Capítulo III
Passaram-se mais duas aulas e enfim chegou o intervalo. Peguei minhaprancheta já com a folha de sulfite afixada, o lápis preto e a borracha e fui para umcanto qualquer tentar desenhar algo. Percebi então que aquele cara, marrento,estava por perto, num grupinho e não demorou muito para ele se aproximar,mudando totalmente o semblante._Olá, meu nome é Sérgio, Sérgio Lobo! _disse ele._Fábio! _respondi desconfiado._Você é novo nesta escola? _perguntou. _Não me lembro de vê-lo por aquiantes!_Bem, na verdade, sou novo na cidade, cheguei a pouco de Goiânia!_respondi._Goiânia? _perguntou curioso. _Puxa, adoro Goiânia, estive lá por unstempos, também não sou daqui, nasci na cidade de São Paulo!_Meu sonho é morar em São Paulo, sou muito urbano! _disse comentusiasmo, já me sentindo um pouco mais a vontade. _Além de que paradesenvolver uma carreira artística, acredito não exista melhor lugar!_Carreira artística? _perguntou num tom de ironia, em seguida soltandouma risada sarcástica. _Aí pessoal, não falei que ele era frutinha? O cara aqui querser bailarina!Naquele momento fiquei branco, sem reação, estático, com o que acabarade ouvir. O cara tinha me exposto para o colégio todo, assim de graça, sem motivo.Ouvi um burburinho, gargalhadas e do nada alguém se aproximou... Era oprofessor de história._Vamos, vamos pessoal, dispersando! _disse o professor de maneiraenérgica. _Ande, venha comigo! _falou encostando uma das mãos em meu ombro.Olhei para ele assustado._Você é desenhista? _perguntou o professor tentando me acalmar._Desculpe, o quê? _perguntei sem entender nada._A prancheta em sua mão, não é para desenhos? _perguntou o professor._Ah, é sim! _respondi meio sem jeito. _Vamos até a sala de aula! _disse ele.Já na sala o professor encostou a porta e pediu que eu me sentasse._Desculpe, não entendo porque o senhor me trouxe até aqui, não fui euquem provocou toda aquela confusão lá fora! _falei nervoso._Acalme-se, não está sendo acusado de nada! _disse ele. _Sei que aprovocação partiu do outro aluno e acredite, ele será penalizado. Estamos aquiapenas para um bate-papo, para que se acalme e eu possa lhe conhecer melhor.Gostaria de saber mais sobre você, suas ambições, pretensões, o que almeja para ofuturo, e quem sabe se eu puder ajudar lhe passando alguma orientação. Percebo serum cara muito inteligente e bastante sensível!Fiquei olhando para o professor tentando entender, comportamentodiferente o dele e estranho para mim; só havia recebido desafeto e indiferença detodos a minha volta até então, aquilo era novidade._Não entendo o porquê desse cara ter feito isso comigo, me ridicularizadona frente de todos! _falei cabisbaixo, para que o professor não visse as minhaslágrimas._Veja, não dê importância para o Sérgio, e não deixe que pessoas como eleacabe com sua autoestima. Gente assim costuma ter muitos músculos e poucocérebro! _Falou o professor com a mão em meu ombro._Obrigado! _falei mais calmo, já com a cabeça erguida e com um leve sorrisono rosto, mas os olhos ainda marejados pelas lágrimas.O professor era um verdadeiro lorde na maneira de se portar, e meinspirava confiança, tinha algo nele que seduzia, encantava, não saberia bemexplicar._O senhor sabe se aqui existe algum programa para estágios? _pergunteitentando mudar de assunto. _Estou no último ano escolar, nunca trabalhei e nãoconheço a cidade, se tiver algum conhecimento de onde eu possa conseguir algumemprego!_Primeiramente deixe de formalidades comigo, me considere seu amigo!_falou ele. _No corredor principal há um mural de informações! Vá até lá e procure seexiste algum anúncio! Caso não exista, me procure novamente, conheço alguém quetalvez possa lhe conseguir algo._Acho que vou até lá agora! _falei já me levantando._Relaxe primeiro! _falou o professor._Não, está tudo bem! _falei esquivando o olhar, pois me sentia constrangido._Já me sinto melhor agora!_Bem, poderá me encontrar na sala dos professores caso não haja nada porlá! _falou já em pé._Pode deixar, muito obrigado! _agradeci com o coração acelerado.Marks me acompanhou até a porta e a turma praticamente toda jáaguardava do lado de fora para entrar em sala, inclusive a professora que daria apróxima aula._Pessoal, pode entrar! _disse Marks, mas quando chegou a vez de Sérgiopassar pela porta foi imediatamente barrado. _Desculpe professora, preciso ter umaconversa com esse aluno em particular! _falou Marks a colega de trabalho quesinalizou um ok com a cabeça._Sérgio, venha comigo! _falou Marks segurando o aluno pelo ombro,levando o rapaz para um canto onde ninguém pudesse ouvir o que conversavam.Chegara a vez de advertir Sérgio pelo mau comportamento._Estou ficando cansado dessas suas tiradas! _falou o professor com vozbaixa, mas de maneira incisiva._Ah, qual é, era só uma brincadeira com o novato, pega leve! _disse Sérgioagitado._Espero que tenha sido essa a última vez! _falou Marks com o semblantefechado e firmeza na voz._Tá defendendo a bichinha por quê? _questionou Sérgio ao professor, comose fossem íntimos _ Cada um tem o tratamento que merece... _foi ele interrompidoantes que pudesse terminar a frase._Você precisa saber agir garoto, mas horas, inteligência nunca foi mesmomuito lá o seu forte! - falou Marks em um tom severo.Quando o professor soltou o ombro do rapaz, cada um seguiu para umlado._Idiota! _resmungou Sérgio. _Eu é que estou cansado dos seus mandos edesmandos!***Frente ao mural, qual era a minha decepção ao ver que não existia nada;nenhum anuncio de trabalho sequer exposto no painel. Sai dali frustrado e fui diretoao banheiro.Os banheiros de escolas geralmente são bastante assustadores, gelados,com pouca luminosidade, extensos, silenciosos e aquele não era diferente.Incrivelmente dava até para ouvir o barulho d'água que pinga da torneira. E quemnunca pensou ao entrar num sanitário público sozinho a noite, que pudesse dar decara com a loira do banheiro?Estava voltado para a parede, tenso, tentando esvaziar a bexiga quandoalguém me rendeu, segurando o meu pescoço e braços._Te peguei fresquinho! _disse Sérgio furioso, travando os dentes. _Como sesente tendo um homem de verdade te pegando por trás?_Me solta cara! _falei tentando me libertar._A mocinha vai fazer o quê! Gritar? _perguntou ele.Lembrei que o lápis de desenho estava no bolso direito da minha calça,forcei para alcançá-lo e num só golpe atingi a perna do canalha que me largou nahora._Seu filho dá...! _xingou ele.Naquele momento dei-lhe um empurrão e aproveitei para sair correndo.Sérgio até tentou me pegar antes que eu deixasse o banheiro, porém fui mais rápido.Voltei para a sala de aula, mas somente para buscar a minha mochila, jánão existia mais clima para permanecer por ali. Quando cheguei ao bicicletário pararetirar a minha bicicleta, qual foi a surpresa ao encontrá-la toda retorcida._Mas que droga! _falei bastante chateado.Fui então caminhando para casa, pensando no porque a minha relaçãocom as pessoas e o mundo de modo geral não era boa._O que havia de errado comigo afinal? _pensei.Durante o trajeto de volta para casa, havia pouca iluminação pública e asárvores nas calçadas deixavam as ruas ainda mais escuras. O ar era parado,permitindo ouvir a todos os cachorros da redondeza. Eles pareciam inquietos, nãoparavam de rosnar e latir por um só momento._Deve ser o efeito da lua! _pensei.Olhando admirado para a enorme lua cheia ainda despontando nohorizonte, tive a leve sensação de que estava sendo seguido, me virei para trás, porémnada vi. Busquei acelerar meus passos e logo avistei minha morada, o mais depressapossível entrei; sem saber que do lado de fora uma terrível fera, meio humana, meiolobo, forte e muito peluda, com orelhas pontiagudas, garras e caninos afiados, fixavaos seus olhos na casa, como dois grandes faróis vermelhos.