Capítulo 4

[continuação]

Agora tudo fazia sentido! João tinha sido o responsável por aquela experiência grotesca e assustadora! Antes que Miguel voltasse, eu me esforçara para lembrar um pouco mais sobre aquele dia, com João e Carlos, e sobre alguns detalhes sobre aquela noite. Tudo que lembrava era que dois pares de mãos me puxaram... E tudo que sofri teve efeito dobrado por conta desses dois pares de mãos. Mas como eu provaria tudo isso? Eu não tinha ideias nem lembranças concretas de tudo que aconteceu e por isso não acreditava que essa busca implacável que os policiais, e Miguel, queriam fazer teria realmente um final feliz. Talvez, se tudo aquilo fosse esquecido ou, ao menos, deixado de lado... assim eu não seria obrigado a recordar cada passo que dei naquele dia, como se

- Luis, liguei para os policiais... Eles estavam pelo bairro e vieram correndo para cá, estão ali fora... Posso chamá-los? - Miguel entra desesperado pelo quarto, junto com o médico e antes mesmo de pensar eu concordo.

Jude e Jorge entram um pouco mais esperançosos e preocupados desde a última vez, assim como eu.

- Luis, tudo bem? – Jude diz ao se sentar ao meu lado enquanto Jorge lhe entregava o mesmo caderno que estava em suas mãos na primeira vez que nos vimos, a cerca de horas atrás – Miguel e o doutor Bernardo nos disseram que você se lembra de algo que pode nos ajudar a agilizar nossa busca, correto? – Jude passa a mão em seu topete para ajeitá-lo ao terminar de discursar para mim, o que arranca de mim um pequeno sorriso.

- Sim, isso... Bom, não sei se vai ajudar mesmo. Miguel pensa que sim... – digo meio apreensivo porque ainda não acreditava que aquilo ajudaria os policiais em algo, porque em minha mente não conseguia encontrar um jeito de provar que os dois realmente fizeram aquilo comigo.

- Qualquer informação que você se lembrar vai ser útil para nós, garoto. Te falamos isso quando chegamos! – Jorge diz enquanto revira os olhos desaprovando meu medo e receio de contar o que eu lembrava. Jude o encara desaprovando sua atitude e Miguel, que está atrás dele, ri e o imita, de uma forma engraçada, para que eu me sinta mais confortável no ambiente, acho. O que funciona.

- Quando você quiser, Luis. Se quiser privacidade, podemos ficar apenas nós dois aqui. – Jude diz olhando para mim com um olhar de pena nos olhos, como se estivesse com dó e receio de dizer ou fazer algo que me lembrasse todos aqueles momentos.

- Não, tudo bem. Vocês podem ficar – digo olhando fixamente para Miguel, que sorria e estava um pouco apreensivo, talvez com medo de que eu desista de contar o que lhe contei. Não entendo direito o porquê, afinal nenhuma das informações faria qualquer diferença em nada.

O que todos ali naquela sala, incluindo e especificando Jorge, não sabiam era que eu estava me sentindo como um lixo, como uma sacola plástica utilizada e lançada no ar. Me sentia sozinho e perdido, e estava com medo de dizer qualquer coisa que me colocaria em risco, mais do que eu me sentia.

- Como eu disse para Miguel hoje, mais cedo. Quando cheguei na cidade, a mais ou menos três semanas, fiz amizade com um homem chamado João.

- Certo – Jude escreve algo rapidamente no caderno, possivelmente o nome de João – Você consegue descrever a aparência física dele? – Jude volta a escrever algo rapidamente no caderno.

- É-é... Tudo b-bem – gaguejo e antes de dizer algo, Miguel senta-se ao meu lado, do lado oposto do que Jude estava. – Ele deve ter uns 30 e poucos anos... Tem um cabelo curto, quase raspado e loiro. Deve ter um metro e uns oitenta e seis de altura e é bem encorpado... Não gordo ou algo assim, mas um pouco musculoso, com alguns músculos a mostra, sabe? – Jude balança a cabeça positivamente e continua escrever no caderno enquanto termino de narrar o que me lembrava da aparência de João – Seu rosto é algo um pouco cansado e ele tem algumas manchas abaixo dos olhos, como olheiras permanentes, algo assim. – quando termino de formar a frase final de minha descrição, sinto uma pontada no peito e logo após, uma intensa taquicardia me atinge, o que me faz sentir-me sem ar e um pouco perdido na sala.

Miguel percebe e pede um tempo para os dois policiais que concordam, porque percebem o mesmo que Miguel. Ao saírem, ele me pergunta se tenho condições de terminar e digo que sim, porém precisava de algum tempo para me recompor. Depois de cinco minutos, meu coração resolve obedecer às batidas típicas e volto a me sentir confortável com minha respiração.

- Podemos dar continuidade, Luis? – Jude diz ao entrar na sala, sem Jorge. – Meu colega precisou atender outro chamado, tudo bem em ser apenas eu? – desde o começo eu preferiria assim, Jorge era do tipo intimidador e sem empatia nenhuma. Tenho certeza total de que votou no Bolsonaro, pois sua postura ignorante era totalmente normal em eleitores vividos e fanáticos pelo presidente, que era igual a seus seguidores.

- Tudo bem. – digo e me ajeito na cama do hospital – Posso continuar? – digo para acabar logo com isso.

- Claro que sim, quando quiser.

- Ótimo... Então, quando cheguei, ele estava passando pela rua e sem querer eu esbarrei nele com muitas caixas. E a partir disso criamos uma espécie de amizade, sabe? Ele me ajudou na mudança durante uns três dias e foi se aproximando cada vez mais. Mas eu pensei que ele sabia que eu queria apenas amizade, porque sempre cortava suas brincadeiras sem graça.

- Que tipo de brincadeiras ele fazia com você, Luis – Jude pergunta intrigado enquanto escrevia isso em seu caderno.

- Ele gostava de comentar sobre seus parceiros sexuais e de passar a mão em minha bunda, às vezes em meu pênis... – digo totalmente envergonhado, pois Miguel e Jude não demonstram afeição nenhuma, apenas continuam com suas caras de paisagens.

- Entendo, e quando você cortou pela primeira vez, qual foi a reação dele?

- Ele ficou um pouco bravo e foi embora sem dizer nada... Depois de alguns dias ele voltou e se desculpou... E a partir disso começamos a conversar mais... Mas algumas das brincadeiras, como os comentários sobre meu corpo, continuaram... Mas eu não ligava muito.

- Entendo – Jude diz e faz um gesto com uma das mãos para que eu prosseguisse.

- Depois de tudo isso... Ele ficou sumido pelo resto da semana e apareceu em minha casa na semana seguinte, com um amigo... E nesse dia, ele e o amigo foram além das brincadeiras de João... – paro de falar de repente pois me sinto envergonhado, pelo fato de ter suportado tudo isso só para continuar amigo de alguém.

- Você pode definir o que quer dizer com além? – Jude para de anotar no caderno e olha para mim, dessa vez interessado e demonstrando algum sentimento que tive dificuldade de decifrar no começo.

- Eles me pediram copos para cerveja e quando me virei, Carlos, que era o amigo, me abraçou pelas costas, com seu pênis duro e começou a pressioná-lo em mim, enquanto João ria e tocava em seu próprio pênis... – algumas lágrimas caem de meus olhos, era como se meu corpo físico e mental finalmente aceitasse o fato de que aquilo tinha realmente acontecido comigo.

- E ao perceber isso, qual foi sua reação?

- Eu os expulsei de lá, ameaçando chamar a polícia. Mas antes de sair, Carlos disse que os dois iriam transar comigo... Querendo eu ou não! – mais lágrimas caem de meus olhos. Miguel aperta minha mão esquerda e me diz que está tudo se eu não quiser continuar, reforçado automaticamente por Jude que diz o mesmo em seguida. – Depois disso, eles nunca mais voltaram lá e nunca mais soube dos dois... Apenas sei que João mora uma rua abaixo de meu apartamento...

- Certo, entendi. Você consegue me descrever Carlos, assim como fez com João? – Jude diz enquanto ainda anota em seu caderno.

- Okay – digo e concordo, mesmo que tudo que eu queira é sair daquele quarto e chorar tudo que preciso. – Carlos é gordo, branco, com os cabelos loiros iguais ao seus... E sobre a altura, não sei direito... Ele tinha a mesma altura que seu colega, talvez – digo e demonstro a Miguel e ao policial que estou exausto daquela conversa.

- Tudo bem, Luis. Acho que conseguimos informações muito importantes. Obrigado pela força e coragem de contá-las – Jude diz enquanto guarda seu caderno na pasta que carrega embaixo dos braços.

- Tudo bem... E agora, o que acontece? – pergunto.

- Agora vamos reunir todas essas informações e iniciar uma busca em seu bairro, você sabe o sobrenome de algum deles?

- Não, nunca conversamos sobre isso... Mas sei que ele trabalha em uma empresa de tratores, algo assim... – digo a última coisa que lembro de João.

- Ótimo! Obrigado, Luis. E fique tranquilo, entraremos em contato caso tenhamos algum sucesso. – Jude se despede e sai do quarto rapidamente, deixando Miguel e eu sozinhos e em silêncio absoluto. Acho que ele sabia que eu precisava de um momento em silêncio, mas também precisava saber e sentir que alguém estava ali comigo, no mesmo quarto.

Miguel era esse tipo de amigo, e mesmo tendo conhecido ele a menos de três dias, eu tinha certeza de que poderia contar com ele para muitas coisas... E uma delas era sua companhia em momentos terríveis, como aquele que estávamos presenciando. Depois de algum tempo em silêncio, resolvo puxar algum assunto com Miguel, que encara a janela e admira o lindo céu azul que cobre nossa cidade naquele dia. Fora daquele hospital, as pessoas deveriam estar vivendo suas vidas normalmente, como se nada fossem atingi-las. Esse é o grande problema da humanidade, vivemos nossas vidas como se fossemos grandes e indestrutíveis super heróis, quando na verdade, estamos tão vulneráveis quanto uma simples folha de papel quando cai na água. Doenças, desastres naturais, burrice política, guerras, mortes e tantas outras dores reais estão suscetíveis a nos atingir de uma hora para outra. Mas no fundo, ainda somos aqueles adolescentes de 15 anos que insistem em sustentar a mentira de que nada acontecerá com eles, pois são jovens. Mesmo eu tendo apenas 22 anos de idade, aprendi a algum tempo, que a juventude é como nossa música preferida, ela toca e invade nossos ouvidos com sua harmonia musical de uma maneira tão rápida que quando nos damos conta do quão boa ela é, nesse momento, ela termina.

- Só de pensar que tenho mais dois dias aqui fico mais perdido do que estou – brinco para quebrar o gelo depressivo que eu mesmo nos coloquei.

- Olha, realmente! Concordo com você. – Miguel ri e se ajeita na cadeira, virando seu rosto e corpo para mim. – E quando você sair, como vai ser? – não entendo ao certo sua pergunta.

- Como assim? – digo confuso.

- Ah, sabe... Como você vai se virar em casa?

- Não faço a mínima ideia, mas um jeito eu dou! – digo pensando em como irei me virar com uma costela quebrada e Miguel ri junto a mim.

Nesse momento, o menino, que dormira de manhã na cama ao lado da minha, volta abraçado na enfermeira e deita-se em silêncio, virando para o lado e dormindo instantaneamente, fazendo com que eu e Miguel ficássemos em silêncio para que ele pudesse dormir em paz. As marcas em seu corpo eram nítidas e totalmente perceptíveis. Algo naquele menino me intrigava, minha curiosidade atiçava a máximo ao olhar para seus ferimentos e seu modo assustado e rabugento de falar. Algo tinha acontecido com ele, algo muito ruim... tão ruim como havia acontecido comigo.

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