrado. Perryk respirou fundo e começou a ler novamente.

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