Klaus

Eu adorava o ar da Cidade Central, pena que ele estava contaminado pelo cheiro podre de liandrianos.

As ruas estavam com muito mais soldados do que de costume e isso era graças a visita do grão general Heutz, a pessoa que comandava todo o exército de Liandria, o segundo homem mais importante do país, abaixo apenas da presidente. Os soldados estavam em peso pra garantir que ninguém atentasse contra sua vida, até porque qualquer porco militar de Liandria era odiado por aqui, o que poderia se dizer do porco mais importante?

Eu ainda era uma criança de oito anos quando o meu país foi anexado por Liandria, há 20 anos atrás. Eu vi a guerra devastar a minha cidade e tirar tudo de mim. A liga das Nações não fez absolutamente nada em relação a isso, pois Luniantes já foi parte de Liandria no passado, além de compartilharem o mesmo idioma, e ter culturas bem parecidas. Então era como se tivessem recuperado algo que já era deles. Apesar disso tudo, o povo daqui nunca aceitou ser submisso a Liandria, e por conta disso existiam vários movimentos de resistência pelo país. Eu fazia parte de um desses grupos, um dia teríamos poder suficiente para realizar nosso objetivo de libertar o país...

Eu percebi uma multidão indo em direção a praça central, um homem passou ao meu lado e pareceu surpreso por eu não estar os acompanhando.

 - Você não vai?- Ele perguntou. - O grão general vai começar o discurso.

Eu não estava assim tão interessado no discurso do grão general, mas resolvi acabar seguindo as pessoas até a praça central. Chegando lá, eu o vi, o diabo em pessoa: Bastian Heutz, o cara que mandava em todo o exército de Liandria e consequentemente daqui também. Sua aparência era impecável, usava corte militar e sua postura era perfeita. Sua pele era pálida e seus olhos eram de um tom verde muito intenso. Seu olhar era imponente, era como se ele soubesse que ele dava as cartas e os outros só tinham que obedecer.

Alguém poderia dar um tiro em sua cabeça, pensei. Isso tiraria sua cara de confiante, que olhava para nós como se fossemos apenas cães, esperando que o império dele estendesse a mão para que podéssemos comer nela. Mas ele estava muito bem vigiado, infelizmente.

Ao lado dele estava alguém tão repugnante quanto: Ophelia, recém promovida a general do exército do norte, exército esse que estava ocupando Luniantes. Ou seja, ela que iria m****r em tudo por aqui e toda essa cerimônia devia ser para anunciar sua promoção. Ela tinha um longo cabelo preto, o que era estranho, visto que soldados geralmente tinham o cabelo curto, talvez ela tenha tratamento especial por ser general. Ela possuía também olhos verdes, mas muito verdes mesmo, eles brilhavam quase de um modo inumano, os mesmo olhos que Heutz. Além disso ela era bastante pálida, assim como o próprio Heutz. Era como se os dois não tivessem saído pra para pegar sol por muito tempo.

Do lado dos dois estava nosso presidente, que não passava de um fantoche, ele não devia nem poder escolher uma gravata sem a autorização do Império. Eu ouço atrás de mim xingamentos e maldições dirigidos aqueles três que estão lá na frente. 

O grão general não se sentiu intimidado e se prepararou para começar a falar.

 - Povo de Luniantes, é com ódio que vocês olham para mim? É com ódio que vocês olham para Liandria?- Perguntou Bastian Heutz.

 - Pro inferno você e sua Liandria!- Gritou alguém no meio da multidão.

 - Volta pro seu país, assassino!- Gritou outra.

 - Bom, foi uma pergunta sem sentido da minha parte.- Brincou Heutz. - Pois bem, saibam que eu não estou aqui pra acabar com ódio de vocês, nem pedirei sua fidelidade, esse é o preço que nós de Liandria pagamos por estarmos ocupando o lar de vocês. Nós sabemos o quanto o povo de Luniantes ama sua terra e seu ardor pela paz e pela segurança dessa nação não cairá, mas isso é bom, pois juntos vamos abraçar a paz. Isso é tudo que eu peço.

O público começa a ouvir o discurso do grão general com um pouco mais de atenção.

 - Eu não me importo de ser o alvo do ódio de vocês, aguentarei paus e pedras se for necessário, mas só peço que não hajam conflitos. 20 anos nos divide do fim da amarga guerra de ocupação, no entanto sua sombra ainda paira sobre essa nação sufocando a pureza da paz, sombra essa que apenas juntos poderemos extinguir. Por isso eu peço a ajuda de vocês, juntos iremos alcançar o melhor futuro possível para esse país.

Após o fim do discurso, alguns poucos aplaudiram e os que não fizeram ouviram em silêncio. Heutz conseguiu o respeito de todos, ou quase todos, porque eu não cairia nessa ladainha.

 - Cidadãos de Luniantes, é com prazer que lhes anuncio sua nova cônsul, a general Ophelia Geist.

Eu não estava nem um pouco interessado em ouvir mais um discurso, então resolvi sair dali. Andei pra fora da multidão indo para a sáida da praça. Segui por um momento até que senti uma mão no meu ombro, me virei e vi meu amigo, Fritz que provavelmente estava vindo do mesmo lugar que eu. Ele era baixo e magro, tinha cabelos castanhos encaracolados e um rosto alegre e infantil,além de usar óculos. Quem o via não imaginava que ele já tinha 26 anos, muitos já o confundiram com um adolescente.

 - Belo discurso não acha?- Ele perguntou.

 - Como eles conseguem aplaudir? Algumas palavras bonitinhas é o suficente para mante-los na coleira? - Eu perguntei zangamente.

 - Faz muito tempo que Luniantes foi ocupada, muitos perderam a vontade de lutar. Umas palavras bonitinhas e a garantia de que não haverá outra guerra os fizeram ficar confortáveis debaixo das asas do Império.

 - Eu espero que você não tenha perdido a vontade de lutar também.

Ele abriu um sorriso.

 - Eu? Isso nunca. Inclusive, ia ser interessante mostrar a hospitalidade do nosso país, assassinando aquele cara.

 - Muita gente perdeu a vontade de lutar, mas se tivesse um estopim...

 - Isso soa como um plano.

Fritz olhou em volta pra garantir que ninguém estava ouvindo a conversa.

 - Por que a gente não fala sobre isso enquanto toma uma cerveja?- Ele me convidou.

 - Agora falou minha língua.

Eu e Fritz chegamos no bar, no nosso bar, o Eulenbau, que também funcionava como QG do nosso grupo de resistência. O bar estava praticamente vazio no momento, só tinha Brandt, nosso barman, além de Júlia e Berthold que estavam no meio do bar jogando sinuca. Eu e Fritz nos sentamos na bancada de frente pra Brandt.

 - As florestas de Luniantes certamente mudaram...- Disse Brandt. Ele era um senhor de idade e além de barman, era o dono do bar. Além disso, era como se fosse um paizão do nosso grupo, mesmo não tendo condições de sair para lutar conosco, nos ajudava muito cedendo o lugar pra nossas reuniões.

 - Mas as corujas ainda continuam por ai.- Eu respondi. Esse era o nosso código. Era um sinal de que estava tudo limpo, que não havia escutas ou que ninguém havia nos seguido.

 - Agora você pode falar melhor sobre aquela sua ideia.- Disse Fritz.

 - Vou querer uma vodka antes. Brandt, faz favor.

Brandt pegou um copo e uma garrafa e encheu pra mim. Eu peguei o copo e virei a bebida de uma vez. Desceu queimando, mas era bom, muito bom. Era normal pra um luniantino apreciar uma boa vodka.

 - Qual é a da ideia?- Júlia se interessou.

Ela e Berthold largaram a partida de sinuca e se aproximaram de mim.

 - A ideia é mostrar como o povo daqui é receptivo.- Respondi.

 - Matar a general?- Ela perguntou.

 - Um peixe maior.- Respondeu Fritz.

 - O Heutz?- Ela abriu um sorisso. Parecia animada com a ideia.

 - Ele mesmo, o segundo homem mais importante do país, Bastian Heutz. Poderíamos matar qualquer outro soldado que iriam substituir na hora, mas esse... Esse é insubstituível. É o estopim perfeito que o nosso povo precisa.

- Faz sentido.- Disse Berthold.- Mas como vamos fazer isso? Entrar no palácio vai ser bem difícil.

 - Não sei ainda, mas tem uma pessoa que deve saber de alguma forma de entrar...

- O velho Noah.- Adivinhou Brandt.

 - Exatamente.- Eu disse. - Brandt, chame todos os homens. Eu falarei com o velho Noah.

 - Eu vou contigo. Afinal, nós dois fomos criados na cidade baixa.- Disse Fritz.

 - Então vamos.

Fritz e eu descemos até a cidade baixa. Uma parte da cidade central longe do olhar da lei. Dentro do lugar haviam grandes pilares que serviam para sustentar os altos edifícios acima. Com a guerra e a ocupação, muitos cidadãos da cidade central fugiram para cá, transformando gradualmente aqui em uma área residencial e de negócios. Nenhuma luz natural brilhava na cidade baixa, com exceção de onde haviam passagens para as ruas acima, isso a tornava levemente sombria. Após a guerra, muitos órfãos adotaram esse lugar como sua nova casa, eu e Fritz fomos um deles.

Fomos até a residência do velho Noah, uma das figuras mais respeitadas e conhecidas da cidade baixa, sabendo de tudo o que acontecia daqui de baixo. Ele era um sessentão que já foi da guarda pessoal do ex-presidente até a guerra estourar. Com a derrota de Luniantes, se mudou para cá juntos com vários outros antigos moradores da cidade acima.

Ao entrar vimos o velho Noah em sua poltrona no meio da sala fumando um charuto, ele pareceu feliz em nos ver.

 - Klaus e Fritz! Quanto tempo. O que eu posso fazer por vocês meus garotos?

 - Quero sua ajuda, velho Noah.- Eu tomei a frente e falei.

 - Você parece sério. Fale, meu garoto, o que quer?

 - Você sabe, queremos restaurar Luniantes.

 - Ainda com essa idéia?- Ele disse isso enquanto acariciava sua longa barba branca, pensativo.  - Você tem belos ideais, meu garoto, mas por que você acha que vale a pena para os homens daqui arriscarem a pele por eles?

 - Pela liberdade. Não é o suficiente?

 - Pra você talvez seja, mas receio dizer que o povo não liga mais para algo como liberdade, ou estão tão ocupados tentando sobreviver que esqueceram de ligar. Ninguém tem mais a chama necessária para lutar e meus homens não são excessão.

 - Matar o Heutz seria o combustível que acenderia a chama que o povo precisa.

 - Esse é uma plano ousado, meu garoto. Só por curiosidade, como vocês planejam fazer isso?

- É por isso que viemos aqui. Você conhece a cidade de cabo a rabo. Talvez conheça um caminho seguro até o palácio.

Ele deu uma risada e se recostou animadamente na cadeira, talvez estivesse apreciando a nossa coragem, ou burrice.

- Faremos um acordo então, se vocês conseguirem assassinar Heutz, todos os meus homens e armamentos da cidade baixa estarão a disposição de vocês.

Parecia que finalmente estávamos indo a algum lugar, com a ajuda de toda a cidade baixa, tinhamos de fato alguma chance de expulsar o exército daqui. Eu sabia que era uma boa idéia vir aqui.

 - Mas você sabe como entrar no palácio?

 - Bom, talvez eu saiba de uma passagem através dos esgotos que levam até o almoxarifado do Palácio real. Vocês podem ir pela madrugada, quando terá pouca guarda lá dentro e atacar o Heutz.

- Mas por que o Palácio teria um ponto fraco tão óbvio?- Perguntei.

 - Deslocamento, em caso de ataque ao palácio, uma passagem subterranea torna mais fácil para transportar todo o suprimento para fora de lá. Esse espaço que hoje é a cidade baixa foi inicialmente construída com esse propósito- Ele respondeu.

 - Os esgotos são enormes.- Disse Fritz. - Como vamos achar o caminho até o palácio?

 - Não se preocupe, meu garoto. Eu desenharei um mapa para vocês. Ele vai indicar o caminho até o palácio e depois o caminho até o quarto executivo, provavelmente é aí que o Heutz vai ficar. Mas tomem cuidado, vocês terão que ser sorrateiros uma vez que estiverem lá dentro. Mesmo com poucos guardas, o lugar pode se transformar em uma zona de guerra facilmente.

Noah pegou um lápis e um papel e desenhou um mapa dos esgotos e o caminho pelo qual deveríamos ir.

 - Aqui está meus garotos. Vocês devem entrar pelo armazém número cinco, pela porta que o pessoal da manutenção entra. A passagem deve estar trancada, mas isso não deve ser um problema para vocês.

 - Te devemos uma, velho Noah!

 - Como eu poderia negar ajuda para dois garotos que cresceram aqui como se fossem meus filhos? Só tentem não morrer lá embaixo.

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