CAPÍTULO QUATRO

Em alguma parte do Kenyon

Sob um sol escaldante, um grupo de oito bruxas caminhava, tropeçando sempre em seus próprios pés e o suor escorrendo por suas costas, abaixo das roupas pesadas e grandes bolsas que carregavam nos ombros. 

Uma delas, Katana caiu de joelhos e gemeu, ela não aguentava mais aquele caminho torturante. 

Ella viu sua irmã ceder e correu pegá-la pelos braços e exigiu que trouxessem água. Ella entregou para Katana, que chorava. 

- Não posso mais. - ela sussurrou, os lábios cortados e rachados. 

Sob o capuz de um manto de cor crua, Ella rosnou. 

- Você só não pode, como vai continuar. É a vontade do mestre! - a moça jovem gritou. Ela estava exausta também. Cansada. Triste. Quase morta por dentro depois de ver sua mãe e avó morrerem queimadas diante de seus olhos. 

Katana choramingou. Aquilo foi a gota d'água para Ella. 

- Será que vocês não entendem? - sua voz reverberou enquanto uma brisa árida correu por ela, imitando a raiva de Ella. - Nenhuma de nós tem escolha a não ser seguir as ordens de nosso mestre para própria sobrevivência. Acha que eu também não queria estar sob uma praia com água de côco? Mas, não. Estou aqui para lutar por todas nós. E se não forem capazes de ver que essa é a única escolha, prefiro morrer a comandar um grupo de covardes. Nossas mães, irmãs e avós morreram naquela pira maldita e nosso mestre havia alertado sobre a Ordem. Mas, algumas foram teimosas em não querer partir e olha no que deu. Agora, será que podem me escutar e continuar? Mais um ou dois dias e já conseguiremos chegar a localização exata. 

As oito mulheres fracas, famintas e cansadas a olharam, assentindo em concordância. 

Todas elas sabiam que Ella tinha total e completa razão. 

***

Plantei os pés no chão com força e comecei a correr. Dean disparava na frente entre as árvores que circulavam na propriedade da Igreja. Coloquei poder sobre minhas coxas e avancei, deixando cada fibra do meu ser exalar meu espírito sobrenatural. 

Depois de uma semana esperava-se que eu ainda estivesse me acostumando com aquela vida diferente, incomum e estranha. Mas, após alguns dias era como se tivesse sido feita para isso. Para a energia vibrante que se manisfestava em meus membros em uma corrida, em uma luta, em usar minha força extra para arrombar uma porta ou quebrar alguma coisa. Eu adorava cada parte daquilo. Não demonstrava, é claro. Mantinha meus sentimentos longe dos olhos e apenas esboçava reações leves a qualquer coisa. Não queria que usassem nada do meu passado em minha cara. 

Quando me trancava em meu quarto todas as noites para dormir, lembrava do rosto de Clarice e mesmo que não chorasse, porque eu não merecia derramar lágrimas, não quando a culpada de tudo isso fora eu, mas me permitia sofrer com toda a intensidade e sentir falta daquela mulher meiga, gentil e tão linda. De lembrar do porquê nós agora não estávamos curtindo nossa liberdade juntas, simplesmente recordava de seus pedaços jogados pela clareira como um brinquedo quebrado. 

Então todo o tempo estava com a expressão fria, calculada e observadora. Aly tinha me mostrado a biblioteca, me entregando alguns livros para que eu entendesse um pouco do vampirismo, dessa vida do submundo e as criaturas que eu caçaria, se de fato aceitasse participar daquele grupo. Ainda não tinha feito nenhuma aula, mas pelo menos aceitei treinar com Dean quando não estava lendo. E apesar de minha vitória aquele dia com as espadas, ele havia conseguido descobrir meus pontos fracos e meu treino básico de luta. Então me derrubado no dia seguinte com raiva no chão. Ele riu e antes que pudesse comemorar, apliquei uma rasteira nele, mas não tive resistência para me colocar sobre Dean e lhe dar os tapas que merecia. Embora, ele ainda ria sujo e suado ao meu lado. 

Dean olhou para trás e me olhou de relance, curioso do motivo de eu ter desacelerado meu ritmo. 

- Vamos, Ártemis! - ele estimulou e corri cada vez mais.

Dean oscilou sua forma, que pareceu tremer de repente. 

Ergui as sobrancelhas pronta para perguntar se ele estava bem, mas então ele pulou, algo demais ou menos três metros, quando a figura dele pousou no chão ainda disparando como um raio, quatro patas pesadas fincaram suas garras sob o solo molhado e vermelho. Parei abruptamente e rosnei, deixando minhas presas assim como as minhas unhas se alongarem. A pele ao redor de meus olhos vibrou com as veias saltadas. Meus lábios estavam sob os dentes, ainda ecoando meu rosnado. 

Encarei um lobo cinzento de uma altura sobrenatural, que era perfeitamente maior que um cavalo. As roupas de Dean estavam sob o chão, rasgadas em tiras de tecido. Lembrei de Aly ter falado que ele era um lobo, mas jamais pensaria que sua forma seria tão literal. Mas, ali estava eu, uma vampira de trinta e cinco anos, cheia de feridas e que tomava sangue. O quão difícil era acreditar naquilo?

O lobo uivou e arreganhou os dentes numa espécie de sorriso cheio de saliva. Sem saber muito o que fazer, continuei parada. Dean era muito grande e caminhou suavemente até onde eu estava. Ficou me encarando com os olhos enormes verdes e me olhou fixamente. 

Está com medo? A voz dele sussurrou em minha mente. 

Arregalei os olhos e ele latiu, quase como se risse como o porco que era. 

- Como isso… É possível? - indaguei, deixando que dentes, olhar e unhas voltasse ao normal. 

O lobo revirou os olhos. 

Você é uma vampira. Eu sou um lobo. E temos milhares de criaturas piores que nós a solta. Ele murmurou. 

- Está dentro da minha cabeça… Sua voz. E se eu não tivesse visto com meus próprios olhos, jamais teria acreditado nisso. - minha voz estava completamente estupefata. 

Ele revirou os olhos mais uma vez. 

Tem uma garrafa de sangue escondida no canto daquela árvore. Comi antes de sair de casa, mas achei que poderia querer. 

Dean apontou o focinho para um pinheiro grande, onde uma samambaia se espalhava por seu tronco. Caminhei, afastando a planta para encontrar uma garrafa enrolada em um pano preto. O lobo me seguiu e peguei a garrafa, me sentando em um tronco coberto de musgo, que estava jogado a milhares de anos pela natureza. O lobo se sentou sob as patas traseiras, me vendo beber ansiosamente o sangue frio. 

Eu nunca vi alguém tão faminta e forte como você. Mesmo Aly tem suas limitações. Se treinasse comigo e com os outros… Seria maravilhosa. Ele comentou, os olhos verdes sérios de repente. 

Ri e tampei a garrafa, quebrando-a em meus dedos, que sangraram com os vidros, mas depois se curaram. Joguei com a ponta da bota, terra por cima e limpei a boca com os punhos da camisa. 

- Isso é alguma tentativa de me converter? Ou um cortejo ruim?

A garganta dele fez um som ruidoso, como uma gargalhada. 

Ártemis, jamais tentaria algo assim. Você parece ser mais homem que eu. Não ache que sou cego. Vi como olha furtivamente para Aly. Chegou aqui ferida com desespero em saber o que tinha acontecido com a outra moça. Você é bem vinda em se juntar ao nosso clã assim que se sentir pronta. Mas, sobre si mesma, não tente se esconder de mim. Não vai conseguir. Sua voz em minha cabeça era suave. 

Fiquei longos segundos paralisada. 

- Eu… Eu… - minha mente sempre pronta a produzir e pensar rapidamente se perdeu. 

O lobo riu de novo. 

Tudo bem. Minha irmã era como você. Eu sempre soube. A igreja fala merdas sobre isso e o povo é muito ignorante. Mas, nos veja. Pintavam sobere as figuras de criaturas do mal, e nós somos bons. Ainda há coisas ruins. Mas, não definem quem nós somos. Posso entender como é estar preso em algo que não o faz feliz. Seus olhos transmitem tristeza.

Ele deveria ter passado algo muito ruim. Só quem realmente passa por uma experiência ruim, para saber de suas dores dessa forma. 

- Meu pai também sempre soube. Minha mãe também. Mas, eu conseguia fugir sempre quando viajava com papai. Ele era historiador. Apaixonado pela vida e tudo que ela poderia guardar em mistérios passados. Tinha uma cabeça muito a frente. - não sabia porque estava me abrindo, mas sentia que precisava dividir um pouco do meu fardo com aquele lobo estranho. - Ele descobriu um cadáver um pouco antes de morrer. Seu coração parou repentinamente e minha mãe quis me casar com um nojento. Fugi com a garota que era apaixonada. Fomos pegas naquele bosque. Meu pai descobriu um vampiro, provavelmente morto há algum tempo. Eu tinha lido seu trabalho. Tinha ideia do que me atacou naquela noite.

Dean se abaixou e seu focinho tocou minha mão.

Eu sinto muito. Por tudo isso. Mas, você sabe que pode ajudar outras pessoas com o que você é agora, não é? Olhe para Aly. Ela também tem uma história difícil, provavelmente é como você. Gosta de… Sua voz se perdeu, mas eu tinha entendido, sem que ele precisasse dizer. Mas, tem feito um trabalho incrível. 

Assenti. 

- Estar assim é como uma parte do sonho que tinha. Claro, não ser vampira e perder as pessoas que amava. Mas, poder usar essas roupas. Ter conversas sinceras. Conhecer pessoas que pudessem me entender. Lutar, ler e estudar é um bônus, que eu adoro muito. - admiti.

Dean concordou, com as orelhas pontudas balançando quando moveu sua cabeça para cima e para baixo. 

Quando quiser, estaremos aqui.

                                                ***

De imediato, ainda não conseguia simplesmente dizer sim, mas após seis semanas treinando com Dean, acordei uma manhã e pela primeira vez em muito tempo consegui me encarar no espelho enquanto ajeitava meu cabelo preto e lavava meu rosto. Minha face tinha ganhado cor, assim como suaves contornos na bochecha ainda mais pronunciada. Eu tinha arrumado o corte de meu cabelo ontem e estava muito bom. Prendi um dos lados atrás da orelha e arrumei a parte curta atrás. Coloquei a camisa para dentro da calça escura justa, que era minha marca agora e coloquei as botas. 

Sai para o corredor e cumprimentei dois homens que atravessavam para a ala de treino, provavelmente indo ver Dean. Geralmente na parte das manhãs, encontrava Aly e ainda era cedo, mas queria estar lá para vê-la chegar. Estava mais leve, sentia meu corpo - repleto de músculos mais firmes e definidos pelos treinos com Dean - desprendido e menos pesado. Tinha plena certeza do que queria fazer e como fazer. E nada me impediria. 

Após andar pelas escadas e encontrar a grande biblioteca, vi alguns caçadores lendo em um grupo e pareciam discutir sobre uma criatura que caminhava pelo condado vizinho em uma das mesas no canto. 

A biblioteca tinha um espaço livre no primeiro andar, com várias mesas de carvalho e nos fundos ficavam as milhares de colunas com estantes repleta de livros, que foram proibidos pelos reis e muito do que ali dispunha era antigo e frágil. Uma escada subia para um segundo andar aberto e do lado norte embaixo, os vitrais estavam abertos e uma brisa fresca entrava por ali. Me sentei na mesa e observei dois homens lutando com espadas pesadas no campo da frente. O sol estava fraco, mas o céu estava aberto. 

Quase sorri ao lembrar de quando havia perguntado para Aly porque não queimamos ao sol. 

Nós estávamos com livros abertos, enquanto ela me mostrava a figura de algo chamado windigo. Um monstro feio, esquelético e alto que gostava de atacar perto de suas cavernas escuras. A carne humana era seu prato principal. 

- Como não podemos sair ao sol? - estava daquele mesmo jeito olhando para as árvores cheias de folhas verdes jade.

Aly me encarou. A pergunta pegando-a desprevenida. 

Os olhos castanhos sorriam antes que seus lábios, ela era muito bonita. O rosto delicado, as bochechas cheias e meigas, assim como olhos delicados. O cabelo estava preso para o alto e ela vestia algo simples, um vestido de algodão mais recatado. A boca grande riu levemente. 

- Bem, não somos feitos de carne podre que queima ao menor sinal de fogo. Muitas das lendas estavam erradas. Podemos sair perfeitamente ao sol, assim como qualquer humano. A única diferença é que estamos mortos. Nossa vida não termina quando nosso coração parar de bater. O veneno de nossa espécie pode ser algo poderoso. Nos mantém firmes e cheios de vida e o que fortalece isso é o sangue. - um dos ombros dela se levantou, casualmente. - Já comentei com você, que ser decapitado ou queimado pode trazer algo fatal. Mas, os outros ferimentos podem ser reparados com sangue e uma pausa. Assim como o veneno cura, ele é incapaz. Quando mordemos alguém que não é da nossa espécie podemos deixá-lo paralisado, seria assim que funciona se nos alimentássemos de humanos. 

“ Podemos dormir, experimentar vinhos e ter uma vida comum. Mas, a diferença é que temos presas e uma fome insaciável. Para nos transformar é necessário uma mordida e uma morte. Renascemos nessa nova forma.”

Balancei a cabeça, entendendo. 

Suspirei e voltei minha mente ao presente, até mesmo porque Aly estava vindo pela entrada principal carregando alguns cadernos e sorriu ao me ver sentada em nossa mesa. Como não era de sorrir nem de demonstrar nada além de algo indiferente, só às vezes com Dean que me abria, mas acenei suavemente. 

Aly estava com um vestido de renda no decote abundante e tentei não olhar, mas foi inútil. Sempre existia uma leve tensão quando nos via todas as manhãs, mas eu sempre interrompia com alguma pergunta normal, ou algo que fora ensaiando o caminho até lá. 

Nós nos encaramos alguns segundos e ela jogou o cabelo ondulado, longo e castanho para trás. 

- Bom dia. - ela ainda sorria. Toda vez que via aquele sorriso lembrava de Dean dizendo que achava que ela era como eu. Coisa que estava muito além da natureza obscura que gostava de sangue. - Você chegou cedo… Ainda nem preparei o material de hoje. 

Neguei com a cabeça.

- Precisava falar com você antes. Esqueça o material de estudo de hoje. - não deixei seus olhos enquanto Aly sentava em minha frente. 

Ela uniu as sobrancelhas.

- Aconteceu alguma coisa? - ela ficou preocupada. 

Assenti. 

- Mas, é uma coisa boa. - falei. 

Ela olhou para os lados, confusa. 

- Bem, me conta então. 

Ergui o rosto. 

- Quero me juntar a vocês. Quero ser uma caçadora da Ordem. 

                 ***

Abotoei os botões da camisa justa preta. Fechei o cinto da minha calça da mesma cor e amarrei minhas botas. No espelho, arrumei meu cabelo curto para trás e prendi um dos lados atrás da orelha. Alguém bateu a porta suavemente e virei o rosto, vendo uma cabeça feminina sorrir. 

- Trouxe algo para você. - Aly abriu um grande sorriso. 

Com o tempo havia aprendido a demonstrar sinais de educação e ao menos repuxar os cantos dos lábios. E foi o que fiz, acenei para que ela entrasse e Aly fechou a porta, carregando um suporte de roupas. Um casaco negro estava pendurado e cruzei os braços, pendendo meu peso para outra perna. 

- O que é isso? - indaguei.

Ela colocou sobre a cama e pôs as mãos no quadril largo, que eu achava lindo. 

- Bem, isso é seu novo uniforme. - ela abriu mais o sorriso. 

Ergui as sobrancelhas e me aproximei dela. 

Toquei a roupa e sem conter a curiosidade, puxei-a. Embaixo do casaco havia um colete de couro revestido por dentro com um tela de metal fina, quase como uma proteção daquelas de mosquito. Mas, eu sabia que era muito mais que isso. Ele era quase como a peça de um smoking, muito bem cortado e seu tecido de fora trazia milhões de pedras escuras, que pareciam diamantes sobre o peito até o ombro. De verdade, abri um sorriso tímido e coloquei a peça, que era feita sob medida para meu corpo. Quase quis gargalhar, era muito lindo. Corri para o espelho e não pude evitar minha empolgação. 

- Por dentro, essa proteção metálica serve como um colete contra ferimentos a faca ou espadas. Se eu soubesse que você ficaria tão feliz, teria trazido ontem quando ficou pronto. - ela riu. 

Ainda sorria quando voltei para a cama para ver o casaco. 

Na mesma pegada, ele era bem pesado revestido por dentro com a tela metálica, um tecido macio de pelúcia e por fora seu acabamento era em couro. Mesmo sendo alta, ele batia em meus joelhos. Assim que o vesti, um pequeno pedaço de tecido caiu no chão. Ele fez um barulho de correntes. Me curvei pegando-o. 

Parecia uma máscara do rosto, que protegia a boca e o nariz, feita de couro com as mesmas pedras escuras do colete e as mesmas que cobriam os ombros descendo para os braços do casaco. Eles pareciam estrelas noturnas brilhantes. 

- Ela serve como algo para evitar que algumas criaturas atirem venenos em seus lábios. Lembra como as sereias? - ela deu de ombros. - Use em todas as caçadas. E bem, tenho roupas de caçada assim também. Ah, essa foi feita com o entalhe especial para sua espada. A Guardiã da Escuridão, como a chama. - Aly riu. 

Arregalei os olhos e passei a mão por minha nuca, sentindo um leve suporte de tecido, em que poderia guardar a espada que Dean havia me dado ontem em nosso último treinamento. 

Após seis meses treinando arduamente para minha formação na Ordem, eu havia conseguido me superar, em força, estudos, luta, inteligência, estratégia e muita garra. Estava todo o tempo me condicionando para este momento e finalmente havia chegado. Toda a dor pelo o que eu havia passado ainda estava no fundo de meu coração morto, que jamais se esqueceria daquele horror. Jamais deixaria de querer ter vivido aquela vida com Clarice. Mas, aquilo já não me pertencia mais. E da vida que me sobrou, das cartas que sobraram na mesa para que eu jogasse, sem dúvida essa era minha melhor opção. Eu faria tudo que estivesse ao meu alcance e além para despedaçar todo o mal, que se escondia em cada sombra, longe da luz. 

Aly estava ao meu lado e viu todo o sentimento refletido ali. 

- Você é maravilhosa e merece viver como quiser. Não é culpa sua nada do que houve em seu passado. - ela disse baixo. 

Em cada momento que senti tocar a escuridão das minhas dores, Aly estava ali para me puxar de minha negação. Nós líamos juntas, passávamos as refeições conversando, agora mais amigas do que somente tutora e aprendiz. Ela adorava música e eu sempre soube tocar muito bem violino. Passava horas mostrando para ela como eu gostava de tocar, explicando que papai havia me ensinado. Assim como piano e acordeão. Nós havíamos nos tornado muito companheiras, quando não estava com Dean, que havia se juntado ao grupo e nos fazia rir o tempo todo, mesmo que a maior parte do tempo me segurava ainda, não estando pronta para ser toda aquela alegria que gravitava quando estava feliz. Talvez jamais voltasse a ser assim. Mas, que soubesse mostrar que estava grata demais por tê-los. 

Claro que Dean era mais como irmão. Mas, Aly… Eu adorava seu jeito compassivo, às vezes mandão, mas que cedia sempre que eu pedia alguma coisa. Gostava de como ela tirava meus cabelos do rosto e o prendia atrás da orelha. Me sentia bem, confortável. Embora soubesse que não estava apaixonada. Nem me apaixonando. 

- Obrigado por tudo. - ergui a mão para o rosto dela. 

Aly ficou com seus olhos castanhos nos meus e sua pele ficou levemente aquecida, um pouco avermelhada. 

Ela entreabriu os lábios e seu hálito doce assoprou a minha boca. Assim que pensei em ficar ainda mais perto, nós ouvimos passos no corredor por nossa audição treinada e eu tinha certeza que era Dean. Ele bateu na porta, mas fez como Aly e me afastei dela assim que ele colocou a cabeça para dentro do quarto. 

- Estou interrompendo algo? - ele olhou para Aly vermelha e meu rosto levemente duro. Fechei minha expressão apenas para não demonstrar que estava afetada por Aly. 

- Não. - falei. 

Vi Aly afastar um passo, mas olhei para Dean. 

- Precisamos descer. Todos estão na sala de formação. - ele indicou com o rosto. 

Concordei e Aly também. Ajeitei meu novo casaco e sai na frente de Aly, onde Dean nos deu licença. Segurei a porta para ela, que tomou a dianteira e Dean me olhou com curiosidade. Neguei com a cabeça e ele puxou algo que não tinha visto por dentro de seu casaco preto de camurça. Era a Guardiã da Escuridão. Ela estava presa em sua proteção na bainha e não contive meu sorriso para ele. Dean era o único que conseguia chegar próximo ao meu interior. 

Ele me entregou. 

- Achei que precisaria. Ela agora é somente sua. - ele disse baixo. 

Concordei. 

- Obrigada. - beijei seu rosto. 

Nós andamos por toda a Catedral gótica gigante e após alguns minutos, atravessamos a outra torre do Norte onde no final de um corredor profundo, ficava uma sala longa com teto abobado, irmã gêmea da sala onde lutamos em treinamento. Mas, diferente da outra, essa era repleta de estátuas de mármore de anjos, cadeiras de espaldar com acolchoado vermelho ficavam postas em um degrau superior como tronos e um tapete da mesma cor estava estendido por todo o caminho até lá. 

Assim que elas foram abertas por dois caçadores, abaixei o rosto em respeito como Aly havia me mostrado para fazer diante daqueles que estavam ali, mostrando que eu não era uma ameaça e sim uma guerreira que lutaria por eles. 

Nós três andamos pela tapete vermelho e assim que as cadeiras ficaram próximas, mas não tão perto, nos colocamos sob um joelho, se curvando diante do Padre Maleck. Ele era o fundador de nossa Ordem, seguido dos responsáveis pela nossa unidade, que ainda era pequena com apenas quinze caçadores. Mas, ainda não os havia conhecido. Dean e Aly, os primeiros a entrar na Ordem como caçadores que eram responsáveis por cuidar de mim. 

Ainda abaixada, entreguei para Aly a Guardiã da Escuridão e ela se levantou. 

- Com licença, Vossa Eminência. - ela ergueu e entregou pessoalmente para o padre. 

Ele assentiu e admirou a espada por um breve momento. Mais três caçadores estavam em pontos estratégicos em guarda, pela proteção dele. Não reconheci os outros dois homens, que em teoria eram nossos chefes e pelo olhar periférico observei as saídas e calculei estratégias, caso algo desse errado. 

- Podem se levantar. - o padre disse rouco. 

Me ergui, mas ainda estava com a cabeça para baixo e Dean também. 

- Você é a mais nova em treinamento. - o padre Maleck disse, sua voz era quase como um grasnar, algo dentro de mim tremeu e assim que puxei o ar entendi o porquê. Ele era humano. Mas, havia treinado para não perder o controle diante de um deles. Só que mais do que isso, quando coloquei meus olhos nele, pois ele falava comigo, não gostei de seu rosto. 

Ele estava com vestes cerimoniais de um padre anglicano rígido e austero. Ele era careca, magro e deveria ter por volta de sessenta anos. Seus olhos claros varreram meu rosto, meu corpo e vi que se demoraram entre minhas coxas grossas pelo árduo treinamento, onda a calça marcava e quis rosnar, não suportava aquele tipo de olhar. Me lembrava de coisas daquela noite infernal. 

Apenas mordi a língua e senti o gosto de sangue, que acalmou meu interior. Mas, não completamente. 

- Sim, Senhor. - respondi sem que ele percebesse que havia avaliado-o em segundos. 

O padre tinha uma expressão indulgente e fez apenas um sinal de cruz, movendo os lábios com rapidez enquanto entoava uma oração. Depois entregou a Guardiã para Aly. 

- Faça as honras, Aly. Estou cansado da viagem para me erguer. - ele murmurou, entediado. 

Me virei para Aly que sorriu ao se postar ao meu lado. Ela indicou com o nariz que eu me abaixasse e me coloquei de joelhos diante dela. Segurando a espada sob meu ombro direito, ergui meu rosto para seus olhos brilhantes. 

- Agora você pertence à união de caçadores. Serve a Ordem e a mais ninguém. Seu corpo sobrenatural correrá os bosques atrás daqueles que são perversos e propagam o mal. Sob tua proteção do lado direito, jure os princípios da Ordem. - ela ordenou. 

Com nenhuma delicadeza, repeti o que tanto havia decorado. 

- Serei implacável. - minha voz soou firme e grossa. Meu sotaque inglês forte, praticamente perdido. 

Aly confirmou orgulhosa. 

- Sob a proteção do teu lado esquerdo, jure o segundo princípio. - ela ergueu a espada por minha cabeça, tocando meu outro ombro.

- Me entregarei em cada caçada como Jesus se ajoelhou diante dos humanos por seus pecados, sacrificando minha existência. - citei. 

Ela sorriu em aprovação.

- O último juramento. 

A espada tocou minha cabeça. 

- Me manterei fiel a Ordem em todos os meus passos, enterrando meu coração e alma a fim de proteger os menos afortunados, colocando a prova essa escuridão que em mim emerge. - minha voz era como uma canção de ninar, suave e sombria, sensual e provocativa. 

Vi os pelos dos braços de Aly se arrepiarem pela proximidade. 

- Pela benção de Vossa Eminência, pelos olhos de Deus e por todos que devemos servir, eu a nomeio caçadora oficial da Ordem. 

Então, aquela não era minha parte que mais esperava. Mas, Aly havia me instruído de cada momento da condecoração e estendi minha mão direita. 

Sem qualquer hesitação, ela tirou a Guardiã de minha cabeça e a tirou da bainha. Eficaz e com destreza, atravessou a espada pela minha palma com a ponta saindo pelo outro lado. Cortando o osso e tudo ao seu redor. 

Eu deveria sangrar para mostrar e consagrar meu batismo. 

- Amém. - sussurrei e fechei os olhos enquanto meu sangue respingou densamente pelo tapete vermelho. 

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