Capítulo I

“Faze-me andar na tua verdade e ensina-me, pois tu és o meu Deus de Salvação.” (sal 25:5)

Aquele encontro mexeu comigo. Era isso o que o meu pensamento, lá no íntimo, me dizia. Meu pensamento consciente, claro.

Tentava entender, de todas as formas, o que acontecera, mas não tinha explicações para aqueles fatos insólitos. Na verdade, sempre fui estudioso e interessado por assuntos esotéricos e transcendentes. Um místico!

Mesmo assim, “meu Eu” não encontrava explicação para aquele mistério. Eu era um estudante aplicado, que tentava obter sucesso muito mais por esforço próprio e vocação filosófica do que por modismo, como é frequente acontecer com os esoteristas de ocasião. Estes são os permanentes sabichões do nosso mundo moderno e em tudo enxergam o transcendente, o sobrenatural...

Mas tampouco era um crédulo irresponsável... Estava mais para cético, ou melhor, confiava, desde que o fato se comprovasse e se alicerçasse em condições evidentes. Dedicava-me com frequência a exercícios místicos e, uma vez ou outra obtinha sucesso e comprovava experiências muito proveitosas para minha própria evolução.

Já há muitos anos, eu conhecia uma família que morava em uma pequenina vila ao pé de majestosa serra onde, às vezes, me refugiava. A senhora idosa dona da propriedade fora a sogra de um grande amigo, falecido ainda jovem por complicações renais. Eu frequentava a casa dela desde quando, ainda solteiro, ia passar os fins de semana em busca de festas e namoradas. Depois que meu amigo morreu, continuei a visitar a casa, onde sempre era bem recebido e gozava certo prestígio e, por isso procurava aquelas paragens todas as vezes que sentia necessidade de silencio e retiro espiritual.

Na solidão do belo trecho de Mata Atlântica e na beira do lindo e encachoeirado rio do Pico que desce da serra, local especialmente apropriado para a prática da meditação, deixei-me ficar até a sexta feira daquela semana, procurando uma inspiração para me explicar tão esdrúxulo e inusitado encontro.

Inicialmente, pensei em não comparecer no dia marcado. Achei que não tinha sentido, parecia-me meio vazio e achava que estaria perdendo tempo com toda aquela baboseira.

Uma alucinação? Mas, como alucinação se eu tinha plena consciência de tudo o que se passara? E o cartão que permanecia comigo com o endereço escrito?

Depois veio a curiosidade e essa começou a minar a resistência do meu propósito. E então a necessidade de estar lá, de conhecer aquele desconhecido...

Como ele me conhecia? Porque me chamara José? Quem era? Qual seu objetivo? Que história seria a sua? Porque eu me acalmara e me sentira tão bem quando pousou sua mão no meu ombro?

Eram muitos conflitos e todos repassavam por minha mente ao mesmo tempo. Nesse estado de ansiedade orei e meditei deitado sobre uma pedra do rio, pairando acima das águas claras.

Naquele trecho o rio corria rápido formando pequenos redemoinhos que se desmanchavam escorrendo por entre as pedras do leito. A paisagem era linda... relaxante. O regato encachoeirado descia em sussurros, estalando de cascata em cascata e cortando a floresta serrana com meandros caprichosos. Árvores velhas, de troncos musguentos, debruçavam-se sobre a correnteza, roçando as águas e as pedras cobertas de limo; o vento, uma brisa acariciante adentrava os galhos ocos, arrancando sons aflautados, gemidos pungentes, murmúrios e queixumes e espalhando no ar uma música suave, delicada... a verdadeira canção das matas...

Tal melodia é aquela que enche os ouvidos sensíveis dos poetas e místicos que percebem na calma das folhagens a forma esguia das hamadríades, os elementais das árvores, que se deixam entrever pelos olhos dos que, longe dos preconceitos e livres dos rebuliços, desfrutam daquela calma modorra das manhãs mornas de setembro.

Folhas verdes e viçosas, às vezes entremeadas pelas flores das trepadeiras exóticas, enfeitavam ramas onde passarinhos coloridos trinavam seu canto, orgulhosos, chamando as companheiras para um doce momento de amor.

 Tudo contribuía para a maravilha do lugar, para a magia de uma manhã onde a natureza parecia querer ostentar toda sua pujança dizendo graciosamente: “Olha, admira-me! Vê como sou linda?”.

 Mergulhei na água fria e nadei contra a corrente, sentindo em meu corpo o rigor do exercício e, depois, me deixei levar pelo caudal, boiando até um lugar onde as águas perdiam força e formavam um lago. Ali me quedei com a cabeça para trás dentro da água gelada. Ali meditei, sonhei, rezei e resolvi ir ao encontro.

Na sexta feira mesmo voltei para casa. Muitas perguntas ainda me martelavam a cabeça não me deixando raciocinar direito. Aos poucos fui tornando-me ansioso pela chegada do domingo e, quanto mais se aproximava o dia marcado, mais ansioso eu ficava!

Para me distrair lia, repassando vários assuntos filosóficos ou doutrinários. Minha mulher e meus filhos estavam preocupados, pois eu me isolava preferindo ficar só, imerso em meus pensamentos. Não contei para ninguém o acontecido, esperando o tempo passar...

— Vou até lá só para constatar que tudo isso foi apenas um sonho ou uma alucinação — dizia para mim mesmo enquanto as horas, minutos e segundos teimavam em arrastarem-se cada vez mais lentos.

Finalmente chegou o domingo: acordei cedinho... Enquanto todos ainda dormiam, tomei banho, me vesti e saí, deixando um bilhete dizendo que iria a um compromisso importante. Tomei café na padaria da esquina. Olhei para o cartão e peguei o ônibus que me levaria ao bairro onde ficava aquela rua.

Era um bairro de classe média baixa. Algumas ruas estavam fechadas para uma feira-livre que supria as famílias daquele logradouro. Deixei-me ficar vagando por ali, enquanto esperava pela hora ajustada.

Finalmente o momento chegou e, tomando pela rua assinalada no cartão, fui ao número indicado: Era um pequeno prédio com três andares. Embaixo tinha uma loja de antiguidades que estava fechada, por ser domingo. A porta da frente entreaberta dava para um corredor que levava aos apartamentos térreos. No meio do corredor, uma escada... Olhando no cartão percebi que o endereço indicado ficava no terceiro andar. Quando comecei a subir as escadas tive vontade de voltar e cheguei a fazer menção de retorno. Meus pés, entretanto continuaram a me conduzir até uma porta da qual pendia um número de bronze meio torto: Trinta e três.

— É aqui — pensei.

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