Inocência das Trevas
Inocência das Trevas
Por: Dan Yukari
Fragmentos de Esperança - Parte 1

O som do piano enchia os corredores do colégio Santa Helena com sua doce melodia. Havia no ar um sentimento de paz e tranquilidade tão grande que por aqueles breves momentos todos se esqueciam das tragédias pelas quais a cidade vinha sendo notícia nos jornais da mídia local.

A pianista era uma jovem estudante e seu talento para as artes era algo nato. Não apenas referente ao instrumento, mas suas outras habilidades destacavam-se, fosse na pintura ou na escrita. Nathalie Osbourne era uma flor que ainda nem havia desabrochado, mas apenas o botão já causava inveja em todo o jardim.

Seus dedos corriam pelas teclas do velho piano de cauda do salão de música da escola enquanto a mesma mantinha os olhos fechados. Costumava dizer que a música não era algo para ser decorado ou aprendido, mas sim para se sentir. Os grandes músicos de todas as épocas – dizia ela – haviam sentido a música lhes tocar a alma.

Enquanto a jovem tocava, outros três estudantes permaneciam em silêncio na sala a ouvi-la ao mesmo tempo em que admiravam sua beleza. Nathalie tinha a pele clara, quase albina, com a tez rosada nas bochechas. Tinha uma doença de pele muito rara que a impedia de ficar exposta ao sol por muito tempo, uma das razões pela qual sempre estudara à noite e nunca era vista em atividades diurnas. Ao mesmo tempo sua pele lembrava uma daquelas exóticas bonecas de porcelana chinesas impecáveis e isso lhe conferia uma grande lista de admiradores. A cabeleira loira caía por suas costas até quase a altura da cintura e formava ondas brilhantes quando se movia. Havia quem dissesse que ela tinha os cabelos mais sedosos de todas as meninas da escola, mas não tinha ninguém que pudesse dizer que já os havia tocado para confirmar.

Quando a moça terminara de tocar as últimas notas, levara a mão esquerda até a face, suspirando. A mão direita estava em sua coxa e ela ainda mantinha os olhos fechados, como se estivesse em êxtase, ainda envolvida pela música em sua mente. Os olhos abriram-se devagar revelando um par de joias azuis brilhantes. Os três alunos que a ouviam bateram palmas e ela os encarou com um sorriso nos lábios carnudos naturalmente rosados.

—Não exagerem, não foi nada demais – dissera encabulada.

—Como pode dizer isso? – argumentara um garoto que vestia uma touca listrada de preto e branco – Sua música é tão incrível quanto a de qualquer grande músico de qualquer época. Nem dá pra acreditar que essa partitura é de sua autoria. Se eu não a conhecesse diria que para uma pessoa conseguir esse nível de qualidade teria de ter uns trezentos anos de ensaio – concluíra o rapaz sorrindo.

—Nem tanto – Nathalie colocara as duas mãos sobre as coxas e se virara de frente para os outros – Digamos que eu tenho muito tempo livre e gosto de completá-lo com música. Qualquer um consegue se tentar.

—Completá-lo com música e romance – dissera uma jovem ruiva de cabelos curtos – Estou ansiosa para ler os novos capítulos que está escrevendo de Sonhos Perdidos. Aquele romance realmente me emocionou. Nunca vi uma autora mesclar tão bem ficção e poesia como você.

Nathalie suspirara novamente olhando na direção da janela, para a lua cheia que brilhava do lado de fora. Os brincos dourados em forma de cruz que usava completavam com perfeição a bela arte de sua face. Ficara em silêncio por um breve instante e então voltara-se novamente para os amigos.

—Estou com fome. O próximo período vai começar em trinta minutos, ainda temos tempo de fazer uma visita à lanchonete antes de voltarmos para a sala. Pode me ajudar, Cindy?

A garota ruiva se levantara com um sorriso nos lábios enquanto acenava positivamente com a cabeça. Antes que chegasse até a loira, o som agudo e estridente de uma guitarra varrera a sala fazendo com que todos colocassem as mãos em seus ouvidos. Apenas Nathalie não se movera, como se aquela nota sequer tivesse sido ouvida por ela.

—Foi mal! – respondera um garoto com um sorriso desajeitado segurando a guitarra no outro lado da sala – Escapou. Esqueci de checar o volume. Vamos ter ensaio da banda nesse fim de semana, baile na próxima sexta, entendem? Estive esperando até que terminasse de tocar para checar os instrumentos. Quem dera ter metade do seu talento, Nathalie.

Era um garoto de dezessete anos, alto e magro. Tinha cabelos castanhos encaracolados e olhos escuros e era o guitarrista de uma das bandas da escola. Não era o sujeito mais inteligente do colégio, mas era conhecido por suas boas notas e pelo talento com a música.

—Tudo bem – dissera Nathalie sorrindo – não foi nada.

—Vamos indo então? – perguntara a outra garota. A jovem loira concordara sorrindo para a amiga e enquanto a ruiva conduzia a cadeira de rodas para a saída da sala, sua ocupante continuava a observar o rapaz.

O sorriso de Nathalie mascarava a dor em seu coração. Nem tudo naquele jardim eram sentimentos de amor e flores perfumadas.

* * *

A lanchonete do colégio estava lotada e como de costume, as mesas eram ocupadas por diferentes grupos de atividades sociais. Haviam os esportistas, os nerds – grupo do qual Nathalie deveria fazer parte, os preguiçosos, os mais velhos, os riquinhos e as meninas da animação de torcida do time de futebol da casa. A garota sentada com os excluídos era mais inteligente que a maioria dos sujeitos na mesa dos nerds e tinha notas melhores que grande parte dos alunos de toda a escola.

Os excluídos, como gostavam de se chamar, eram um pequeno grupo que argumentavam não se encaixar em nenhum outro e viviam com desculpas para não estarem inclusos em nenhum tipo de atividade. Mesmo assim não tinham preguiça de estudar e suas notas eram aceitáveis, o que lhes deixava fora da mira dos professores e conselhos de classe.

Nathalie folheava um livro de Jorge Amado passando os olhos pelas letras sem realmente se prender à leitura. Pensava em si mesma, em como a maioria deveria imaginar sua vida com ironia, ninguém realmente a conhecia tão bem, não intimamente. Para a moça, havia naquele colégio dois tipos de estudantes, excluindo os amigos dessa lista, claro: os piedosos e os preconceituosos.

Os piedosos estavam sempre prontos a ajudá-la, era como se estar em uma cadeira de rodas a tornasse uma inválida completa. Será que se sentiam melhor ao se colocar sempre em seu caminho procurando saber se ela precisava de alguma coisa? Será que em algum momento se perguntavam como ela se sentia com esse tratamento particular? Certamente não, certamente nenhum deles tinha qualquer intenção de aprofundar-se a saber quem era realmente Nathalie Stheffani Osbourne ou algum deles já teria aparecido na porta de sua casa desde que se mudara para aquela cidade, cerca de um ano antes.

Os preconceituosos eram seu tipo preferido. Pelo fato de viverem a evitando, ela não precisava se preocupar com eles. Sabia que sempre que se aproximava, os mesmos caíam fora. Se fosse na direção de um deles, os mesmos saíam de seu caminho, se fosse ao banheiro, qualquer um que a visse, avisava os outros por SMS ou W******p para saírem a fim de não terem que ajudá-la. De qualquer forma se sentia melhor assim, não precisava da piedade alheia. Não precisava da piedade de ninguém.

Mesmo assim, tinha que se destacar, tinha que ser melhor no que fazia para que os outros não a julgassem incapaz por causa da deficiência. Além disso, gostava de ver como alguns se matavam de estudar para poder acompanhá-la nas notas. Era difícil ser uma flor diferente em um jardim cheio de flores tão iguais, mas não era impossível de ser contornado.

—Olá, podemos conversar? – dissera uma voz grave ao lado da garota, a fazendo levantar os olhos da leitura para ver quem era. Sua surpresa quase a fizera sorrir, mas controlara-se. Era Adrian, o garoto de antes, o guitarrista.

—Claro – respondera a moça – Se não se importar de ser visto falando com o grupo que ninguém quer por perto – sorrira – Os garotos da sua banda tem uma grande reputação entre as meninas. Posso lhe ajudar em algo?

—Não sou o tipo que liga pra reputação…

—Estava apenas brincando, sobre o que gostaria de conversar? – dessa vez o sorriso estampado em sua face era evidente.

Cindy se levantara dizendo que precisava de outro refrigerante, mesmo que os copos de todos na mesa estivessem cheios. A outra garota, uma morena de cabelos longos e olhos verdes se levantara ao mesmo tempo dizendo que a acompanharia. Como o rapaz com a touca listrada não se manifestasse, Cindy o tomara pelo braço, o fazendo se levantar também.

—Venha conosco, Brian, precisamos conversar! – o garoto nem tivera tempo de responder e já estava sendo arrastado pelas duas.

—Parece que seus amigos não queriam fazer parte da conversa… – dissera Adrian, sorrindo parecendo envergonhado.

—Bom, eles… acho que são meio tímidos… você entende – respondera a menina de olhos azuis desviando o olhar com as bochechas mais rosadas que o normal. Tocara um dos brincos com o dedo indicador enquanto tentava evitar que o cabelo lhe cobrisse completamente a orelha sem sucesso – Então, sobre o que quer falar?

—Eu a vi tocando e estive pensando se não aceitaria, qualquer hora dessas, participar de uma música com a banda. Tudo bem que rock é o nosso estilo, a nossa alma, mas podemos ver o que temos em comum. A sua melodia é tocante, pude sentir que você toca com o coração e bem, falando de músico pra músico, adoraria tê-la participando em uma de minhas composições.

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