Capítulo 3

Arya

Os olhos do rapaz ficaram em meus pensamentos durante todo o dia e noite, me repreendi pois minha obrigação é com a Relíquia da Terra. As guardiãs não são obrigadas a não terem um relacionamento, mas imagina como seria difícil conciliar um relacionamento amoroso com as obrigações de guardiã! Por isso é melhor afastar a ideia da minha cabeça.

Faltava apenas um dia para o Ritual da Lua Cheia. O reino de D’Arcos é em sua maior parte um deserto. O povo muitas vezes precisa se deslocar para se posicionar mais próximo de uma fonte de água, e a finalidade do ritual é pedir chuva aos deuses. Todos ficam empolgados com a proximidade do evento, as proximidades do templo se torna mais movimentada e a segurança precisa ser reforçada para que não haja problemas.

Depois de verificar a relíquia, rumo em direção ao salão das orações.

Enquanto percorro o corredor escuto passos de alguém atrás de mim e viro-me para ver quem pode ser. Ao me virar vejo um homem trajando uma túnica marrom, a túnica dos acólitos, mas algo nele me chama a atenção e percebo que é o mesmo rapaz do dia anterior.

— Perdido? – Questiono-o. Não era para ele estar aqui, esta área é restrita aos que servem aos deuses.

Ele passa a mão sobre os mesmos cabelos bagunçados do dia anterior e me revela um sorriso ladino.

— Acho que sim.

Ele olhou as paredes de barro vermelho e eu sabia o que ele estava pensando. Era fácil se perder aqui, não havia ponto de referência nos corredores, eram todos iguais. Todos nós demorávamos a nos habituar com o lugar, somente as portas dava algumas pistas de onde estávamos, pois haviam símbolos entalhados nas mesmas. No mais, era tudo igual.

— É fácil se perder aqui. – Lhe ofereci um sorriso tranquilizante. Não o queria desconfortável, ele era um visitante.

— Eu percebi.

— O que aconteceu com suas roupas? Por que veste um manto dos acólitos?

— Ah, isso. – Ele levantou a barra da túnica. – As minhas roupas estavam sujas demais, me ofereceram esta e eu não quis recusar e nem questionei o que era... exatamente.

— É a roupa que os acólitos costumam usar. Acho que circulou por aqui tão livremente devido a elas. O que vai fazer para ir embora? Vai usar esta mesma?

O vejo dar-me um sorriso ainda mais amplo, seu sorriso era lindo, ele era lindo. E eu tinha de me afastar dele. Dei um passo para trás, mas ele não notou ou fingiu não notar.

— Vou ver se consigo algo amanhã. – Deu de ombros.

— Bom, eu preciso ir. Está na hora das orações. – Dei mais alguns passos para trás.

— Eu posso lhe acompanhar? – A sua pergunta me pegou de surpresa.

— Pode, mas... você não estava a procura de outro lugar?

— Na verdade eu estava a sua procura, me perdi sim, aqui é bem fácil de se perder, mas no fim encontrei você... Então... – Deu de ombros e deixou o restante da frase no ar.

— Estava a minha procura para quê?

— Conversar apenas.

Balancei a cabeça em concordância.

— Vamos?

— Claro. – Ele respondeu e me seguiu.

Ao fim das orações tive a impressão de que o rapaz estava com sono. Sorri comigo mesma, não é fácil ser um fiel dos deuses. Horas de joelhos clamando pelo povo, por misericórdia, por saúde e bem estar para todos. Todos os dias um compromisso com os horários de oração, poderia ser cansativo para muitos, mas eu já estava acostumada.

Toquei seu ombro. Ele estava com o rosto no chão, mas não estava rezando, estava dormindo.

— Terminamos. – Ele não se moveu. Balancei-o e repeti o chamado.

— Huumm – Ele se assustou e se elevou. Manteve-se de joelhos, mas seus olhos percorriam as paredes avermelhadas. – O quê... – Então seus olhos encontraram os meus.

Eu estava sorrindo, não havia como não sorrir. Seu rosto estava amassado de tanto dormir, seus olhos estavam inchados e seus lábios molhados.

— Você dormiu. – Comentei baixo.

— Eu... não, é claro que não. – Levantou-se às pressas, suas pernas se atrapalhando por estar na mesma posição por tanto tempo.

— É claro... – Passei o polegar no canto do meu lábio, felizmente ele entendeu que era um sinal para que ele limpasse o próprio lábio.

— Me desculpe – falou por fim admitindo que havia dormido.

— Não há o que se desculpar. – Me coloquei de pé. Entendo que nem todos possuem o dom.

— É um dom de verdade – comentou sorrindo.

Caminhamos até a porta e deixamos o salão que já estava vazio e o cheiro de incenso já se dissipava.  

A conversa com ele era muito fácil. Seguimos para o almoço juntos e entre garfadas de um ensopado delicioso e goles de suco, a conversa fluía. Descobri seu nome, ele se chamava Arlo, e quando disse meu nome ele comentou que era uma enorme coincidência pois nossos nomes começavam com a mesma letra. Ele contou um pouco de si, disse ter vindo do reino de D’Eryn e que teve uma infância difícil. Contei um pouco de mim também e o convidei para preparar a festa do dia seguinte. Ele aceitou e passamos o resto da tarde juntos, organizando e comprando coisas. Nunca tive um amigo tão próximo como ele estava se tornando, pena que Arlo iria embora logo após o ritual.

Arlo

Arya é uma pessoa muito legal, se eu pudesse seria seu amigo de verdade, mas os deuses sabem porque estou aqui. Eu preciso da festa e por sorte o dia seguinte seria uma enorme oportunidade, uma que eu não teria em outra ocasião. Já conquistei a confiança de alguns, e eu precisava de uma distração; o evento do dia seguinte seria perfeito.

Sem querer, o guarda me proporcionou uma ajuda muito importante com a roupa que me deu, pude circular livremente pelo templo, que era gigantesco, sem chamar a atenção de ninguém. Doía meu coração enganar Arya, mas eu não tinha escolha. Tinha um objetivo e precisava cumprir.

No dia seguinte eu sabia bem o que aconteceria no dia todo, graças à minha nova amiga Arya. O ritual ocorreria durante a noite, mas todo o dia seria de festa. O templo faria doações para os necessitados pela manhã, de tarde os arredores do templo estaria lotado de barraquinhas de todos os tipos, o povo iria para as ruas a fim de festejar e de noite seria o ritual. Com a lua no centro do firmamento, os sacerdotes e sacerdotisas entoariam um cântico, cada cidadão com uma vela em mãos erguidas fazendo seus pedidos e orações e no centro de tudo: a Relíquia da Terra.

Volto de dentro do templo com uma trouxa de roupas em meus braços, eu estava ajudando Arya.  

— Muito obrigada! – falou ela com seu sorriso bonito e olhos brilhantes.

O dia seria cansativo, mas ela estava animada. Ajudei a separar as doações, roupas masculinas e femininas, de crianças... em uma banca. Sapatos, também separados por tamanho e como femininos e masculinos em outra banca.

— Arlo! – Ela me chamou e eu estava distraído. Em outro tempo, outra vida, talvez gostasse de trabalhar com eles nestes dias de caridade.

— Sim, princesa. – A chamei assim no dia anterior e ela ruborizou, hoje já se acostumou e nem se importa que a chame assim perto de outros.

— Pra você! – Ela me entregou um embrulho. Peguei-o e abri, eram roupas do meu tamanho. Calças, camisas e um cinto. – Não que o esteja expulsando daqui, mas como disse que iria embora após o ritual, imagino que não queira ir vestido de acólito.

Ela sorriu, suas bochechas coraram levemente e seus olhos se entristeceram com a menção de minha partida. Sabia que o que estava fazendo era errado, mas que escolha eu tinha?

— Obrigado! Prefiro não ir vestido de acólito, a roupa é quente demais.

Ela concordou, pois ela mesma havia reclamado como era ruim usar aquelas vestimentas fora do templo.

De tarde a festa seguiu normalmente, queria ter dinheiro para comprar algo e dar a ela, mas não tinha. Aqueles idiotas que estavam comigo no primeiro dia gastaram todo o dinheiro que nos fora dado para passar alguns dias com bebidas e depois sumiram, terei que fazer a parte mais difícil sozinho.

Finalmente a noite chegou.

Arya estava ainda mais bonita com suas roupas cerimoniais: Duas túnicas de tecido fino sobrepostas. A debaixo dourada e a de cima branca com um cinto fino de fios dourados. Seus cabelos estavam expostos desta vez. Os cachos dourados caíam em cascata, parte deles estavam presos pela tiara em sua cabeça que circulava sua testa. O rosto brilhava levemente em dourado.

Ela se aproximou de mim sorrindo, e aquilo me abalou. Eu tinha um objetivo e não podia falhar.

“Foco, Arlo! Você precisa salvar Dianna,”

Mas ela me revelou algo que me abalou ainda mais e eu teria aprender na hora o que fazer se algo desse errado.

— Está quase na hora – disse ela

— Você está linda – elogiei-a, não tinha como não elogia-la.

— Obrigada! É uma ocasião especial. – Balancei a cabeça concordando. Mas a revelação que poderia mudar tudo estava por vir – Hoje meus poderes serão renovados.

— Poderes?

— Sim, não sabia que os guardiões detinham o poder da pedra, parte dele pelo menos?

Droga, isso era verdade?

— Ouvi falar, mas nunca acreditei. – Ela enrolou um cacho dourado em seu dedo fino.

— Alguns acham que é só historinha para as crianças, mas não é. Durante o ritual, a pedra renovará por mais um ano seus poderes em meu corpo. Ao longo do ano, eles vão se desgastando, ficando quase inexistentes, mas hoje serão renovados.

Mudança de planos, mas quais?

— Muito poder? Quais?

— Para uma humana que não tem poder algum, qualquer poder é muito. – Respondeu sem perceber minha perturbação. – Invisibilidade é um deles.

— Invisibilidade? – Mil vezes droga! Como lidar com uma mulher invisível?

— Mas não posso usar os poderes aleatoriamente, apenas para defender a pedra ou pessoas em perigo.

Muito bom. Para defender a pedra bem quando eu iria rouba-la debaixo do seu nariz.

— Que mais? – perguntei tentando parecer curioso e não perturbado, preocupado.

— Força e controle do elemento.

— Não vou querer ganhar um soco seu depois do ritual. – Tentei brincar de forma descontraída para despistar qualquer desconfiança. Graças aos deuses ela riu com o comentário.

— É, eu acho que não.

— E depois de hoje, você só pode realizar esse ritual daqui um ano?

— Não exatamente. Mas precisa ser em uma noite lua cheia e não sozinha, preciso de outras pessoas comigo.

Balancei a cabeça em sinal de entendimento.

— Pensei que o ritual fosse para pedir chuva – comentei.

— E é. Pedimos chuva, fartura e proteção. O poder é dado a mim como um presente.

Definitivamente os planos mudariam, mas o que eu vou fazer agora?

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