A primeira Esposa - Livro 2 - série sangue árabe
A primeira Esposa - Livro 2 - série sangue árabe
Por: Sandra Rummer
Jamile Abdul Aila

Triste, cansada e acalorada, me sentei no banco. Fitei o pátio, a simetria dominava tudo. Rodeado por uma galeria de arcos, sustentado por quatro colunas em cada um dos cantos. Azulejos azuis e brancos reproduziam como um espelho os desenhos da fonte que ficava no meio dele.

Enxuguei minhas lágrimas....

Sequências indesejadas de fatos me levarão a muitos erros. Estava no meu sangue ser conquistada e venerada. Jamais passou pela minha cabeça que eu teria que conquistar o amor do meu marido. Ryan fez aquilo que eu esperava de Zafir, me olhou com paixão, me desejou. Agora tentava alcançar um estado de ânimo humilde e aceitar meu destino. Aprendi que a transgressão só leva ao arrependimento e à infelicidade. Passei o limite, fui atrás do proibido por ser orgulhosa.

Burra!

—Jamile! Por que está sentada aí? —Minha tia rabugenta disse no árabe. —Vamos! Quero esse pátio todo limpo! Respeite a autoridade nesta casa!

Eu me levantei e peguei a vassoura.

—Sim senhora! Depois posso caminhar na Medina?

—Quando limpar o pátio, os banheiros, pode! Mas não sei se dará tempo, se escurecer, seu tio não deixará você sair.

Eu assenti para ela com raiva do meu destino. Meu tio regia a casa com vara de ferro. Na opinião de tio Ali, qualquer pessoa que violasse as regras dele, ficava estigmatizada para sempre; ele me recordaria dessa desobediência durante muitos anos.

Allah! Joias? Roupas?

As roupas estavam tudo lá, guardadas em caixas. As joias, meu pai as tomou para si, disse que era para eu não fazer nenhuma loucura com elas. Que me daria só depois que eu casasse novamente.

Isso se eu me casasse!

Respirei fundo e olhei minhas mãos cheias de calos.

Quem te viu e quem te vê! Suspirei.

Ao menos trabalhando eu gozava de paz gerada pelo silêncio. Era para mim um privilégio luxuoso. Era quando eu estava livre do meu tio, que me vinha com regras e mais regras que vinham juntas com a leitura do livro sagrado. As atitudes erradas que tomei a um ano atrás gerou consequências. A venda da impunidade foi tirada dos meus olhos, agora estava difícil ver a minha nova realidade. E a luz no fim do túnel eu ainda não enxergava, mas me esforçava para vê-la, tentando manter minha calma, a minha paz de espírito e uma sabedoria que nunca tive.

Meu tio me dizia que eu merecia um homem para me domar. Zafir poderia ter feito isso, mas ele não me amou o suficiente para isso. Hoje entendo que vivi com ele numa época que os negócios não estavam bem, e as cobranças eram grandes. Foi uma somatória de coisas que nos levou a nos afastarmos....

O futuro me reservaria algo bom? Haveria para mim uma luz no fim do túnel?

—Jamile.

Eu me virei para o meu tio.

—Sim, meu tio.

—Receberemos um convidado importante, ele está de passagem pelo Marrocos. Ficará hospedado no quarto de hóspedes. Limpe e arrume-o. Ah, use o lenço quando ele estiver aqui. Ele é muito tradicional. Evite olhá-lo nos olhos. Tenha uma posição serviçal.

Revoltou-me ter que usar o lenço na casa, mas eu não era livre. Estava presa naquela arapuca. Eu, como de costume, assenti fazendo uma reverência para ele.

—Sim, Sid.

—Você ainda tem jeito, Jamile. Vou te moldar como um vaso de barro. No começo vai doer, mas depois você será um vaso bonito e de honra na minha casa.

—Sim, Sid. —Eu disse com a cabeça baixa.

Quando ele se virou, funguei alto. Ele se virou para mim e me deu um olhar duro.

—Eu ouvi!

Eu abri minha boca e fechei. Sorri sem graça para ele, mas não recebi um sorriso de volta. Ao contrário, ele fechou a cara. Os minutos passaram até que eu desviasse meus olhos dos dele e voltasse a varrer o pátio interno.

Areia, areia e mais areia. O vento as trazia para dentro de casa. Eu as encontrava em todos os lugares. A tarefa de retirá-las parecia não ter fim. 

—Jamile. —Ouvi a voz de minha prima, Selima. Sabia que era ela por causa da entonação alegre de sua voz. A sua outra irmã gêmea, idêntica a ela, era amarga, sempre séria, fechada.

Allah! Raissa me lembrava alguém do passado: “Eu”.

—Hoje teremos convidados.

Eu suspirei.

—Eu sei, seu pai me disse.

—Não, não é esse que me refiro. Esse que dormirá aqui, é dono dessa casa. Ele passa uma vez por ano para ver o imóvel e cobrar o aluguel.

—Entendi. Quem é o convidado então?

—O noivo da minha irmã. Hoje ele virá com seus pais.

Raissa fora prometida desde o seu nascimento. O noivo dela era um homem de classe média, cabelos negros, olhos da mesma cor, alto, forte e de sorriso fácil. Eu não gostei dele, pelo simples fato de ver a maneira como ele me olhou. E problemas era uma coisa que eu agora ficava distante.

Eu forcei um sorriso.

—Sei quem é. Bem, eu não vou vê-los pois pensei em dormir mais cedo.

Ela me olhou espantada.

—Dormir?

—É, dormir.

—Quem disse que irá conseguir se recolher mais cedo. Meu tio, com certeza vai querer que você os sirva e esteja à disposição.

Eu fitei as roupas dela, que cobriam todo o seu corpo, mas colorida. Diferente das minhas negras, sem vida, largas. Acho que meu tio queria que eu me sentisse a gata borralheira.

—Vou pedir então para ele me dispensar.

Ela sorriu e balançou a cabeça como se não acreditasse que eu conseguiria e confirmou com suas palavras:

—Boa sorte com essa tarefa.

Estranhei minha prima estar conversando comigo sem receber uma reprimenda.

—Bem, se ele não me dispensar, ao menos, hoje ficarei livre de ouvir as leis do livro sagrado. E você não deveria estar falando comigo. Eu sou a laranja podre da família. Esqueceu?

Ela olhou para os lados para ver se não vinha ninguém.

—Não, não me esqueci. Eles me lembram disso o tempo todo. Mas, não estou aqui por livre e espontânea vontade. Mamãe pediu para avisá-la. Por isso acredito que você não vai se livrar desse jantar facilmente.

—Ah, está explicado. Obrigada por avisar.

Antes de ir, ela me falou baixo:

—Quanto ao outro convidado, ele é o caminho para o pecado. Então, evite olhá-lo nos olhos. Existe um boato entre as mulheres que se olharmos muito tempo para ele, Said leva o nosso coração.

Eu perguntei curiosa.

—Ele deve ser muito bonito?

Ela se abanou, mostrado seu lado imaturo por causa da sua tenra idade, vinte anos. Já fui assim um dia, me impressionava com as coisas facilmente.

—Allah! como é, mas perto daquele deus, somos meras mortais, um homem como ele, jamais olharia para nós. —Ela suspirou então. — Tão lindo como Zafir. Não tinha uma mulher na sua festa que não te olhasse com inveja.

—É, você já me disse isso.

—Ainda me pergunto: como você pôde fazer o que fez?

O meu estômago retorceu-se incontrolavelmente. Havia mais verdade naquela pergunta melodramática do que eu gostaria de admitir. Eu joguei meu casamento pela janela. Eu o destruí com minhas próprias mãos. Coloquei Zafir num pedestal também. Desde então, ele nunca mais saiu de lá. Intocável. Um homem incapaz de amar, um homem de negócios. O descrédito, que ele pudesse um dia mudar, veio mais forte ainda quando eu soube do seu passado promíscuo. E meu orgulho me fez deixá-lo ali, onde eu o tinha colocado.

Tentei tirar proveito do meu casamento, da melhor forma possível. Usufruir daquilo que ele poderia me dar, sem neuras. Os bens materiais que eu tanto valorizava.  Foi difícil ver Zafir apaixonado e encarar o quanto eu me enganei com ele.  Me deparar com a triste realidade que eu poderia o ter conquistado, foi como um tapa na cara, pois entendi que era só ter acreditado.

Eu ainda a olhava sem responder. Infeliz. Tia Zenaide surgiu na porta.

—Selima. Deixe Jamile trabalhar. Pedi para você apenas lhe comunicar do jantar e não iniciar uma conversa.

Ela assentiu com a cabeça.

—Sim, mamãe.

Eu desviei meus olhos de tia Zenaide e comecei a varrer.

—E você! Jamile. Está fazendo corpo mole? Já era para ter terminado esse serviço. Vamos!

Ainda tocada pela conversa eu baixei a cabeça, respirando fundo em um nítido esforço para manter as minhas emoções sob controle. Sem olhar para ela, falei, enquanto varria:

—Já estou acabando.

—Quando acabar, deixe os banheiros para depois e vá até o quarto de hóspedes limpá-lo. Acenda o bukhur para perfumar o ambiente. Troque os lençóis e a toalha de banho.

—Está certo. —Eu parei de varrer, e assenti com a cabeça.

Quando ela saiu, trêmula deixei que minhas lágrimas caíssem amargas.

Allah! Se eu tivesse a cabeça que eu tinha hoje, faria tudo diferente. Eu teria lutado por meu casamento, jamais teria me envolvido com Ryan, e jamais teria cogitado a segunda esposa.

Olha aonde eu cheguei com tudo isso! Mais humilhada, impossível!

Quando acabei de varrer o pátio fui até o quarto de hóspedes e o varri, tirando mais areia. Depois de levar a areia para o lixo, voltei para a área de serviço e peguei um balde com água, desinfetante e na outra mão um rodo com pano.

Coloquei a essência no bukhur e comecei a passar o pano no quarto. Quando finalizei essa tarefa tirei a colcha da cama e os lençóis e fronhas. Abri a porta do enorme guarda-roupa e quando fui pegar a roupa de cama limpa, vi minha caixa de roupas e maquiagens num canto do armário. 

Estremeci.

Lembrei-me de meu pai dizendo:

—Excesso de bagagem. Você não os levará. Entenda! Você nunca mais irá usá-los.

Eu, a despeito do que meu pai tinha me falado, enfiei uns dez na mala, junto com as roupas escuras e largas que meu pai tinha comprado para eu viajar. Junto com eles meus cremes e maquiagens.

Logo que eu cheguei, minha tia me ajudou com as malas, e guardou tudo nessa caixa. Com as mesmas falas "você nunca mais irá usá-los, vou guardá-los nessa caixa para você ter como lembrança da vida que você jogou fora."

Com um suspiro, eu a tirei de lá e a abri. Peguei um lindo vestido vermelho tubinho. O coloquei na cama, passei a mão no tecido acetinado com nostalgia.

Num impulso, fechei a porta do quarto e resolvi colocá-lo. Fui até o banheiro e tirei o hijad (o véu) e minha abaya (longo vestido preto). E coloquei o vestido. Descalça me olhei no espelho. Lágrimas surgiram nos meus olhos. Eu as limpei com raiva. Fui até a caixa e peguei a maquiagem. Com destreza, por anos de prática, me maquiei. Marquei meus olhos com delineador, rímel e lápis. Por último o batom cor de terra.

Com um suspiro, olhei meu rosto no pequeno espelho. Que transformação. Era como se o patinho feio se tornasse num cisne. No quarto tinha um bem maior, que daria para ver meu corpo inteiro.

Entrei no quarto e fiquei de frente para ele.

Said Farrah Haji

—Senhor Haji, é uma honra recebê-lo em minha casa.

Essa casa pertenceu à família de Ali Abdul Aila há muitos anos atrás. Mas por causa de uma dívida de jogo, eles perderam tudo. Eu comprei a casa e permiti que eles permanecessem com o pagamento de um aluguel baixo. Só que Ali não estava mais cumprindo o contrato.

Já fazia seis meses que ele não me pagava um centavo. Todo ano eu visitava a bela casa para ver como estava a sua conservação. Ela era tão antiga que poderia ser considerada um patrimônio histórico.

—Senhor Aila, você conhece a finalidade da minha visita. Além de ver a propriedade, precisamos conversar sobre o aluguel. Como sabe, sou um homem de negócios e não fica bem para a minha imagem essa situação. Se eu relevar o que me deve, muitos se sentirão no direito de não me pagar também.

Os músculos do corpo de Ali retesaram-se de imediato.

—Allah! —Ele levou as mãos para cima. —Eu sei, eu irei pagar. Hoje mesmo receberei o dote do casamento de minha filha Raissa e poderei acertar tudo.

—Ótimo. Omã virá, então, essa semana receber.

—Sim, senhor Haji.

Eu assenti para ele.

—Vou para o meu quarto guardar minha bagagem e depois veremos a casa juntos. Me espere no pátio interno.

—Sim, senhor Haji.

Ele fez uma reverência e deixou a sala. Eu me virei sentido ao corredor que daria aos quartos. Meus olhos deram nas gêmeas me olhando na soleira da porta, curiosas. Uma delas corou ante o meu olhar e logo entrou na cozinha, a outra demorou-se um pouco mais, antes de sumir de minhas vistas 

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